31 de ago. de 2012

Antonioni na China






Depois de
supervisionadas e
aprovadas as imagens
de Antonioni, chineses
sem nome o acusam de
“espionagem cultural
imperialista” (1)
 







A Saga do Inocente Útil

O cineasta Michelangelo Antonioni foi convidado pelo governo chinês e pela televisão italiana para realizar um documentário sobre a China. Ainda estávamos na Guerra Fria da década de 70 do século passado, aquele país ainda era considerado inimigo da economia de mercado, Mao Tsé-Tung (1893-1976) ainda estava vivo e a revolução comunista de 1949 ainda era considerada um marco histórico para comunistas chineses e ocidentais. Chung Kuo, China (Chung Kuo - Cina, 1973) foi realizado para a televisão, sua transmissão na Itália em 1973 deu muita audiência (2) - a primeira parte do título significa “império do centro”. Antonioni não filmou nenhum deserto mágico ou rio caudaloso, também não procurou chegar a nenhuma conclusão político-sociológica a respeito da revolução. Ao invés disso, mostrou o povo no cotidiano. O cineasta chegou a registrar uma reunião entre membros de um comitê de vila que conversava a respeito do Livro Vermelho de Mao, mas não inseriu legendas com a tradução nesta hora. Embora Antonioni não tenha olhado para a China da mesma forma que um esteta como Bernardo Bertolucci futuramente o faria em O Último Imperador (L’Ultimo Imperatore, 1987), este cineasta considerou o documentário do colega como uma das coisas mais belas que já se filmou a respeito da China (3).






Solicitaram 
uma proposta de
itinerário a Antonioni,
 mas ele acabou sendo
 obrigado  a  seguir o 
roteiro    imposto
 pelos chineses (4)








A viagem durou seis semanas, tempo que o cineasta considerou insuficiente, além do que os chineses controlavam até mesmo o número de planos a serem filmados a cada dia. O documentário não mostrava “quem são” os chineses, mas “como” eles viviam. Antonioni foi acompanhado todo o tempo por funcionários da televisão chinesa (entre 8 e 14), que faziam uma pré-censura sobre aquilo que se permitia que o cineasta filmasse. No final, o documentário só foi aprovado após alguns cortes impostos pelas autoridades chinesas. Com todo esse controle, era de se esperar que Antonioni não tivesse problemas com seus anfitriões futuramente. Mas não foi bem isso que aconteceu, pois no ano seguinte Pequim o atacou violentamente. Ele foi acusado de ser contrarrevolucionário e denegrir a Revolução cultural proletária chinesa. O governo chinês chegou a tentar impedir que o documentário fosse exibido na França, Suécia, Grécia e Malásia. Antonioni chegou a ficar transtornado com a reação chinesa a um filme que eles conheciam perfeitamente, mas o cineasta teria que esperar ainda por um ano até que aquele comportamento bizarro fosse esclarecido (5).

A China de Antonioni 





(...) Gostaria de escapar
da tentaçãotão comum depois 
de terminar um trabalho, de fazer os 
resultados coincidirem com as primeiras
intenções. E para mim parece positivo
 que  eu não vá  procurar  por  uma 
China imaginária, mas que eu me
entregue à realidade visual (...)

Michelangelo Antonioni, 1974 (6)






Antonioni não pretendia “mostrar” a China, apenas propor que o espectador o acompanhasse naquela viagem que segundo ele muito o enriqueceu. O cineasta confessou que não conseguiu escrever um diário de viagem porque não foi capaz de formar uma ideia definitiva sobre a China. Teria sido preciso, disse ele, viver naquele país um longo tempo. De qualquer forma, muito mais do que os vinte e dois dias de que dispôs. Para um cineasta relativamente relutante como ele em responder a perguntas sobre seus filmes, no caso de Chung Kuo ele confessou que nunca deu tantas explicações. No fundo, explicou Antonioni, a razão de falar tanto sobre a China era uma tentativa de esclarecê-la para ele mesmo. Em 1974, o cineasta já dizia que, para as pessoas de nossa época, aquele país simboliza a contradição. Disse também que encontrou uma China diferente daquela dos contos de fadas. Ainda que concreta e moderna, ele encontrou ali uma paisagem humana muito distinta da nossa, cujos rostos invadiram a tela de seu filme. Antonioni encontrou um ponto de convergência entre os chineses e seu próprio ponto de vista quando, ao perguntar a eles o que mais claramente simboliza a mudança a partir da revolução lhe responderam que é o Homem, a consciência do ser humano, sua capacidade de pensar e viver com justiça – o cineasta dizia isso em relação a seu trabalho (7).







À  critica  de  que  o  filme
parecia propaganda Antonioni
admite, mas diz que há momentos
livres. De qualquer forma, não crê
que documentários estariam mais
próximos  da  realidade quando
não há cenas “programadas” (8)









Antonioni não se furtou a registrar os retratos de Mao, Marx e Engels. É propaganda, o cineasta admitiu, mas não é uma mentira, posto que os chineses fossem assim mesmo e pouco se importavam se no Ocidente aquilo era taxado de “culto à personalidade” - a burocracia foi uma das poucas coisas que invadiram o cotidiano de Antonioni quando esteve na China, mas que não aparece no filme. As intermináveis horas de discussões com a equipe chinesa em torno das permissões para as locações das filmagens levaram Antonioni a perceber que as reações estranhas daqueles chineses talvez traduzisse melhor a China do que o movimento urbano que o cineasta tanto desejava filmar – que afinal, concluiu, provavelmente não eram tão diferentes das ruas italianas. Às vezes, a costumeira gentileza dos chineses desaparecia, dando lugar a uma aspereza que causava surpresa. Quando as negociações chegavam a um ponto de ruptura, eles simplesmente pediam um intervalo e, ao retornarem algumas horas depois ou no dia seguinte, parecia que nada havia acontecido. Ignorar o “não”, explicou Antonioni, é um procedimento que está na base da racionalidade chinesa.

Produzir a Própria Imagem? 


(...)  De    certa   forma,
os oficiais chineses (sabendo
 ou  não)  estavam  dizendo algo verdadeiro em relação ao cinema de  Antonioni:   muitas  vezes  ele  olhava para o que pareciam  ser 
as  coisas erradasPorém esse
olhar constitui seu estilo (...)

John David Rhodes (9)




Os chineses ameaçaram romper relações diplomáticas com qualquer país que mostrasse o documentário, mas uma versão encurtada foi apresentada nos Estados Unidos, com comentários adicionais (10) – é bom lembrar que no mesmo ano de 1972 aconteceu a histórica visita do presidente norte-americano Richard Nixon à China. Em torno de 1976, o crítico Serge Daney escreve um artigo sobre Chung Kuo, China para os Cahiers du Cinéma (entre 1971 e 1973, esta revista havia feito uma opção política pela influência ideológica da China e por sua Revolução Cultural proletária. De acordo com Daney, as críticas feitas pelos chineses através de seu jornal Renmin Ribao (Jornal do Povo) sustentavam uma argumentação estranha - para começo de conversa, Daney revelou que o texto era anônimo. A matéria do periódico, datada de 1974, chamava-se: “Intenção pérfida e procedimento desprezível”. Daney destacou especialmente as reclamações dos chineses em relação às imagens que Antonioni fez da famosa praça Tian'anmen (Praça da Paz Celestial) (1ª parte) e da ponte sobre o rio Yangtzé na cidade de Nanquim (final da 2ª parte). Com relação à Praça, disseram que o cineasta desprezou a importância da mesma para o povo chinês ao concentrar-se apenas no aglomerado de cabeças e grupos de pessoas de frente e de costas. No caso da ponte, reclamaram que Antonioni se concentrou nos piores ângulos, mostrando aquilo que acreditavam ser uma construção moderna como se fosse apenas uma ponte tortuosa e instável (11).







Como traduzir uma
 realidade multifacetada?
 Enquanto a imprensa chinesa
maldizia Antonioni por mostrar  
o chinês como um povo idiota, a imprensa francesa se remetia 
à   ausência   de   histeria 
da massa chinesa (12)







Daney disse ainda que Chung Kuo, China também não agradou muito aos europeus partidários da política chinesa de então. Para esses europeus pareceu estranho que Antonioni concluísse pela impossibilidade de compreender os mistérios do povo chinês, ao mesmo tempo em que registrava imagens cujo registro foi desaconselhado ou proibido: um prédio oficial, um mercado livre a céu aberto (naquela época isso era proibido na China), um navio militar (no meio da 3ª parte; deste o locutor chega a comentar que, apesar de proibida a filmagem, a aparência do navio de guerra não fazia crer que se tratasse de um grande segredo militar). E Serge Daney completa: “Os chineses parecem ignorar que a única imagem que marca, aqui no Ocidente, é aquela que representa um ganho sobre alguma coisa” (13). A reação dos Cahiers em relação à Chung Kuo, China diz respeito ao naturalismo. É como se as imagens do cotidiano do povo filmadas por Antonioni não fosse destituída de segundas intenções. Contudo, Daney admite que neste caso não fizesse muita diferença que os Cahiers estivessem corretos, pois o próprio Antonioni não escondia o impasse em que se encontrava no caso das imagens de propaganda política onipresentes nas ruas das cidades chinesas e em seu documentário sobre elas. Por outro lado, para Daney foi emblemático que os chineses não tenham criticado as imagens da cesariana com acupuntura (início da 1ª parte). Essa imagem ilustrava a ideologia do “servir ao povo”, sendo que aos chineses daquela época era vetada a possibilidade do acesso à produção de sua própria imagem enquanto povo. De acordo com o cineasta Marco Bellocchio, Antonioni não estava fazendo propaganda nem contra nem a favor, tampouco informando sobre o maoismo. Ele só queria fazer cinema de acordo com seu estilo (14).

O Desabafo do Inocente Útil




“Eu  quero
 que  os  chineses
 saibam disso: durante
 a guerracomo membro 
da  resistênciaeu  fui
 condenado à morte. 
 Eu   estava   do
 outro lado!”

Michelangelo Antonioni,
The Guardian, 18 de fevereiro, 1975 (15)






Amargurado, Antonioni chegou a fazer essa declaração em público, ao comentar a respeito das tentativas dos chineses de sabotar a exibição de seu documentário pelo mundo afora. Maria Schneider, a atriz que protagonizou juntamente com Jack Nicholson o filme seguinte de Antonioni, Profissão: Repórter (Profissione: Reporter, 1975), disse que essa obra era até então o trabalho mais desesperado do cineasta, um filme desprovido de qualquer otimismo – algo que ele havia levado de sobra em sua bagagem na viagem para a China. O cineasta se resentiu muito em relação à linguagem vulgar usada pelos chineses em seus argumentos de acusação. Ao fazer um balanço sobre sua viagem à China, o cineasta a dividiu em duas partes. A primeira compreende a experiência positiva da filmagem em si, que o permitiu se concentrar em seu foco predileto, os indivíduos. Quando o filme ficou pronto, foi mostrado ao diretor da agência Nova China e a alguns representantes da embaixada da China em Roma (o embaixador não compareceu). Ao final disseram ao cineasta que ele havia mostrado a China de forma muito afetuosa e agradeceram. Daí a surpresa de Antonioni com a posterior mudança de atitude dos chineses. A segunda parte da viagem, pelo contrário, foi uma experiência negativa de obscurantismo em torno do subterrâneo da política (16).





Antonioni foi acusado 
de ligações com Lin Piao 
(herói da revolução e virtual sucessor de Mao, até sua morte
misteriosa em 1971, difamado como contrarrevolucionário) 
com o objetivo de denegrir
a Revolução Chinesa






No desfile de bobagens dos ataques à Antonioni encontramos uma espantosa acusação de que ele estaria sendo pago pelos revisionistas russos – a esta altura, já havia ocorrido o racha entre o comunismo russo e o comunismo chinês. No documentário encontramos muitas crianças, evidentemente Antonioni também foi acusado de denegrir a imagem delas. A ponte em Nanquim não teria sido mostrada de maneira suficientemente triunfal, e até a coloração do filme foi questionada, pois afirmaram os chineses que o cineasta teria escolhido uma “tonalidade” que eliminava as cores reais da China – será que para esta crítica eles se inspiraram nas experiências de Antonioni em O Deserto Vermelho (Il Deserto Rosso, 1964)? O cineasta lembrou que, além de procurar bloquear a difusão do filme na Itália, os chineses tentaram chantagear o governo sueco ameaçando cortar relações culturais caso a televisão daquele país o mostrasse. Então eles foram à Grécia, naquela época capitaneada por militares de direita e, curiosamente, conseguiram que o filme não fosse apresentado por lá. Os chineses não conseguiram barrar a exibição na França e na Alemanha, mas estiveram por lá chamando Antonioni de fascista e charlatão (buffone). Depois de muitas especulações sobre quais seria a motivação dos chineses, a explicação publicada pelo mesmo jornal chinês que havia difamado Antonioni um ano antes. O ataque a Antonioni fora, na verdade, um ataque a Chu En-lai (1898-1976), o primeiro-ministro chinês (um dos responsáveis pela visita de Nixon à China) que o havia convidado para realizar o filme (17). Entre 1971 e 1972, a saúde de Mao Tsé-Tung estava ruim e Chu En-Lai tinha ambições políticas, infelizmente Antonioni foi apanhado em mais um dos tsunamis da história da China. Consta que apenas em 2004 o filme foi apresentado em Beijing (Pequim).




Leia também:

Notas:

1. BRUNETTE, Peter. The Films of Antonioni. New York: Cambridge University Press, 1998. P. 24.
2. TASSONE, Aldo. Antonioni. Paris: Flammarion, 2007. P. 53.
3. TONETTI, Claretta Micheletti. Bernardo Bertolucci. The Cinema of Ambiguity. New York: Twayne Publishers, 1995. P. 200.
4. TASSONE, A. Op. Cit, p. 52.
5. Idem, pp. 53-4.
6. ANTONIONI, Michelangelo. Architecture of Vision. Writings and Interviews on Cinema. USA: University of Chicago Press, 1996. P. 109.
7. Idem: 109-114.
8. Ibidem, p. 110.
9. RHODES, John David. Antonioni and the Development of Style. RASCAROLI, Laura; RHODES, John David (orgs.). Antonioni. Centenary Essays. London: Palgrave MacMillan/BIF, 2011. P. 297.
10. BRUNETTE, P. Op, Cit., p. 24.
11. DANEY, Serge. A Rampa. Cahiers du Cinéma, 1970-1982. Tradução Marcelo Rezende. São Paulo: Cosac Naify/Mostra Internacional de Cinema, 2007. Pp. 83-92.
12. Idem, p. 85.
13. Ibidem, p. 84.
14. Entrevista nos extras do DVD Cina Chung Kuo, editado por La Feltrinelli, 2007.
15. ANTONIONI, M. Op. Cit., p. 326.
16. Idem, pp. 327-330.
17. TASSONE, A. Op. Cit., p. 54.