29 de mai. de 2013

As Crianças Neorrealistas de Vittorio De Sica







A tragédia
da inocência da 
infânciacorrompida
pelos    delírios
dos adultos







 
Traídos Pela Realidade 

A ambição de Giuseppe e Pasquale não é muito grande, eles desejam ardentemente comprar um cavalo. Contudo, tal desejo se torna um tanto quanto fora de propósito quando percebemos que aqueles garotos são apenas mais duas cabeças anônimas que ganham a vida como engraxates numa Itália caótica logo após o término da Segunda Guerra Mundial – a enorme quantidade de meninos que vivem de pequenos bicos na rua como eles faz lembrar certos países latino-americanos. Naquela época, as ruas do país estavam cheias de soldados norte-americanos, cujas botas eram lustradas por esses garotos. Certo dia, Giuseppe e Pasquale são induzidos pelo irmão mais velho deste e seu comparsa a vender cobertores roubados do Tio Sam. Logo são apanhados e levados ao reformatório (imagem abaixo), aonde irão se juntar a uma multidão de outros garotos que lá se encontram pelos mais variados motivos (imagem acima; à esquerda, Pasquale). Os dois amigos serão separados logo na chegada, mas manterão seu vínculo de amizade – especialmente o trato de não entregarem os verdadeiros ladrões dos cobertores. A vida naquele lugar é dura, mas a solidariedade entre os pequenos estranhos é mais forte do que as disputas entre eles (por espaço, comida, liderança). Temendo serem descobertos, os verdadeiros ladrões (que eram adultos, constatação que novamente faz lembrar a situação latino-americana) concluíram que os dois garotos deveriam ser bem tratados. Mandam muita comida para Giuseppe, que prontamente a dividirá com seus parceiros de cela.



Crianças em situação de risco alimentar e psicológico. 
Seria mais um clichê do cinema se não fosse algo
melancolicamente recorrente na sociedade


Numa tentativa de resolver a questão, um funcionário do reformatório simula que está dando uma surra de cinto em Giuseppe, levando Pasquale a delatar os nomes dos receptadores de material roubado. A partir daí Giuseppe se sente traído pelo amigo (ele não compreende que Pasquale foi enganado) e começa a se ligar a um garoto com ficha criminal. Pasquale briga com esse novo colega de seu ex-amigo, depois de feri-lo será mandado para a solitária – Giuseppe e Pasquale serão condenados, respectivamente, a um e dois anos de prisão. Embora Pasquale tenha se envolvido numa briga no reformatório, quando nos deparamos com o indolente defensor público designado para defendê-lo (sem falar da conduta do advogado contratado pela família de Giuseppe, que sugeriu que o menino acusasse Pasquale) concluímos que De Sica pretendia dizer alguma sobre o sistema jurídico italiano. Durante uma seção de cinema no reformatório, Giuseppe consegue fugir com alguns de seus companheiros de cela - na confusão, um dos companheiros de cela de Pasquale morre pisoteado (no comentário do médico, “não havia nada a fazer”, subjaz a constatação de que todos aqueles outros meninos já estejam mortos também, é tudo uma questão de tempo). A essa altura, os dois velhos amigos já haviam se reconciliado, o que não impediu que Pasquale avisasse aos policiais que sabia para onde os fugitivos iriam. Pasquale os levou direto para o local onde, com o dinheiro ganho na dos cobertores, estava o cavalo que havia finalmente comprado com Giuseppe. Enquanto os policiais socorrem o funcionário da estrebaria, Pasquale corre pela estrada até encontrar Giuseppe seguindo a cavalo com seu colega de cela, que acaba fugindo. Pasquale resolve dar uma surra de cinto em seu pequeno amigo, que ao tentar se esquivar cai da ponte de morre. Pasquale vai às lágrimas, enquanto os policiais acompanham de longe e o cavalo volta sozinho para a estrebaria.

Cinema Burguês do Povo da Rua? 




(...)    Não    tenho
outro   desejo   senão
ser    aquilo      que    fui
e  que  sou É  uma aspiração
 despretensiosa, dirão vocês...
 mas eu sou um burguês.
 Um   burguês   como 
  tantos. Boa noite” 

Vittorio De Sica (1)



O ano era 1946, a Segunda Guerra Mundial havia terminado há mais ou menos um ano, a Itália estava um caos em vários sentidos. Boa parte do país em ruínas, após vinte anos de Fascismo as instituições políticas começam a oscilar entre esquerda e direita, ao sabor da nova guerra dos vencedores (a Guerra Fria), a infra-estrutura italiana se dobrava a desordem urbana em função do grande fluxo de migração interna (especialmente a partir do sul do país) na direção dos grandes centros industrializados. O Neorrealismo no cinema italiano floresceu nos primeiros anos do pós-guerra mostrando a situação dos italianos para eles mesmos – em pouco tempo deixariam de se interessar pela miséria que já podiam ver muito bem fora das telas. Vittorio De Sica (1901-1974), ator já fazia muito tempo, começa a trabalhar como diretor ainda durante o Fascismo. Roberto Rossellini, por outro lado, foi direto para trás das câmeras, chegando a realizar trabalhos importantes para o cinema que, tecnicamente interessantes ou não, foram utilizados como filmes de propaganda do regime de Mussolini. Muitos daqueles que farão seus nomes nas próximas décadas do pós-guerra já estavam trabalhando, de uma maneira ou de outra, para Mussolini. Naturalmente, a crítica social que se verificaria no neorrealismo do imediato pós-guerra não estava presente no realismo ao estilo do Fascismo. (imagem acima, à esquerda, o refeitório do reformatório; abaixo, à direita, a mãe de Giuseppe)



“No que diz respeito
às datas fundamentais do
 neorrealismo, se 1945 marca  
sua  revelação,  1946   já   o   vê
transformado    numa    etiqueta; 
se   em   1948  atinge  seu   ápice, 
em    1949    já   está   reduzido  a 
uma   fórmula  e  não  consegue 
sobreviver    além    de    1955- 
1956, anos em que o cinema
italiano       passa       por 
    uma profunda crise” (2)




Foi neste contexto que Vittorio De Sica realizou Vítimas da Tormenta (Sciuscià, 1946) nas ruas de Roma (3). Em sua pareceria com Cesare Zavattini, roteirista do filme, De Sica teria de amadurecer por mais quatro trabalhos (entre 1940 e 1942, ainda sob a vigência do Fascismo) até que com A Culpa é dos Pais (I Bambini ci Guardano, baseado no romance Pricò [1924], de Cesare Giulio Viola, 1944) surgisse uma oportunidade de maior engajamento moral com a realidade. Zavattini, o grande teórico do Neorrealismo, já vinha desde 1935, com o roteiro de Darò un Milione (direção Mario Camerini), delineando muitas das características mais evidentes nos filmes neorrealistas: senso de humor e interesse por aqueles que não tiveram sorte na vida (4). Segundo a versão do próprio Vittorio De Sica: “(...) A guerra acabou. Acabou a guerra e começou outro período triste, o pós-guerra e o fenômeno triste e cotidiano, um espetáculo muito doloroso, o dos engraxates. Nasceu em nós o desejo de contar a verdade. Sem que soubéssemos, pensávamos no Neorrealismo, estávamos criando o Neorrealismo. O Rossellini por um lado e eu e Zavattini, por outro. Muitos dizem que o Neorrealismo foi uma necessidade nossa de economizar, de gastar pouco. Não é verdade. Foi mesmo a necessidade de contar a verdade, de ter a coragem de contar a verdade e de levar a câmera, não para as velhas construções da Cinecittà feitas de papel machê, mas para a vida, para a realidade” (5). (imagem abaixo, os dois serão colocados em celas diferentes, parece ter sido a primeira vez que se separaram)



A      distância      atravessada      por      Rossellini 
ou   De   Sica    desde    Paisà   e   Vítimas    da    Tormenta 
não  é  tão  grande  quanto  alguns  críticos  acreditam,  sendo mais 
uma mudança de grau do que de tipo. La Macchina Ammazzacattivi 
(1952), do primeiro,Milagre em Milão (Miracolo a Milano, 1951), do segundo, marcam claramente as fronteiras externas do movimento neorrealista italiano, uma vez que empurram a dialética do
 realismo e da ilusão até quase o ponto de ruptura (6)


Esse interesse pelos despossuídos o levaria a estabelecer uma oposição simplista entre ricos e pobres. O levaria também a cultivar o “mito do pobre”, alguém cuja riqueza espiritual será a maior arma contra uma sociedade corrompida - a descoberta das pessoas comuns do dia-a-dia, que agora passam ao primeiro plano. Assim Mariarosaria Fabri definiu o trabalho de Zavattini, mas alertou ainda que os pobres de Zavattini pobres fossem, na verdade, os pequenos-burgueses. Fabri citou o comentário de Eugenio Curiel a respeito do primeiro livro de Zavattini, I Poveri sono Matti (1937). O livro transferia para o proletariado as tensões e inquietações da pequena-burguesia, ao mesmo tempo mascarando os verdadeiros problemas dos pobres e reforçando a imagem que dela havia criado o regime fascista de Mussolini (vigente na Itália entre 1922 e 1943; em Salò entre 1943 e 1945). Essas idéias estarão presentes nos roteiros que escreverá durante a colaboração com De Sica. De acordo com Fabri, a simbiose entre os dois atingirá um grau tão elevado que será difícil saber qual deles tem maior responsabilidade pelos resultados. Fabri cita também as opiniões de Ermanno Comuzio e do crítico brasileiro Paulo Emílio Salles Gomes. Para o primeiro, a ligação entre Zavattini e De Sica representou o encontro da consciência de classe e do sentimentalismo, em prejuízo da primeira. Para o segundo, a carreira de De Sica está sob o signo da simpatia e da mediocridade, embora Salles Gomes tenha admitido que a ambiguidade desses termos. Fabri posiciona os pontos de vista de Zavattini e Roberto Rossellini em campos opostos no que diz respeito ao Neorrealismo. Citando Roma, Cidade Aberta (Roma Città Aperta, 1945), Fabri sugere que Rossellini foi capaz de efetuar um procedimento expressivo (o cineasta não se resumia a “olhar em volta”, mas se pautava por “como olhar”), em contraposição ao procedimento moral ou ideológico ao qual Zavattini pretendia reduzir a postura neorrealista:

“A modernidade formal de Rossellini, em relação a outros realizadores neorrealistas, pode ser constatada, por exemplo, num rápido confronto entre os dois que tiveram crianças como protagonistas: de um lado Alemanha Ano Zero, de outro, Vítimas da Tormenta, cujo argumento é de Zavattini, o qual, apesar de propugnar um cinema renovado em seu conteúdo e, logo, em sua técnica, continuou preso a uma rigorosa concatenação dos fatos que levava a uma empatia imediata entre o público e os protagonistas. Se em Vítimas da Tormenta, De Sica-Zavattini permeavam o filme de pieguismo, na acusação que moviam ao mundo dos adultos em particular e, consequentemente, à sociedade como um todo, em Alemanha Ano Zero, Rossellini, ao contrário, acompanhava com austeridade formal e isenção de arbítrio o itinerário percorrido por Edmund num cenário que carregava, de forma reflexa, a destruição moral que deveria ter caracterizado o protagonista. Em resumo, enquanto De Sica-Zavattini se valiam de uma retórica patética para denunciarem fatos candentes, Rossellini reduzia o enredo a um mero pretexto dentro do qual a personagem se movia, sem que o espectador fosse solicitado a julgar” (7) (abaixo, a fuga de Giuseppe)



A maior parte das cenas que 
o    cinema    italiano    ambientou    em 
prisões  foi  filmada  no  antigo  reformatório 
do Instituto San Michele, em Trastevere, 
próximo   à   Porta   Portese (8)


Em 1943 Luchino Visconti filmou Obsessão (Ossessione), prenúncio do neorrealismo, ainda sob os auspícios do regime fascista – “Isso não é a Itália”, frase famosa pronunciada pelo contrariado filho de Mussolini, a quem a administração da Cinecittà respondia diretamente. Todo o problema (para os fascistas) era o adultério encenado no filme e incentivado justamente pela esposa, apresentando uma mulher italiana para as italianas que era completamente distinta do modelo de mulher italiana/fascista que o regime sempre propagou (dona de casa, dócil, parideira). No ano seguinte, De Sica voltaria ao tema do adultério com A Culpa é dos Pais, com a diferença de que agora a situação era vista pelos olhos de uma criança. Nos filmes posteriores, De Sica-Zavattini a preocupação com as crianças se desloca do ambiente pequeno-burguês para o popular. Vítimas da Tormenta é o exemplo básico, onde, apesar de vítima dos adultos (e apesar do final infeliz), a infância se supera e realimenta seus sonhos o quanto pode. Décadas depois, De Sica declarou que os meninos engraxates eram o retrato de uma Itália devastada física e moralmente pela guerra. Tanto no caso de A Culpa é dos Pais quanto de Vítimas da Tormenta, De Sica está falando das crianças que nasceram durante o Fascismo (e que sobreviveram a ele), uma geração solitária, filha da geração falida anterior. De qualquer forma, apesar de facilmente cooptáveis por um cinema (e futuramente pela televisão) populista e/ou humanista, o desemprego em massa e a deliquência foram situações endêmicas na Itália do pós-guerra (9). Segundo a versão do próprio De Sica:

“Pedi a Zavattini que pensasse em um roteiro. Zavattini estudou o problema, conhecemos pessoas e visitamos lugares juntos, entre outros o presídio de Porta Portese, que, depois, no filme, foi retratado com impressionante fidelidade. Em uma semana, foi apresentado novo roteiro, o qual foi aceito sem nenhuma reserva pelo produtor. Surgiu, então, o problema do elenco. Atores ou amadores? Gostaria de declarar, nesta altura, que, para mim, a escolha de atores rotulados como ‘tirados da rua’, nunca me foi imposta, não era uma atitude rígida. Existem personagens que requerem atores profissionais, existem outros que podem viver apenas com certo vulto, sem muita importância, encontrado unicamente na vida real. Foi muito difícil encontrar os dois rapazes de Vítimas da Tormenta. Descobrimos primeiro o rapaz mais novo, Rinaldo Smordoni (Giuseppe); o outro, Franco Interlenghi (Pasquale), o encontrei, de fato, na rua. Filho de modestos trabalhadores, ele preferia ficar na rua a fazer qualquer outra coisa para se divertir. Todos apostavam em Smordoni e diziam que, quando ele crescesse, se tornaria um grande ator. E, no entanto, aconteceu o contrário: Interlenghi tornou-se ator, o outro, me parece, pedreiro ou padeiro. Vítimas da Tormenta foi, do ponto de vista econômico, uma desgraça para o pobre produtor Tamburella. Custou menos de um milhão de liras, mas, na Itália, praticamente não foi visto por ninguém. Foi lançado no momento em que chegavam os primeiros filmes [norte-]americanos, os quais eram devorados insaciavelmente pelo público. Mais tarde o filme foi vendido para a França por quatro milhões de liras e arrecadou trezentos milhões de francos. Nos Estados Unidos, foi comprado por dois distribuidores diferentes e fez a fortuna de ambos. Recebeu até um Oscar com o qual foi premiado ‘o esforço produtivo da Itália’, recém-saída da desastrosa guerra. Apesar disso, os [norte-] americanos, por muito tempo, fizeram uma grande confusão e, quando Rossellini foi para Hollywood, atribuíram a ele a paternidade de Vítimas da Tormenta” (10)

Neorrealismos: Rossellini e De Sica





Roberto
Rossellini
olhava  para  o 
mundo, enquanto Vittorio De Sica  procurava
 senti-lo







Qualquer livro de história do cinema irá citar Vítimas da Tormenta, juntamente a seis outros filmes, para caracterizar o Neorrealismo italiano: os três filmes de Roberto Rossellini, Roma, Cidade Aberta (1945), Paisà (1946) (não nos esqueçamos dos pivetes napolitanos do segundo episódio), Alemanha Ano Zero (Germania Anno Zero, 1948); De Sica aparece com mais dois títulos, Ladrões de Bicicleta e Umberto D (1952); Peter Bondanella cita em último lugar a síntese do marxismo de Antonio Gramsci e do verismo de Giovanni Verga que Luchino Visconti realizou em A Terra Treme (La Terra Trema – Episodio del Mare, 1948) – muitos incluiriam nesta lista Obsessão, também de Visconti. Embora Bondanella se apresse em afirmar que tal classificação geralmente é fruto de uma interpretação limitada do neorrealismo italiano (esses filmes não esgotam o assunto), ele admite que, em grande medida, a contribuição do neorrealismo à evolução do cinema deva ser avaliada a partir do êxito (não necessariamente de bilheteria) destas mesmas obras (11).  (imagens acima e abaixo, o reformatório)






Olhar o mundo 
a partir do ponto
de vista da criança,
técnica     utilizada
de forma  efetiva
por   De   Sica






Do ponto de vista da tradição neorrealista, quando se compara a abordagem de Rossellini em seus três filmes citados aos de De Sica, fica evidente a falta de uma abordagem estética ou programática da sociedade no segundo caso. Esta é a opinião de Bondanella, que procura resumir as diferenças citando um comentário de André Bazin, para quem “o estilo de Rossellini é uma forma de olhar, enquanto que para De Sica é antes de tudo uma forma de sentir” (12). Ainda de acordo com Bondanella, o estilo de Rossellini está mais próximo de um método, enquanto De Sica frequentemente inova com toques estilísticos sobre histórias tradicionais. Rossellini vem do cinema documentário, enquanto De Sica começou sua carreira como um ator popular em papéis cômicos, optando pela direção em 1940. Em 1942, sua quinta realização foi um trabalho conjunto com Cesare Zavattini, em A Culpa é dos Pais - embora Zavattini tenha roteirizado os melhores filmes neorrealistas de De Sica, Bondanella afirma que o cineasta utilizou apenas parcialmente as idéias neorrealistas do amigo. Para Bondanella, A Culpa é dos Pais foi crucial para De Sica no pós-guerra, mais focado no roteiro do que na improvisação (comum em Rossellini e Visconti), nas locações em estúdio e na da perspectiva de crianças (visando uma resposta sentimental do espectador) – neste filme, uma esposa adultera leva o marido ao suicídio e perde o afeto de seu filho. (imagem abaixo, acima, à esquerda, expressão de tédio do juiz enquanto escuta a fala inútil do defensor público designado pelo Estado para defender Pasquale; lado direito, durante o desfecho catastrófico da sessão de cinema no reformatório talvez possamos especular sobre o porque do padre católico ter sido colocado entre o fogo e o extintor de incêndio, seria o padre/Igreja a fonte do fogo? Ou seria o padre/Igreja apenas mais um que alimenta o fogo como mais um inocente útil?; na parte inferior, à esquerda, Giuseppe e Pasquale em seus primeiros momentos na prisão, ao lado, Giuseppe e seus novos amigos, note-se como mudou a expressão facial de Giuseppe)


“Em última análise, ao lidar com seus protagonistas mirins
em todos os seus clássicos neorrealistas, é o sentimentalismo de
De Sica que deixa o seu trabalho bem distante do de Rossellini”  (13)



De Sica e os Garotos da Rua 





Vítimas da Tormenta
Ladrões     de     Bicicleta
  e   Umberto   D   compõem 
 a   Trilogia    da    Solidão, 
    de   Vittorio   De   Sica (14)







Fonte de aborrecimento para muitos espectadores acostumados ao padrão hollywoodiano que invadiu o mundo depois da Segunda Guerra Mundial, a utilização de atores e atrizes não-profissionais é uma das marcas registradas do neorrealismo italiano. Em Vítimas da Tormenta, os personagens Giuseppe Filippucci e Pasquale Maggi se encaixam nessa categoria. Garotos das ruas de Roma, respectivamente, Rinaldo Smordoni e Franco Interlenghi, este último construirá uma longa carreira no cinema (entre outros, atuará como Moraldo, o alter-ego de Federico Fellini, quando realizou Os Boas Vidas (I Viteloni, 1953) – anos depois, Pier Paolo Pasolini enaltecerá os “garotos da vida”, eternizando-os em Accattone. Desajuste Social (Accattone, 1961) (com mais idade do que os adolescentes/crianças em De Sica). Ele mesmo um ator experiente, Vittorio De Sica desconfiava da facilidade com que os atores profissionais passavam de uma emoção para outra, nutrindo profunda fé nos poderes expressivos das pessoas comuns/não-atores. Na opinião de Bondanella, essa fé propiciará seus melhores frutos com os atores não-profissionais (nos papeis de pai e filho) que protagonizarão Ladrões de Bicicleta, dois anos depois de Vítimas da Tormenta. Segundo De Sica, seu método de direção é “ser fiel ao personagem”, implicando uma inversão das técnicas de Hollywood:

“Não é o ator que empresta ao personagem um rosto, mesmo que ele possa ser versátil é necessariamente o seu próprio, mas o personagem que se revela, cedo ou tarde, ‘neste’ rosto particular e em nenhum outro... sua ignorância é uma vantagem, não um obstáculo. O homem na rua, particularmente se for dirigido por alguém que seja um ator, é um material bruto que pode ser moldado à vontade. É suficiente explicar a ele aqueles poucos truques da profissão que podem ser úteis de vez em quando; mostrar para ele os meios técnicos e, claro, os meios histriônicos [teatrais?] de expressão a sua disposição. É difícil – talvez impossível – para um ator formado esquecer sua profissão. É bem mais fácil ensinar [atuação], apenas o mínimo que seja necessário, apenas aquilo que for suficiente para o efeito pretendido” (15) (abaixo, da esquerda para a direita, através grades, Giuseppe olha o mundo que ficou para trás; a seguir, Pasquale e Giuseppe, no camburão, avistam pela primeira vez o reformatório; abaixo, os dois amigos no camburão olhando para um mundo que parece cada vez mais distante)



No pátio do reformatório,
o   grupo  de  meninos  simula  uma  peça
de   ópera,   antecipando   a  dramática   confrontação
entre  os  super  amigos  Giuseppe  e  Pasquale.  Em Umberto D, 
a proprietária do apartamento escuta ópera apenas por status social.
Vários outros elementos têm qualidades simbólicas nos filmes de 
 Vittorio De Sica, em Vítimas da Tormenta um cavalo, 
em Ladrões de Bicicleta uma bicicleta, em
     Umberto D  um  cachorro (16)


De acordo com Bondanella, a tragédia da inocência da infância sendo corrompida pelo mundo dos adultos em Vítimas da Tormenta é um comentário irônico (e pessimista) a respeito da nota de esperança que soou na conclusão de Roma, Cidade Aberta: dois pequenos engraxates estão juntando dinheiro para comprar um cavalo, mas se envolvem com o mercado negro através do irmão mais velho de Giuseppe e vão parar no reformatório, onde sua amizade será gradualmente corroída pela injustiça social geralmente associada ao mundo adulto e às figuras de autoridade. Depois de escapar, a morte acidental de Giuseppe pelas mãos de Pasquale conclui o trágico encontro da amizade na infância com o mundo adulto. Bondanella chamou atenção também para o estilo de câmera desenvolvido por De Sica, muito em débito com os mestres franceses da geração precedente (realismo mágico?). A primeira cena do filme mostra os cavalos galopando com os meninos (uma representação do ideal de liberdade). Filmados a partir de um ângulo baixo, a eles será conferida uma estatura equestre. Contudo, em seu dia-a-dia, o mesmo ângulo baixo enfatizaria sua situação humilde no mundo. A sensação de confinamento se aprofunda no reformatório, onde uma série de imagens através das janelas das celas apresenta os meninos numa situação claustrofóbica. A cena final, que ao contrário da cena inicial simula uma situação ao ar livre em estúdio, conclui a sensação de confinamento e dá o tom da tragédia futura de Pasquale.  (imagem abaixo, à direita, a cena final)





Fellini 
também utilizará um 
cavalo    para    representar
a   solidão   humana,    na   cena 
de  A  Estrada  da  Vida (1954) 
em      que      Gelsomina
é   abandonada   por
 Zampanò




Bondanella sugere que De Sica segue Jean Renoir e Orson Welles ao explorar frequentemente as possibilidades técnicas da encenação para juntar uma grande quantidade de informação visual numa única tomada. O filme começa e termina com a visão do cavalo, cuja retirada de cena no final, na opinião de Bondanella, simbolizaria o final da amizade (agora definitivamente) entre Giuseppe e Pasquale. Anteriormente, Pasquale foi enganado e acabou traindo a confiança de Giuseppe ao revelar o nome dos adultos responsáveis pelo mercado negro. Vingativo, Giuseppe esconde uma serra entre as coisas de Pasquale na prisão, o que leva um dos adultos responsáveis pelo reformatório a dar uma surra de cinto em Pasquale. Quando Giuseppe foge do reformatório, Pasquale vai até ele e lhe dá uma surra de cinto (como faria um adulto?). Tentando se defender, Giuseppe morre. Pasquale perde tudo, Giuseppe também (supondo que sua situação sem perspectivas em vida não significasse já a morte; enquanto isso, o mundo burguês na Itália se recuperava das perdas durante a guerra). (imagem abaixo, da esquerda para a direita, o cozinheiro do reformatório ainda não compreende os novos tempos do pós-guerra e como de costume faz a saudação fascista para o diretor, que prontamente responde, logo a seguir percebendo seu o falho; a seguir, num ângulo de visão no qual os italiano viram Mussolini por muito tempo, o diretor grita suas ordens; abaixo, o ponto de vista dos pequenos engraxates: agachados e olhando para baixo; a seguir, o momento da prisão de Giuseppe e Pasquale)



Em    Os    Esquecidos    (Los    Olvidados, 
1950),     o     cineasta    espanhol    Luis    Buñuel    apresentou
 uma      imagem      crua      da      infância      e      da      adolescência 
(um   dos   núcleos   dramáticos   do   cinema   italiano   do   pós-guerra). 
Contudo,  ele  não  concordava com  o  ponto  de  vista  neorrealista, seu  
surrealismo não se fundia ao Neorrealismo como o realismo mágico francês presente entre os pobres e desabrigados milaneses que 
    De Sica apresentou em Milagre em Milão (17)


Bondanella afirmou ainda que, pelo menos em seus primeiros filmes neorrealistas, De Sica era mais consciente que Rossellini em relação ao fato de que sua “realidade” filmada era um produto da ilusão cinematográfica, e tinha prazer em revelar isso. Como na sequência em que um cine-jornal ironicamente intitulado “Notícias do Mundo Livre” mostra os norte-americanos quando ainda estavam em guerra com os japoneses. A seção será interrompida pelo incêndio do projetor (mais do que pela fuga do grupo de Giuseppe), Bondanella acredita que se trata de uma rejeição de Vittorio De Sica quanto à tese (defendida publicamente por ele mesmo) de que o cinema deva refletir a realidade social. Um comentário irônico de De Sica fica por conta do uma sequência anterior, apenas inteligível para aqueles a par das tentativas de Mussolini para “purificar” o idioma italiano de estrangeirismos. Logo após a cena em que Giuseppe e Pasquale são recebidos e avaliados no reformatório, o diretor se retira conversando sobre a situação da delinquência juvenil naqueles tempos. Em certo momento, ao se dirigir a um subalterno, o diretor utiliza uma forma verbal, que logo corrige (“Voi, anzi Lei”) – infelizmente a legenda da edição brasileira do DVD não considerou relevante registrar isso. A seguir, quando o diretor vai à cozinha inspecionar os procedimentos, o cozinheiro esquece que agora eles estão em 1946 (o Fascismo não está mais no poder) e instintivamente faz a saudação fascista para este seu superior hierárquico (que responde prontamente, embora logo se constranja com o ato falho). (imagem abaixo, seus companheiros de cela, já libertos, chegam no tribunal para assistir ao julgamento de Giuseppe e Pasquale, o prédio parece massacrar as crianças com todo seu gigantismo)

Censura Stalinista na Itália “Livre” 




“Eu   acredito   que   nesse
campo, como   em   todos   os
campos a  melhor  forma de nos
 defendermos   de   uma   influência   negativa  é  produzir  muitos  rolos 
com  conteúdo  positivo,  porque,
sinceramente,        eu       não 
acredito muito em censura” 

Giulio Andreotti,
Leggi e Decreti, num. 958, 1949 (18)




O filósofo existencialista francês Jean-Paul Sartre via as obras neorrealistas como um compromisso entre o realismo crítico e a censura. Vítimas da Tormenta é um exemplo desse compromisso, embora tenha sido produzido numa época em que o grande problema parecia ser a invasão dos filmes norte-americanos, iniciada já durante a ocupação dos Aliados – em março de 1949, em Roma, os cineastas conclamam uma grande manifestação em defesa do cinema italiano. Nos anos 50 a censura, imposta tanto pela Democracia-Cristã quanto pelo Vaticano (lembremos que em Vítimas da Tormenta são os padres católicos os responsáveis pelo cinema no reformatório), será a grande inimiga do cinema italiano engajado (19). Um filme de crítica social como Ladrões de Bicicleta teve proibido o visto de exportação, Umberto D também enfrentou problemas com a censura. O governo Democrata-Cristão interveio no Festival de Cannes de 1954 comprando os jurados para que Sedução da Carne (Senso) não fosse premiado já que seu realizador, Luchino Visconti, era comunista. Giulio Andreotti, então subsecretário no Ministério do Espetáculo do governo De Gasperi, questionou a imagem da Itália que filmes como estes iriam disseminar insistindo que “roupa suja se lava em casa” (20). Andreotti conseguiu aprovar uma lei que teoricamente visava à reconstrução do cinema italiano em 29 de dezembro de 1949 – para quem conhece o calendário ocidental, uma lei votada na véspera do Ano Novo soa, no mínimo, como um evidente casuísmo. Embora alguns afirmem que a temporada neorrealista se estendeu até 1955, não é difícil concluir porque outros sugerem que a onda surgida em 1945 encontrou as pedras a partir de 1950.
 


 Em   Vítimas    da    Tormenta,  os  padres 
católicos são  encarregados da sessão de cinema.
Enquanto   Pasquale   considera   uma   sorte   receber
entretenimento na prisão, um de seus colegas de 
cela reclama que são sempre filmes bobos


Em decorrência da nova lei, houve uma centralização do poder nas mãos dos Democrata-Cristãos, cujos interesses estavam em conformidade com os interesses do Vaticano - “vigie e seja seletivo” foi o comando que a Igreja deu a Andreotti. A primeira controvérsia foi o fato de que a qualidade dos filmes seria julgada por parlamentares (um “comitê burocrático) e não por aqueles que trabalhavam no cinema, e/ou pelos espectadores. Foram estabelecidos subsídios financeiros às produções, contanto que elas obedecessem às diretivas da lei: os roteiros deveriam ser pré-aprovados pela “censura política”, sem o que não receberiam permissão para serem exibidos. Sendo assim, ainda que nem todos os filmes fossem financiados pelos subsídios estatais, nenhum produtor desejava perder dinheiro num projeto que não houvesse sido aprovado pelo Estado. De fato, explica Daniela Treveri Gennari, esse sistema nada mais era do que a restauração da política implementada pelos fascistas para o setor cinematográfico em 1923. Esta forma de “censura preventiva” já havia sido introduzida desde 1947, atravessou os anos 1950 e só viria a ser relaxada a partir da nova legislação aprovada em 1962. Quantitativamente falando, a lei de Andreotti aumentou a produção de filmes até 1955 – situação que, de uma forma ou de outra, parecia ser um bom sinal em se tratando de uma indústria cinematográfica que havia sido desmantelada pelos alemães. Contudo, do ponto de vista qualitativo verificou-se uma queda bastante acentuada (21). (imagem abaixo, depois de um julgamento previsível, Pasquale, Giuseppe e seu irmão mais velho, tomam o caminho da prisão)



A partir de setembro de 1943, na ocupação 
de Roma pelos alemães, equipamento da Cinecittà
foi todo levado para a Alemanha. Aquilo que retornou foi direto
para   a   República  de  Salò Com  a  libertação  em  1944,  Cinecittà
se    tornou    um   campo   para    prisioneiros    alemães   depois   para 
refugiados.  Existem  registros  de   uma   produção  em  1946,  Umanità, 
da  qual  não  se  tem notíciasO trabalho  só  recomeçaria  em  1947.
 O     primeiro     filme,      Cuore     (1948),     protagonizado     por
  De Sica também apresentava seu nome  na  direção, 
     que    compartilhou    com    Duilio   Coletti (22)


Do ponto de vista da produção italiana, o mercado estava sendo inundado por filmes mais para o povo do que sobre o povo, assim Vittorio Spinazzola definiu a situação daquela época – que ao mesmo tempo, não podemos esquecer, estava sendo dominada cada vez mais pelos filmes norte-americanos. Como resultado, o neorrealismo foi expelido do mercado dominante por diferentes variações de cinema popular, que, em geral, mantinham um forte vínculo com a tradição católica. Nas palavras de Spinazzola: “muito católico, mantido por um forte sentido de pecado e a convicção da inescapável fragilidade da natureza humana, o cinema popular italiano procurou possuir um valor edificante explícito – portanto, diferindo da moralidade mais distante e complexa dos neorrealistas também a esse respeito” (23). Ao colocar governo e economia em função e um cinema mais conservador e católico, na mira direta de Andreotti, dos Democrata-Cristãos e do Vaticano estava justamente o cinema mais experimental – que era como se podia então considerar o neorrealismo, talvez mesmo o de Zavattini-De Sica, devido ao seu criticismo em relação às políticas públicas de Andreotti. Como os opostos se atraem, curiosamente não é difícil recordarmos das críticas stalinistas, na União Soviética da década de 1920, que denegriam o cinema experimental (o que incluía bolcheviques como Lev Kulechov, Serguei Eisenstein e até mesmo Dziga Vertov) apenas porque insistisse em experimentações da linguagem cinematográfica, quando o Partido Comunista pretendia que o cinema se resumisse apenas à propaganda do regime. 

Compreende-se porque irritassem ao governo italiano as cenas de Vítimas da Tormenta mostrando deliquência juvenil, sistema penitenciário falho, resquícios fascistas no comportamento de funcionários do Estado, falta de perspectiva no mercado de trabalho, Igreja Católica conivente. Na mesma linha, compreendem-se as restrições a Ladrões de Bicicleta e Umberto D, filmes que também apontam para a incapacidade do governo Democrata-Cristão em apresentar à população uma política pública eficaz, sendo capaz apenas de demonstrar seu anticomunismo (o que também era bastante conveniente em tempos de Guerra Fria) e se perpetuar no poder. Enquanto isso, lá como cá, as crianças continuam sendo usadas pelos adultos como pretexto para quase tudo.

Leia também:

O Inferno é Para as Crianças
O Rolo Compressor de Tarkovski
A Poesia e o Cinema em Tarkovski
Accattone: Favelado, Cafetão e Cristo

Notas:

1. Comentário no final de Così è la Vita (Sandro Lai, 2001), documentário nos extras do DVD de Ladrões de Bicicleta, lançado no Brasil pela Versátil Home Vídeo, 2006.
2. FABRIS, Mariarosaria. O Neo-Realismo Cinematográfico Italiano. São Paulo: Edusp, 1996. P. 123.
3 DI BIAGI, Flaminio. Il Cinema a Roma. Guida alla Storia e ai Luoghi del Cinema nella Capitale. Roma: Palombi Editore, 2010. P. 45.
4. FABRIS, M. Op. Cit., pp.84, 92, 106n67.
5. Così è la Vita, ver nota 1.
6. BONDANELLA, Peter. Italian Cinema. From Neorealism to the Present. New York/London: Continuum, 3ª ed., 2008. P. 95.
7. FABRIS, M. Op. Cit., p.102n47.
8. DI BIAGI, F. Op. Cit., p. 157.
9. FABRIS, M. Op. Cit., pp. 90, 110n81, 111n83, 124-5, 128.
10. Uma Palavra do Diretor, nos extras do DVD de Vítimas da Tormenta, lançado no Brasil pela distribuidora Versátil Home Vídeo, 2003.
11. BONDANELLA, P. Op. Cit., pp. 37, 53-6.
12. Idem p. 53.
13. Ibidem.
14. Ibidem, p. 62.
15. Ibidem, p. 56.
16. Ibidem, pp. 56, 66.
17. PARANAGUÁ, Paulo Antônio. El Neorrealismo Latinoamericano. In: Neo-Realismo na América Latina. Revista Cinemais, número 34, junho e 2003. P. 39.
18. GENNARI, Daniela Treveri. Post-War Italian Cinema. American Intervention, Vatican Interests. New York/London: Routledge, 2009. P. 56.
19. FABRIS, M. Op. Cit., pp. 131, 154n18, 157n38.
20. MINNELLA, Maurizio Fantoni. Non Riconciliati. Politica e Società nel Cinema Italiano dal Neorealismo a Oggi. Torino: UTET Libreria, 2004. P. 12.
21. GENNARI, D. T. Op. Cit., pp. 51-2, 55-6.
22. Di Biagi, F. Op. Cit., pp. 42-4.
23. GENNARI, D. T. Op. Cit., p. 56.