29 de nov. de 2010

As Mulheres de Sergio Leone



Quando
um  garoto  sonha
encarnar   o   super-herói pistoleiro, mal sabe o que
isto pode realmente significar



Machões e Misóginos, Além de Bandidos


Um dos maiores especialistas em Faroeste Espaguete no mundo, Christopher Frayling admitiu não haver abordado em suas pesquisas questões sobre as imagens da masculinidade e a função dos personagens femininos nesse gênero de filme (1). Mas admitiu perceber que, como as cidades no faroeste espaguete se restringem a uma igreja, um barbeiro, um hotel, um bar/bordel, um armazém e um banco, as mulheres se restringem às prostitutas, recepcionistas e camponesas mexicanas que vivem fora da cidade. Não existem professoras, filhas de juízes, esposas de rancheiros ou mulheres ricas do leste tentando fazer uma vida no oeste. De acordo com Sergio Leone (1929-1989), mesmo nos grandes faroestes a mulher é imposta porque é uma estrela. Ela não existe enquanto mulher. Se você cortar esse personagem, disse ele, o filme fica bem melhor! Leone achava que o problema no deserto é sobreviver, e mulheres tendem a ser um obstáculo nessa hora. A mulher, concluiu Leone, não faz diferença no enredo do filme e geralmente está lá porque o herói tem de demonstrar suas “qualidades” (2). (imagem acima, Marisol, casada com um mexicano, forma uma "sagrada família" em Por um Punhado de Dólares, Per un Pugno di Dollari, 1964)

Os filmes de faroeste espaguete, Frayling admitiu, são muito misóginos. Ele explicou que, ao contrário de outros gêneros populares produzidos em Cinecittà na década de 60 do século passado – os sentimentalódeis lacrimejantes, a comédia italiana, os filmes de “espada e sandália” (Peplum), os filmes de horror, os filmes de espião e aqueles de bizarrias tipo Mondo Cane -, o faroeste espaguete se preocupava quase exclusivamente com o universo masculino. Apenas homens fazendo sujeira uns com os outros, geralmente em espaços homo-sociais como bares, duelos ou esconderijos no deserto. Era como se o herói fosse se diminuir caso acontecesse um relacionamento com uma mulher. Frayling fez essas considerações durante um festival de faroeste europeu na cidade italiana de Udine. Pela reação dos outros participantes, ele disse que foi como se tivesse feito um desafio público a masculinidade italiana! (imagem abaixo, à direita, e última do artigo, Cláudia Cardinale em Era Uma Vez no Oeste, C’era una Volta il West, 1968)


Para alguns,
misoginia é só
questã
o de estilo.
Machismo está fora
de moda
, mas parece ser
mais importante do

que meditar sobre
os rumos da
sociedade


Frayling percebeu que tocou em duas questões chave. Não apenas utilizou a expressão problemática, que para alguns é pejorativa, “faroeste espaguete”, como fez pior ao sugerir implicitamente que o machismo poderia estar fora de moda! “existem muitas mulheres nos faroestes italianos”, retrucou um dos participantes. “O oeste é um lugar principalmente masculino, como os épicos da Grécia Antiga”, disse outro. Outros garantiram que não pode haver nada de errado com o fato de que o herói de tais filmes tem um “estilo”. Frayling respondeu que uma de suas alunas assemelhou a experiência de assistir a O Bom, o Mau e o Feio (Il Buono, Il Bruto, Il Cativo, 1966) a estar numa partida de futebol americano, com os homens olhando uns para os ouros – é justamente o que ocorre com todos os jogadores, em duas filas paralelas que irão de encontro uma à outra violentamente. A aluna resumiu dizendo que simplesmente se sentiu excluída da festa. Frayling disse que os participantes, de ambos os sexos, no tal festival de faroeste espaguete (ou, como preferiam, “faroeste italiano”) simplesmente pareciam não compreender o ponto em discussão. Após o mal estar, contouFrayling, o próximo filme do festival era Sugar Colt (direção Franco Giraldi, 1966)... Neste filme, o herói de óculos começa como instrutor de tiro para a autodefesa de jovens senhoras. Várias piadas depois, ele se torna um invencível pistoleiro. Nas palavras do próprio Leone:

“Se as mulheres têm uma função secundária em meus filmes, é porque meus personagens não têm tempo para se apaixonarem ou cortejar ninguém. Eles estão muito ocupados tentando sobreviver ou alcançar seus objetivos, sejam quais forem. Nos faroestes, os papeis femininos são quase sempre ridículos. O que veio fazer Rhonda Fleming em Sem Lei e Sem Alma (Gunfight at Ok Corral, 1957)? Ela serve apenas para colocar o herói, Burt Lancaster, em evidência. Se suprimíssemos seu papel, o filme teria ganhado, a ação poderia ter sido mais rápida. É bem diferente se o personagem feminino está no coração da história, como Claudia Cardinale em Era Uma Vez no Oeste. O que eu quero dizer, é que podemos ter uma abordagem distanciada, européia, do faroeste, mantendo-se apaixonado pelo gênero” (3) (imagem ao lado, ela é esposa de um nanico, Mary é a alta recepcionista do hotel onde o Homem sem Nome se hospedou em Por Uns Dólares a Mais, Per Qualche Dollaro in Più, 1965)

Claudia Cardinale contou que, no caso desta “primeira protagonista feminina”, a maneira como Leone olhava para aquela personagem – a montagem, cada detalhe a maquiagem, o cabeleireiro, a recusa de improvisações – era perfeita (4). Apesar desta exceção, Frayling ressalta que os filmes de Leone (e derivados) tornaram redundante a heroína do velho faroeste. Entretanto, Andrew Sarris chega a dizer que o faroeste espaguete revela “uma surpreendente aversão” em relação a elas. Na opinião de Sarris, a fina camada do culto da Madonna foi raspada pelo faroeste espaguete e revelou uma aversão nem remotamente calculada pelo mais selvagem dos “faroestes freudianos de Hollywood”. Sarris explicou que, enquanto o faroeste freudiano amplificou a mitologia do homem dando a ele uma parceira, o faroeste espaguete a reduziu a uma vítima descuidada e abandonada – um mero detalhe na decoração sangrenta. Sarris conclui afirmando que os espaguetes mais “realistas” são relativamente passíveis de violar o princípio da Madonna através das prostitutas mais ousadas, e que os filmes acabam se tornando uma forma velada de os cineastas italianos violarem a mulher - porque eles as desprezam. Quando Noël Simsolo questionou Leone pelo fato de que o sexo e as mulheres passaram a ter uma importância em Era Uma Vez na América (Once Upon a Time in America, 1984) da qual não haviam usufruído até então, o cineasta respondeu que era necessário. Ou melhor, disse ele, agora não estávamos mais no oeste, mas no cinema norte-americano – com o sexo, a paixão, a traição, a amizade e o amor (5).




Simone de Beauvoir,
a  arqui-feminista,   não
viu problema algum no faroeste espaguete





Mas parece que a feminista Simone de Beauvoir (1908-1986) implicitamente discordou de tal interpretação em seu livro Balanço Final (Tout Compte Fait, 1972). De acordo com ela, histórias que teria achado ridículas se fossem lidas podem encantá-la na tela do cinema. Beauvoir se refere a uma estranha mudança entre a evidência daquilo que é percebido por nossos olhos e a impossibilidade dos fatos. Ela conclui dizendo que os efeitos produzidos podem ser deliciosos se o cineasta utilizar de forma inteligente essa estranha mudança, esta seria a base do humor dos faroestes espaguete. Claramente, conclui Frayling, Simone de Beauvoir não considera esses filmes tão ideologicamente doentios para se assistir. Na opinião de Frayling, concordemos ou não com Sarris, é evidente que uma linha deve ser traçada entre a tentativa de alguns cineastas de espaguete em criticar o papel da mulher no faroeste tradicional e o estereótipo italiano de que as mulheres devem ser substituídas. Uma das críticas de Leone era justamente que os faroestes freudianos amplificavam a mitologia do macho dando a ele uma parceira, e que a heroína de Hollywood não existia nem mesmo enquanto mulher. Mas essa crítica de Leone seria mais histórica do que ideológica.


Leia também:

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Notas:


1. FRAYLING, Christopher. Spaghetti Westerns. Cowboys and Europeans from Karl May to Sergio Leone. London/New York: I. B. Tauris, 2ª ed., 2006. Pp. XV-XVI.
2. Idem, p. 129.
3.-------------------------------. Il Était Une Fois em Italie. Les Westerns de Sergio Leone. Paris : Éditions de La Martinière, 2005. Catálogo de exposição. P. 76.
4. Idem, p. 119.
5. SIMSOLO, Noël. Conversation Avec Sergio Leone. Paris : Cahiers du cinéma, 3ª ed., 2006. P. 179.