25 de fev. de 2008

Antonioni e a Trilogia da Incomunicabilidade (I)



 “Acho que 
o amor limita 
a pessoa. Algo
de errado que
cria um vazio
em volta” 

Valentina para Giovani em A Noite




Segundo o ponto de vista de Seymor Chatman e Paul Duncan, na trilogia o cineasta Michelangelo Antonioni nos apresenta um mundo sem esperanças. Ainda assim, admitem que aquilo que parecem considerar como uma visão pessimista do diretor em relação ao mundo contemporâneo torna-se menos relevante do que a forma como ele nos apresenta. As imagens que Antonioni criou para mostrar a crise do homem e da mulher da burguesia italiana, enquanto tentam construir uma relação afetiva na sociedade européia do pós-guerra, vão além da simples montagem de seqüências de cenas que apenas ilustram o texto dos personagens. Nesta primeira parte seguiremos o ponto de vista de Chatman e Duncan a respeito daquele que já foi chamado de o “poeta do tédio”. Talvez eles nos ajudem a esclarecer se os críticos do cineasta ficavam/ficam entediados com os filmes de Antonioni, ou com aquilo que os filmes mostram de vidas que não têm criatividade para espantar o próprio tédio. 


Gostaria de
não amá-lo ou
amá-lo muito
melhor

Vittoria para Piero em O Eclipse




Na opinião de Michelangelo Antonioni, os relacionamentos afetivos entre casais parecem nunca encontrar uma saída satisfatória. Quando assistimos aos filmes da Trilogia da Incomunicabilidade, somos tomados por uma pergunta-agonia: a falta de comunicação entre os casais modernos é um dado definitivo e tão sem solução que devemos passar a considerá-lo um elemento “normal” em qualquer relação? Que tipo de normalidade é essa?

Nesse caso, para quê manter uma relação se não procuramos romper essa submissão aos fantasmas que nos mantém sob suas botas? Para quê estabelecer uma relação conjugal que vai me tratar com tanto desprezo quanto o mundo já me trata?

Em princípio, poderíamos dizer que A Aventura (1960) é o filme mais enigmático da trilogia. O fato de girar em torno de um desaparecimento sem solução poderia dar a impressão de redundância desnecessária, com a sensação de que o filme poderia ser reduzido para não mais que vinte minutos. Ficam procurando uma mulher que sumiu, nunca a encontram e a história parece não ter mais nenhum elemento de interesse. Entretanto, este é justamente o ponto que tornaria sua longa duração relevante. Estamos por demais viciados no padrão hollywoodiano para aceitar que a lógica dos filmes de ação possa não ser (ou ter sido) uma unanimidade na cinematografia mundial. Uma mulher desaparece. Na verdade, a forma como esse fato é tratado pelos personagens sugere uma incapacidade das pessoas em reter a atenção em torno de uma falta. Anna desapareceria não apenas fisicamente, mas também das mentes de seus amigos e seu amante.

Antonioni descrevia A Aventura como um filme de mistério invertido, referindo-se ao fato de não se encontrar a vítima ou a arma do crime. Nem mesmo fica claro se foi cometido um crime - Antonioni se considera no pólo oposto em relação ao mestre do suspense Alfred Hitchcock (1). Uma espécie de texto cinematográfico aberto, que não oferece conclusões prontas ao público. Sandro, parceiro da desaparecida, e atual parceiro de Cláudia, a amiga dela, têm uma afeição desmesurada por mulheres. Cláudia, personagem de Mônica Vitti, perdoa Sandro muito rapidamente. Sandro padece do que Antonioni chamou de doença dos sentimentos. Na opinião do diretor italiano, em tal comportamento sexual obsessivo estaria implícita uma doença de Eros. As coisas estariam melhores “se Eros fosse são, e por são entendo justo, adequado à medida e à condição do homem. Existe um incômodo,(…), e como em todos os incômodos, o homem reage, porém mal, apenas segundo o impulso erótico, e é infeliz” (2). 



“Alguma
certeza deve
porém existir,
se não a de amar
bem, ao menos a
de não amar

Dylan Thomas,

poeta inglês do século XX
  


Sandro negligenciou sua carreira artística em favor de um trabalho lucrativo como arquiteto. Não encontrou um equilíbrio entre o amor e o trabalho útil, utilizando o primeiro para compensar a incapacidade de alcançar o segundo. Os personagens secundários do filme têm problemas semelhantes, são aborrecidos, apáticos e insatisfeitos com suas vidas, mas são incapazes de reunir a energia necessária para modificá-las. Cláudia é o único personagem com certo potencial, apesar de sua atitude complacente com os excessos de Sandro poder comprometer o equilíbrio de sua vida futura (3). As ilhas onde foram rodadas as seqüências iniciais do filme são já uma metáfora das relações humanas. Pequenas ilhas pedregosas, quase inacessíveis; bem próximas entre si, ao alcance da vista uma da outra, porém separadas por uma distância que sua natureza rochosa estabelece como definitiva.

A partir de A Aventura, Antonioni passa a utilizar os diálogos entre os personagens mais para ocultar seus pensamentos e sentimentos do que para explicar ao público aquilo que pretendem. No lugar do diálogo, elementos visuais como gestos corporais e expressões faciais (4). Desta forma, ao assistir A Aventura, o público sequer pode esperar que uma análise das expressões faciais possa dar-lhe as respostas, pois Antonioni pretendia que os atores não demonstrassem suas emoções. Portanto, um mérito (que é confundido com chatice tediosa) neste filme é obrigar o público a continuamente tentar adivinhar o pensamento dos personagens. Mas, então, perguntam Seymor Chatman e Paul Duncan, qual é a aventura? Segundo Antonioni: “Os personagens vivem uma aventura emocional – implica a morte e o nascimento de um amor -, uma aventura psicológica e moral que os faz agir contra as convenções e os critérios de um mundo que hoje se considera fora de moda (5).

Em A Noite (1961), acompanhamos Lídia e Giovanni, mais um casal insatisfeito com seu casamento, mas que também não sabe definir o motivo. Em vários momentos, a arquitetura da cidade moderna parece sufocar Lídia, com edifícios que dissolvem o sentido comunitário mais do que o consolidam. Filmando essas paredes, Antonioni mostra, sem a necessidade de explicações verbais, o ambiente desestruturante que só poderia aumentar a quantidade de pessoas angustiadas – por induzir principalmente ao isolamento em relação a si mesmo.

Como em A Aventura, não existem conexões óbvias ou relações de causa e efeito entre várias seqüências, o que faz com que o público considere aborrecidos os filmes de Antonioni. Mas o diretor italiano insiste em deixar ao espectador a responsabilidade de estabelecer o sentido da trama. Deixar a certos públicos tal responsabilidade seria como empurrar o filme para o fracasso de bilheteria. Talvez exatamente esta postura do diretor seja a chave para compreender o tema central de seus filmes – a incapacidade das pessoas em aceitar a responsabilidade de decidir por si mesmas o que pensar e o que sentir; a desumanização e o distanciamento de si mesmos que a modernidade inoculou em todos. A expectativa do espectador, esperando (sentado na poltrona, mastigando alguma coisa) que o filme lhe apresente uma relação causal pronta, marca a acomodação na incapacidade em atrever-se a produzir sentido para o mundo e para si mesmo. Nesse universo antonioniano existe alguma esperança para as mulheres. (Imagens abaixo, Cláudia, A Aventura; Lídia, A Noite; Vittoria, O Eclipse).




Antonioni aponta para uma mulher desiludida, desesperançada
, confusa, hesitante e em eterna crise existencial que, assim como os homens de seu universo, não consegue apostar em si mesma o suficiente para semear uma relação afetiva. Entre A Aventura, A Noite e O Eclipse, assistimos a trajetória de casais em direção a um mundo sem amor. Apesar disso, Cláudia em A Aventura, Lídia em A Noite e Vittoria em O Eclipse, são as personagens mais estáveis na trilogia. Antonioni tem uma afinidade com os personagens femininos, acredita que são mais honestos. As mulheres são contaminadas pelos problemas dos personagens masculinos, que não percebem as necessidades delas.

Antonioni também criava “problemas” para o público do ponto de vista da construção das imagens (6). Ele procurava se afastar dos métodos tradicionais, tanto cinematográficos quanto de narração. Dizia que seu objetivo era a busca da simplicidade, cometendo de propósito o que a ortodoxia consideraria erros técnicos. Utilizava de maneira pouco ortodoxa o campo e o contracampo, o tempo morto, e fazia os atores mudarem de eixo. Essa mudança de eixo desorienta o espectador ao mostrar um ator pela direita e, na seqüência seguinte, mostrá-lo pela esquerda sem uma explicação geométrica que justifique o deslocamento. No caso do tempo morto, Antonioni esticava ao máximo momentos do filme que seriam considerados inexpressivos. A seqüência final de O Eclipse é o maior exemplo disso, ficamos esperando o encontro do casal, mas a única coisa que vemos é uma seqüência infinita de imagens da cidade, suas esquinas e o cotidiano de espera vazia no ponto de ônibus, até que chegue a noite – então o filme acaba.

A seqüência inicial de O Eclipse (1962) está ligada à última pela via das frias paredes da cidade. Antonioni colocou Vittoria e Riccardo morando num bairro residencial que havia (de fato) sido criado pelo conhecido ditador italiano Benito Mussolini, onde se pretendia combinar o estilo da Roma Antiga com a arquitetura moderna. Nos primeiros minutos do filme encontramos um casal vivenciando um rompimento. Estão numa sala, um espaço arquitetônico caustrofóbico como uma jaula. Vittoria, a personagem de Mônica Vitti, anda para um lado e para o outro como um animal confinado, enquanto Riccardo está sentado, catatônico. Por vezes, só conseguimos ver o rosto da mulher através de reflexos de espelho, pois ela está de costas para nós – como que negando acesso ao rosto, ponto de concentração do sentido aquilo que estamos condicionados a procurar quando queremos respostas. Na cena final, a mulher marca um encontro com Piero, personagem de Alain Delon, numa esquina de rua. O filme termina sem que ninguém apareça. Estamos novamente, como no início do filme, às voltas com a arquitetura da cidade moderna.

Antonioni mostra várias imagens da cidade que (constrói) e abriga pessoas que não conseguem se comunicar. Vittoria faz traduções do espanhol para o italiano, mas a única tradução que ela é capaz de fazer sobre o porquê de seu comportamento evasivo é “não sei, não sei, não sei”! No filme O Silêncio (1963), o diretor de cinema sueco Ingmar Bergman colocou uma das personagens como lingüista. Coincidência ou não Bergman cria, um ano após Antonioni, uma personagem que também tinha por profissão a compreensão dos significados da linguagem, ao mesmo tempo que não conseguia compreender aquilo que seu comportamento está comunicando dela ou para ela.  



A  caixa  d'água  no  formato  de  um  cogumelo  atômico  é  uma
metáfora tão perfeita que parece elemento cenográfico
plantado  pelo  cineasta  italiano


Quando, ainda na cena inicial, Vittoria abre a cortina da janela pela segunda vez (na primeira vemos o reflexo de seu rosto no vidro), percebemos uma espécie de caixa d’água com o formato de uma explosão atômica. Então ele, Riccardo, diz que “só queria fazê-la feliz”. Vittoria responde dizendo que quando eles se conheceram ela era feliz. Segundo seu ponto de vista, fazê-la feliz não é suficiente, pois ela teria que ser feliz independentemente do interesse dele na felicidade dela.

“Antonioni não concebeu os três filmes como uma trilogia, mas eles foram assumindo essa forma e, ao fazer o terceiro, o cineasta esclareceu o falso mistério que cerca Ana no primeiro filme. O Eclipse de que trata o filme é o da espécie humana. No mundo sem amor, sem comunicação, as pessoas somem na última cena e fica só o cenário da cidade, num entardecer que expõe a desolação do mundo desumanizado. Ana desaparece no primeiro filme pelo mesmo motivo. Outro diretor, um cineasta de Hollywood, por exemplo, talvez usasse o fato para uma enquête do tipo policial. A de Antonioni é existencial e isso faz toda a diferença”. (7)

“Espaços vazios de acontecimentos, casais vazios de sentimentos, habitados por esse vazio: Antonioni encerra sua chamada Trilogia da Incomunicabilidade mais ciente de estar lidando com os sintomas de um mal-estar da civilização. O que O Eclipse reafirma é que a enfermidade de Eros, o cansaço do amor, é uma doença própria da sociedade moderna. Seria preciso traduzir, portanto, de forma diversa o diálogo entre Vittoria (Mônica Vitti) e sua vizinha africanista. O que quer dizer à vizinha não é que na Europa, ao contrário da África, ‘tudo é muito trabalhoso, [até] o amor’, como foi traduzido aqui. O que diz é: ‘Aqui, há um grande cansaço, inclusive no amor’ “(…)“Delon, que só se deixa envolver depois de um momento de baixa e frustração na Bolsa de Valores, representa o homem moderno em sua vacuidade de espírito; Vittoria, a mulher moderna em seu infantilismo. Não é que Antonioni despreze a modernidade . A cada filme, é como se a modernidade e seus signos fizessem o cineasta reencontrar e voltar a perder de vista as suas questões pessoais ”. (8)

Leia também:


Notas:

1. CHATMAN, Seymor; DUNCAN, Paul. (ed.).Michelangelo Antonioni. Filmografia Completa. Köln: Taschen, 2004. Pp.59 e 75.
2. Idem, pp. 63 e 71.
3. Ibidem, p. 71.
4. Ibidem, p. 79.
5. Ibidem, p. 71.
6. Ibidem.
7. MERTEN, Luis Carlos. Antonioni e a crise do casal burguês. Estadão.com.br. 21/10/2002.
8. Tiago Mata Machado. Antonioni Traduz Mal-estar Moderno. 05/06/2005.
 Na edição de O Eclipse distribuída em dvd no Brasil pela Versátil Home Video, o texto com erro de tradução se encontra aos 37 minutos.