29 de set. de 2012

AntonioniDocs-43/50


 
Elementos 
de L’amoroza
Menzogna serão
desenvolvidos     por
Antonioni no roteiro
de Abismo  de um
Sonho, realizado
por Fellini (1)





No Início já Estava Tudo Pronto 

De acordo com Leonardo Quaresima desconsiderar os documentários realizados por Michelangelo Antonioni até a década de 1950 do século passado é mais um dos erros da crítica cinematográfica especializada. Um equívoco que acaba por induzir os neófitos bem intencionados (cinéfilos) a tomar os primeiros trabalhos do cineasta italiano como algo sem valor cinematográfico, pequenos trabalhos de principiante que em nada contribuem para a compreensão da trajetória do cineasta. Quaresima considera uma miopia relegar os documentários de Antonioni a uma posição periférica no conjunto de sua obra – quem sabe essa atitude chegue a induzir o desinteresse em relação à restauração dessas peças, o que dificulta ainda mais o acesso e reavaliação do material. Para Quaresima, esses documentários já constituem peças maduras e autônomas, cujas preocupações estilísticas demonstram uma abertura em relação as mais avançadas correntes cinematográficas e culturais a partir da década de 30. Contam-se onze títulos de documentários entre 1943 e 1950, o mais conhecido (provavelmente apenas o mais citado) entre eles é Gente del Po (imagem acima), um filme que seria finalizado apenas em 1947, tendo sofrido enormemente com uma série de contratempos – incluindo, durante a guerra, cortes impostos pela censura efetivada pelos funcionários de Mussolini (2).


 




Os documentários
do início da trajetória de
Antonioni sempre foram 
obras autônomas

Leonardo Quaresima






Quaresima insiste em afirmar que documentários como Gente del Po, Limpeza Urbana (N.U. Netteza Urbana, 1947) (imagem abaixo, à esquerda), Superstição (Superstizione, 1949), Sette Cane, un Vestito (1949) (imagem acima) e L’amorosa Menzogna (1949) não são nem trabalhos imaturos nem apenas antecipações de filmes que o cineasta realizará no futuro. Por outro lado, tal equívoco pode ter sido induzido pelo próprio Antonioni, ao prefaciar em 1964 a publicação dos roteiros de As Amigas (Le Amiche, 1955), O Grito (Il Grido, 1957), A Aventura (L’avventura, 1960), A Noite (La Notte, 1961), O Eclipse (L’eclisse, 1962) e O Deserto Vermelho (Deserto Rosso, 1964). O cineasta declarou que tudo que ele fez depois de Gente del Po começou durante essas filmagens. Quaresima acredita que essa declaração indica muito mais do que geralmente se acredita, é curioso que a maioria das pessoas suponha que o cineasta estaria se referindo apenas a dois ou três de seus filmes mais famosos da década de 60. Desde os documentários do início de sua carreira a realidade já apontaria para uma dimensão opaca, suspensa, intransitiva (restrita a si mesma), já escapava de valores aplicados e funcionais. Partindo de materiais primários (imagens que se pode “compreender”), em várias oportunidades os documentários de Antonioni conseguem produzir efeitos de incerteza e desestabilização. Tudo isso, insiste mais uma vez Quaresima, já está presente antes de ser identificado como característico dos filmes mais famosos do cineasta.

Neorrealismo e Modernidade






Um Neorrealismo 
mais     focado  na
modernização  do 
que   na   pobreza







Nesta perspectiva, os documentários de Antonioni até a década de 50 são centrais também para um Neorrealismo que se distancia dos lugares comuns e estereótipos em torno do gênero. Quaresima se refere a um Neorrealismo enquanto um projeto estético e comunicativo, cujo humanismo está ligado a um relativismo individualista (seu interesse se estende desde a Itália subdesenvolvida e atrasada até aquela que começa a se modernizar). Até aí nada de novo, desde antes da guerra a evocação do velho e do novo era um tema corrente na Itália. Mas em seu artigo fotográfico intitulado Per un Film sul Fiume Po (1939), que antecede e anuncia Gente del Po, Antonioni enfatiza a modernização enquanto um processo positivo. Por incrível que possa parecer, esta postura constituiu uma novidade na época. Esta é a bandeira dos documentários de Antonioni até a década de 50, deixando em segundo plano justamente o que a crítica especializada enaltecia (gente pobre das imagens neorrealistas superficiais, mas de acordo como os cânones ideológicos da crítica de esquerda). Nas primeiras imagens de Gente del Po somos apresentados a um moinho moderno (um moinho antigo, mas abandonado, aparece durante o filme), em seguida aos barcos transportando mercadorias, enfatizando um cenário mais industrial do que romântico – os personagens que são filmados de costas apenas nos lembram que eles já existiam muito tempo antes de “dar as costas” em A Aventura. Limpeza Urbana começa e termina com um trem, depois até vemos um abrigo improvisado para o pernoite de um homem (dormiu enrolado em papel?), mas a ênfase parece recair sobre o moderno caminhão de lixo.


 



Desde a década 
de 50 Antonioni aposta
 na industrialização,   mas 
desde  aquela época  uma
fábrica era também uma
coisa    estranha






O elemento central de Sette Cane, un Vestito (imagem acima, à direita) é uma moderna fábrica futurista que transforma a cana de açúcar colhida através de processo altamente mecanizado, uma coisa que ainda não foi totalmente implantada em certos países da América do Sul (este é o único documentário da época que parece ter sido restaurado). Tudo neste documentário aponta para a vanguarda da indústria italiana, a exclusão de eventuais formas artesanais de processamento da fibra da cana é evidente – de fato, este documentário foi uma encomenda da indústria têxtil italiana. De qualquer forma, Quaresima está mais interessado no aspecto de ficção científica do cenário da moderna fábrica isolada no campo (o narrador a compara a um “castelo misterioso”), como ele nós também perceberemos uma semelhança com os cenários do primeiro longa-metragem colorido de Antonioni, O Deserto Vermelho. Para Quaresima, tanto o caminhão de lixo, quanto a fábrica e a cabine do funicular em Vertigem (Vertigine/La Funivia del Faloria, 1950) (um documentário nos bondinhos das montanhas Dolomitas, ao norte da Itália) constituem elementos com um sentido evidente, mas que são envolvidos por um “clima” de incerteza que os transforma em coisas do mundo da ficção científica. Aparentemente esse clima, já presente nos documentários, seria visto como um traço distintivo do cinema de Antonioni apenas a partir de seus primeiros longas-metragens. Quaresima cita Crimes da Alma (Cronaca di un Amore, 1950) (os capôs reluzentes carros, a arquitetura do lago artificial [Idroscalo], do planetário de Milão, nos painéis em formato de garrafa) e O Grito (Il Grido, 1957) (os carretéis para cabos na cena de amor no posto de gasolina na periferia de Ravenna).

Realismo e Abstração 





A realidade
cotidiana   já   era
 algo estranho desde o
 princípio da  obra 
  de Antonioni







Do ponto de vista estilístico, Quaresima explica que os documentários de curta-metragem de Antonioni oscilam entre o realismo e a abstração, com ênfase no segundo termo. Quaresima articula as abstrações de Antonioni ao trabalho fotográfico do cineasta Alberto Lattuada, que em 1941 fez imagens onde a figura humana habita apenas as margens, focando sua atenção nos espaços, arquiteturas e a relação entre linhas, superfícies e volumes. O sujeito nunca é o elemento central ou a fonte do sentido daquilo que o rodeia. Poderíamos mesmo sugerir que figuras humanas habitando apenas as margens são visíveis em várias cenas de A Noite, assim como O Eclipse reproduz o interesse em linhas, superfícies e volumes arquitetônicos. Embora admita a possibilidade de traçar analogias, Quaresima sustenta que ainda não se possui dados para confirmar uma influência direta de Lattuada sobre Antonioni. O fato é que a abstração já era uma constante na obra do cineasta desde os primeiros documentários. Algumas das imagens de Gente del Po traduzem interesses do cineasta num “documentário quase abstrato” não realizado, Macchine Inutili, devotado ao trabalho do futurista Bruno Munari (o pintor havia construído máquina que ele chamava de “sem utilidade” porque não serviam para nada; penduradas ao vento, elas produziam ritmos). Na abertura de Gente del Po, sob o título do filme percebemos uma área dividida por uma diagonal que divide o espaço entre o claro e o escuro (última imagem do artigo). Quaresima insiste na qualidade dessa imagem e se questiona por que razão não o perceberam todos os comentadores que exaltaram em profusão imagens iniciais de filmes como A Noite e O Deserto Vermelho. (imagem acima, à esquerda, Limpeza Urbana)







Muitas cenas dos
documentários remetem
à pintura metafísica e ao estranhamento








Quaresima enxergou Lichtrequisit (1930) de László Moholy-Nagy em Sette Cane, un Vestito; em todos os estágios do tratamento da cana mostrados podemos visualizar composições de volumes e superfícies, geometrias e efeitos luminosos. Assim como em Gente del Po o acesso ao contato frontal com os personagens é limitado (a não ser pela garotinha), em Superstição (um filme quase etnográfico sobre crenças populares e curas entre os camponeses italianos) e Limpeza Urbana (como na cena em que o varredor de rua caminha ao lado de sua namorada pela margem do Lungotevere romano arrastando sua vassoura atrás de si) (terceira imagem do artigo) quanto mais uma vida humana marginal é mostrada, mais neutro e distante se torna o olhar. Ou em L’amorosa Menzogna, quando vemos um casal de bicicleta na frente de edifícios modernistas para a classe trabalhadora construídos por Mussolini (imagem acima). Essas cenas antecipam o casal à beira do lago artificial em Crimes da Alma, passando a sensação de certo desamparo na paisagem urbana. Um estranhamento em relação ao ambiente urbano em Antonioni acontece quando o cineasta justapõe o melodrama de um casal ao ambiente neutro e frio da arquitetura racionalista do período entre guerras (na década de 30, o racionalismo na arquitetura recebeu apoio oficial de Mussolini).







Documentários
de Antonioni apresentam
influências     tão     díspares 
quanto    Hollywood   e o
cinema soviético






Os varredores de Limpeza Urbana almoçam encostados no muro branco formando uma composição que já foi comparada a uma pintura metafísica, ou a um espaço de exibição pura e simples (como espetáculo), evidenciado também por uma imagem correlata em Tentativa de Suicídio (Tentato Suicidio, episódio de O Amor na Cidade, 1953), onde os suicidas se espalham sobre um fundo branco. Quaresima fala também de uma cena em Gente del Po que, em sua opinião, é uma das mais belas e fortes (e impiedosas) de todo o cinema de Antonioni (imagem acima). Trata-se da cena em que um casal sentado de costas para a câmera (eles vão fazer amor, anuncia a narradora). A despersonalização do casal (supondo que o sentimento do casal necessita da visualização de seus rostos) é acentuada pela atração exercida pela camisa do homem (mostrando uma conhecida marca de bicicleta). O olhar da mulher para o homem é de resignação, não parece um olhar feliz. A câmera os abandona por uma imagem desolada do rio. Na opinião de Noa Steimatsky, nessa imagem do rio recusando até mesmo um consolo reside o primeiro exemplo do modernismo de Antonioni. Gente del Po ainda apresenta outras soluções de estranhamento perceptivo que remetem as técnicas da vanguarda da década de 1920, como as fotografias de László Moholy-Nagy, além do uso de figuras e paisagens que lembram a pintura metafísica já citada e das paisagens urbanas de Mario Sironi.





O cavalo branco
em  Gente  del  Po e a
comparação de uma fábrica
com um castelo misterioso em Sette Cane, un Vestito  são
inspirados no Realismo 
Poético francês





Na opinião de Quaresima, Sette Cane, un Vestito talvez seja o documentário de Antonioni onde o sujeito humano é mais marginalizado, lembrando a iconografia dos filmes industriais de Walter Ruttmann (1887-1941), especialmente seu Acciaio (1933), ambientado numa siderúrgica italiana – Ruttmann é mais lembrado por ter realizado Berlim, Sinfonia da Metrópole (Berlin, Die Sinfonie der Grosstadt,1927). Mas Sette Cane vai além, o estranhamento (que neste caso Quaresima acredita ser mais cultural do que perceptual) flui através de dilatações que desafiam a linearidade e a coerência temática da narração, abordagem que já estava anunciada no artigo Per un Film sul Fiume Po. Essa referência foge da pintura metafísica e das vanguardas da década de 1920, indo de encontro a fontes que nutriram a teorização do neorrealismo cinematográfico da década de 1940: “verismo” italiano, literatura realista francesa e russa, os distintos realismos cinematográficos de Hollywood (ou a pintura realista norte-americano, ou o cinema do New Deal, que Quaresima acredita enxergar na imagem de uma plantação se estendendo até o horizonte; algo que bem poderia caber na pintura metafísica) e do cinema soviético (tratores em Sette Cane), além do Realismo Poético Francês (notadamente em L’amoroza Menzogna, sem falar no cavalo branco totalmente fora de contexto na penúria de Gente del Po) (primeira imagem do artigo) – não se pode esquecer que Antonioni foi, nos primórdios, assistente de direção de Marcel Carné (1906-1996) em Visitantes da Noite (Les Visiteurs du Soir, 1942). É realmente muito curioso que os documentários realizados por Antonioni no início de sua carreira sejam praticamente desconhecidos da crítica especializada.




Leia também:

Ettore Scola e o Filme Dentro do Filme

Notas:

1. ANTONIONI, Michelangelo. Architecture of Vision. Writings and Interviews on Cinema. USA: University of Chicago Press, 1996. P. 98.
2. QUARESIMA, Leonardo. ‘Making Love on the Shores of the River Po’: Antonioni’s Documentaries. In: RASCAROLI, Laura; RHODES, John David (orgs.). Antonioni. Centenary Essays. London: Palgrave MacMillan/BIF, 2011. Pp. 115-133.