15 de set. de 2009

Uma Fantasia Nostálgica do Paraíso



“Mais cedo ou
mais tarde
, chega um momento em que falar ou ficar calado é a mesma coisa. Então é melhor
ficar calado”

Alfredo para Salvatore
 



Ancorados no Passado

Em Cinema Paradiso (Nuovo Cinema Paradiso, direção Giuseppe Tornatore, 1988) o cinema está no centro da nostalgia por um mundo onde a cultura popular cinematográfica se mistura com a vida de Salvatore Di Vita (Totó): sua infância e raízes na Sicília, seu senso de família e comunidade, seu romance não consumado. Já adulto, recebe a notícia da morte de Alfredo, o projecionista do cinema Paradiso – amigo e pai substituto. Quando volta a Giancaldo para o enterro, recebe um presente que Alfredo deixou. (imagem acima, os últimos momentos do cinema Paradiso; ao lado, o cinema foi vencido pela televisão)


Os Filmes do Paraíso

Em princípio um dramalhão, ancorado no velho clichê dos filmes com crianças e uma trilha sonora que parece carregar um vírus lacrimejante, Cinema Paradiso nos apresenta algo mais. Como disse Elena resistindo aos planos de Salvatore no re-encontro trinta anos depois: “Não Salvatore. Não há futuro. Só há passado”. Na encruzilhada entre o cinema e o passado, Cinema Paradiso está repleto de citações cinematográficas. Os franceses estão com Jean Gabin em Les Bas-Fonds (direção Jean Renoir, 1936) e Brigitte Bardot em E Deus Criou a Mulher (direção Roger Vadim, 1953). Segue uma lista aproximada:



Os norte-americanos: O Pequeno César (Little Caesar, direção Mervyn Le Roy, 1931), Gilda (direção Charles Vidor, 1946), No Tempo das Diligências (Stage Coach, direção John Ford, 1939) Casablanca (direção Michael Curtiz,1942), Fúria (Fury, direção Fritz Lang, 1936), O Médico e o Monstro (Dr. Jekyll & Sr. Hyde, direção Victor Fleming, 1941) Sete Noivas Para Sete Irmãos (Seven Brides For Seven Brothers, Stanley Donen, 1954). Alguns nomes: Laurel e Hardy (O Gordo e o Magro), Charles Chaplin, Buster Keaton, Gary Cooper, John Wayne, James Stewart, Henry Fonda e Rita Hayworth.



Os italianos: A Terra Treme (La Terra Trema – Episodio del Mare, direção Luchino Visconti, 1948), Em Nome da Lei (Nel Nome Della Legge, direção Pietro Germi, 1949), Catene (direção Raffaello Matarazzo, 1949), Arroz Amargo (Riso Amaro, direção Giuseppe De Santis, 1949), I Pompieri di Viggiù (direção Mario Mattoli, 1949), Anna (direção Alberto Lattuada, 1951), Os Boas Vidas (I Vitelloni, direção Federico Fellini, 1953), Ulisses (Ulisse, direção Mario Camerini, 1954), O Ouro de Nápoles (L’oro di Napoli, direção Vittorio De Sica, 1954), Belas, Mas Pobres (Belle Ma Povere, direção Dino Riso, 1956)...



...O Grito (Il Grido, direção Michelangelo Antonioni, 1957), Noites Brancas (Notti Bianche, direção Luchino Visconti, 1957), Sedução da Carne (Senso, Luchino Visconti, 1954). Revemos gente como: Silvana Mangano, Totó, Vittorio De Sica, Alida Valli, Alberto Sordi e Vittorio Gassman. Kirk Douglas é norte-americano, mas sua aparição como Ulisses deu-se sob a direção de um italiano. As citações cinematográficas sofreram algumas críticas. (imagem acima, momentos antes do incêndio no cinema que deixará Alfredo cego; à direita, padre Adelfio, o censor do cinema Paradiso. Implacável, não tolerava beijos na boca)



Mas a preocupação de Tornatore seria outra: o imaginário da platéia e como se pode lapidar isso. Filmes “de arte” são justapostos a produções comerciais, os de Hollywood com os franceses e os italianos, ficção com cinejornais, filmes de autor com filmes de gênero, comédias com melodramas. Mesmo filmes ambientados na Sicília e comprometidos com o aumento de consciência do público, são banidos para a terra do nunca da fabulação cinematográfica hollywoodiana. Neste particular, dois exemplos podem ser citados, A Terra Treme e Em Nome da Lei. O primeiro mostra o problema de pescadores da Sicília que são explorados pelos patrões. Depois de assistir ao filme, ouvimos comentários mostrando como o público não foi capaz de perceber que acontece com eles mesmos. No segundo filme, a platéia delira quando o oficial da lei prende o mafioso como num conto de fadas, mostrando que ela não tem consciência de seus próprios apuros e comprometimentos.

 

Quando o Passado Retorna! 

Analisando o sucesso do filme nos Estados Unidos, Patrick Rumble argumenta que Tornatore tocou no desejo de enraizamento, estabilidade e continuidade que as pessoas perderam ou foram forçadas a reprimir em nome da mobilidade social e do progresso econômico. Para outros, Cinema Paradiso seria um exemplo de “pós-modernismo nostálgico” (1). Na definição de Frederic Jameson, o investimento do pós-moderno no passado não é uma pesquisa histórica, mas imitação do estilo pelo qual uma era passada se auto-representa. Essa “colonização estética” neutraliza a historia (2).



Na opinião de Millicent Marcus, ainda que nostálgico, Cinema Paradiso ultrapassa o reducionismo da citação pós-moderna (do passado) ao incorporar a projeção de filmes antigos, evitando a “colonização estética”: Cada vez que Tornatore insere os filmes, ele estaria dizendo o que Cinema Paradiso Não É - a distância entre seu filme e as produções de Hollywood, do Realismo Poético francês, ou ainda, do cinema italiano do imediato pós-guerra.


A Platéia é o Filme

Tornamo-nos,
para o próprio filme de

Tornator
e, a ressurreição dessa platéia ideal

O espectador passa por todo um ciclo de vida em Cinema Paradiso. Têm de tudo, da corte ao casamento e ao recém nascido do casal Ângelo e Rosa, passando pela cópula de um casal anônimo, por um bebê mamando alheio ao riso da mãe, ou ainda a morte de Don Vincenzo durante um filme de gangster.



Em Star-maker (1995, não lançado no Brasil), Tornatore também explora a ligação entre o cinema e a platéia. Um descobridor de talentos viaja num filme que liga o mito do cinema para os sicilianos e o mito da Sicília para o cinema. Como na cena onde Morelli distribui diálogos de E o Vento Levou (Gone With the Wind, direção Victor Fleming, 1939). Ápice do clássico hollywoodiano e do filme sobre o sul dos Estados Unidos, toca no problema da identidade cultural dos sulistas sicilianos em relação à Itália continental. Nos ensaios, tendiam a distorcer, interpretar, adornar, personalizar e, é claro, sicilianizar a estória (3).



Enquanto Star-marker está focado na cinemania no interior da Sicília, Cinema Paradiso sintoniza a vida da sala de cinema em Giancaldo. Uma seqüência em especial revela que o espectador é o foco do filme. Enquanto assistem a Os Boas Vidas, Tornatore posiciona a câmera por trás da tela e filma a platéia de frente. As imagens do filme são projetadas sobre as pessoas, o filme e os rostos se superpõem. As reações da platéia são mostradas muitas vezes. A interação com a tela é total. Quando Tornatore consegue nos levar a reagir no mesmo nível da platéia de Giancaldo, está recriando o paraíso perdido do cinema dentro de nós (4).


Alfredo e o Paraíso na Tela



“Vá embora!
Esta terra é
amaldiçoada!”

Alfredo para Salvatore








O paraíso é o lugar da queda, onde o homem abraçou o conhecimento proibido. Lembre-se que o cinema é guardado por uma estátua da Virgem Maria e patrulhado pelo padre Adelfio. Além disso, o cinema fica na frente da igreja. Existe uma articulação entre missa e mídia de massa, entre drama litúrgico e espetáculo fílmico. Com seus mitos de heroísmo e romance, o cinema é um equivalente secular da missa em torno do sacrifício de Cristo e da oferta de redenção. O nome original do filme, Nuovo Cinema Paradiso, refere-se à sua segunda fase (depois do incêndio). Na versão reduzida de Cinema Paradiso, Alfredo é amigo, protetor, professor, modelo, a figura paterna que faltava a Salvatore. “Vá embora! Essa terra é amaldiçoada!”, Alfredo insiste com rapaz.






O Alfredo da versão estendida de Cinema
Paradiso é muito mais problemático







Foi ele que separou Salvatore e Elena, re-escrevendo o roteiro da vida do rapaz. Quando Elena, trinta anos depois, justifica a atitude de Alfredo, endossa a teoria da sublimação da criatividade artística e seu papel de musa de Salvatore: “(...) Se tivesse escolhido ficar comigo, não teria feito seus filmes e seria uma pena, pois eles são lindíssimos. Eu vi todos” (5). Salvatore, ao contrário, condena Alfredo: “(...) Não poderia imaginar que tudo acabaria por causa do homem que foi como um pai para mim. Um louco!” Ressentido com a defesa dela em relação a Alfredo, Salvatore sussurra: “Maldito Alfredo! Enfeitiçou você também”. Millicent Marcus chama atenção para a palavra “encantou”, estratégica para entendermos os poderes encantatórios do cinema em Alfredo.



Alfredo
consegue sepa
rar
o jovem casal utilizando
as mesmas armas de Hollywood







No encontro entre Elena e Alfredo, ele desvalorizou a paixão transcendente: “(...) Minha filha, o fogo vira sempre cinza. Até o maior amor mais cedo ou mais tarde termina, acaba... e depois surgem outros amores, tantos! E mais tarde, chegam outros amores, muitos. Por outro lado, o Totó só tem um futuro! (...)” Impedindo aquele romance, bloqueando seu progresso natural na direção do casamento e da vida familiar, o velho amigo de Totó mantém o amor do casal no nível da paixão cinematográfica - sem rotina doméstica.


No fundo, Alfredo empurra o casal para a ilusão de um amor perfeito. Ilusão que seria a força por trás da vida adulta de Salvatore: sua incapacidade de substituir Elena e também o caráter compensatório de seu sucesso profissional. No final do reencontro do casal (na versão estendida), Elena e Salvatore se beijam. Todas aquelas cenas de beijo censuradas por padre Adelfio talvez falem dessa paixão que só parece eficaz porque é pura fantasia. O beijo final dos dois marca um fim. Elena resiste a novos planos de Salvatore: “Agora que aconteceu [o encontro dos dois], acho que não poderia ter um final melhor”.


“‘Talvez não acredite, mas eu serei o ator principal de sua vida’, diz o jovem Salvatore, cineasta principiante de super-8, à imagem de Elena projetada na parede de seu quarto. No final, Salvatore se tornou exatamente isso – um herói romântico, condenado a viver a vida como cinema, uma projeção de desejos que encontram uma concretização apenas no paraíso ilusório da tela de prata” (6)

Notas:

1. MARCUS, Millicent. After Fellini. National Cinema in the Postmodern Age. Baltimore (USA): The Johns Hopkins University Press, 2002. P. 199.
2. JAMESON, Frederic. A Condição Pós-Moderna. Citado em MARCUS, Millicent. Op. Cit., P. 200.
3. MARCUS, Millicent. Op. Cit., p. 204.
4. Idem, p. 207.
5. Ibidem, p. 211.
6. Ibidem, p. 213.