31 de ago. de 2014

Quando o Cinema Suspira: E la Nave Va


“Em  nenhum  outro  lugar  o  amor
de     Fellini     pelo     cinema     é     tão
 evidente quanto  em  E la Nave Va

Peter Bondanella (1)

Fim do Cinema ou Fim do Mundo?

Certa vez o cineasta italiano Federico Fellini admitiu ter perdido o hábito de frequentar salas de cinema (2). Curiosa confissão, em se tratando de um dos mestres do cinema mundial. Mas isso não quer dizer que ele não tenha lamentado a crescente fuga das plateias italianas em princípios da década de 1980, pois elas trocaram a tela grande pela tela pequena da televisão – eletrodoméstico responsável por grande parte da crise pela qual passava o cinema da península itálica. Na verdade, Fellini procurou até disfarçar sua lamentação em torno da televisão: “Eu sou muito pessimista porque acho que o público não tem mais simpatia pela tela grande. Mas não quero repetir as razões de sempre por trás do descontentamento do público: televisão, medo de sair a noite, as condições chocantes das salas de cinema italianas. O público perdeu o hábito de ir ao cinema porque o cinema não possui mais o charme, o carisma hipnótico, a autoridade que um dia chamou para si. A imagem que uma vez ele teve para nós – aquela de um sonho que sonhamos com nossos olhos abertos – desapareceu. Ainda é possível que mil pessoas possam se juntar no escuro e experimentar o sonho que um indivíduo dirigiu?” (3)


Nos  instantes  finais,  Fellini  revelará 
a  si  mesmo  atrás  de  uma  câmera  e  o 
estúdio  onde  está “ancorado” o navio

Peter Bondanella nos explica que o cinema italiano dos anos 80 do século passado carecia das preocupações sociais do período pós-guerra que explicam o impacto explosivo de cineastas Roberto Rossellini, Vittorio De Sica e Luchino Visconti. Além disso, apesar dos atores, atrizes e cineastas que surgiram na década de 70, não teria havido uma renovação da indústria cinematográfica como a que ocorreu no começo da década de 60, posteriormente à novidade do Neorrealismo. Ainda de acordo com Bondanella, a maior parte dos grandes filmes italianos dos anos 70 é fruto de antigos cineastas que surgiram no período neorrealista como Fellini, ou da segunda geração pós-neorrealista dos anos 60, como Bernardo Bertolucci, Ettore Scola, Sergio Leone e os irmãos Taviani. Surgem novas esperanças apenas com Nanni Moretti e Pupi Avati, ambos virtualmente desconhecidos fora da Itália (4).

Enquanto os novos talentos não conseguiam financiamento ou interesse dos distribuidores, os críticos italianos, que segundo Bondanella continuavam a ser os comentadores mais pessimistas, insistindo constantemente que o cinema da península estava morto. Para Bondanella, na década de 80 do século passado a obra de Fellini continuava a ser o baluarte do cinema italiano fora de seu país, mesmo que seus filmes já não alcançassem o sucesso comercial de obras antigas como A Estrada da Vida (La Strada, 1954), A Doce Vida (La Dolce Vita, 1960), Fellini 8 ½ (Otto e Mezzo, 1963) e Amarcord (1973). “(...) Os três filmes que ele completou [na década de 1980] – E la Nave Va (1983); Ginger e Fred (1985) e Entrevista [Entervista, 1987] – refletem os temas que Fellini desenvolveu desde meados dos anos 60: uma investigação meta-cinemática no interior da natureza de sua forma de arte aliada a um estilo idiossincrático, contando com os recursos técnicos dos estúdios na Cinecittà” (5).


 No início do filme,  Fellini faz uma homenagem ao cinema
 silencioso.   Ao   som   do   motor   de    um    velho    projetor, 
 acompanhamos   imagens    sem    voz    ou    trilha    musical, 
enquanto  a  película   com  riscos   simula  material  velho

Aliás, em Entrevista podemos ver sua crítica bem ao estilo felliniano quando percebemos que as lanças dos índios atacando a equipe de filmagem são, na verdade, antenas de televisão. Mas isso já foi perto da década de 1990, bem antes, com Cidade das Mulheres (Città delle Donne, 1980), Fellini amargava outro fracasso comercial. Deprimido, verificou que os cinemas de Roma estavam às moscas – todos na Itália só queriam assistir televisão. Foi neste clima que o cineasta realizou seu próximo filme, E la Nave Va, obra repleta da magia da arte cinematográfica. “[Um] navio naufraga, sobrevivem apenas o narrador e um rinoceronte, espécie de figura surgida do inconsciente da história. O naufrágio simbólico [dos cantores e cantoras] que povoam o mundo da ópera evoca um naufrágio mais profundo. Os náufragos são caricaturas inventadas por Fellini, rostos patéticos e de paródia que, a partir do exagero, expressam certa verdade de um mundo. E la Nave Va é a primeira parte de um naufrágio que irá se prolongar em Ginger e Fred e Entrevista, duas obras melancólicas sobre a destruição do cinema pela televisão” (6)


 O  pôr   do  sol  é  tão   bonito   que 
parece artificial, comenta uma mulher. 
A ironia é que era artificial mesmo

De fato, Gian Piero Brunetta vai ainda mais longe ao sugerir que esse naufrágio simbólico levou Fellini a empurrar seus personagens até o limite da vontade de viver. Brunetta chega mesmo a sugerir que o cineasta estava falando de guerra nuclear em E la Nave Va. Conclusão que poderíamos inferir apenas considerando a situação da Guerra Fria, fora do espaço diegético do filme – em 1983, o Muro de Berlim ainda estava de pé, e os rumores de um ataque nuclear iminente por parte dos soviéticos eram ainda muito utilizados pelos norte-americanos para justificar sua “estratégia de tensão” global. É claro, a não ser que Brunetta esteja se referindo aos dois atentados terroristas nucleares que serão perpetrados pelos Estados Unidos nas cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki no final da Segunda Guerra Mundial.

“Nos últimos filmes de Fellini, o diretor forçou seus personagens a aceitar o próprio vazio e sentido de dispersão [uma deriva emocional], preenchendo o vazio com uma falsa alegria e falso relacionamento com os outros. No começo dos anos 1970, o olhar de Fellini começou a se expandir, mas também as figuras que se moviam no quadro dele. Uma espécie de gigantismo marcou seu trabalho, como se ele estivesse encenando um museu vivo enorme de figuras exageradas e monstruosas. A cada filme crescia sua diversão hipertrófica e sua câmera forçava os personagens a andar numa montanha-russa de sensações intensificadas e súbito vazio. Alguns interpretaram seus últimos filmes – Ensaio de Orquestra [Prova d’Orchestra, 1979], Cidade das Mulheres, E la Nave Va, Ginger e Fred e A Voz da Lua [La Voce della Luna, 1990] – como variações metafóricas da situação política da Itália e a sensação de colapso iminente, ausência de comunicação e triunfo da poluição sonora. O véu fúnebre que Fellini progressivamente lançou sobre seu trabalho nasceu de uma tendência sincrônica – de uma catástrofe à outra – de dimensões apocalípticas. E la Nave Va, por exemplo, prevê um pesadelo nuclear, que evocou – utilizando os dois únicos elementos sobreviventes, homem e rinoceronte – uma versão em miniatura da Arca de Noé. O fim do mundo, escreveu Ítalo Calvino, foi ‘um tema recorrente em Fellini... E la Nave Va é talvez o mais explícito a esse respeito. Mas esse filme não impõe tal pathos a nós, como outros filmes de Fellini o fizeram. [Ele nos faz sentir] como se todos compreendêssemos que o fim do mundo é nosso habitat natural, como se não pudéssemos imaginar qualquer outra maneira de viver” (7)

E Segue o Navio


“Uma boa  abertura e um final  bom  fabricam 
um bom filme, desde que estejam bem juntos”

Federico Fellini (8)

Em E la Nave Va acompanhamos o cruzeiro do transatlântico Gloria N., navegando do porto de Nápoles até a ilha de Erino, onde as cinzas de uma famosa cantora de ópera serão jogadas ao vento. Dentre os passageiros encontramos tanto amigos quanto inimigos dela, Orlando (um jornalista que narra esta história no lugar de Fellini, constantemente se equivocando em sua busca pelos fatos objetivos da viagem) e um grupo de nobres do Império Austro-Húngaro. Durante a viagem juntam-se a eles um grupo de refugiados sérvios que estava à deriva no oceano – eles fugiam das represálias resultantes do assassinato do Arquiduque Ferdinand por um sérvio em Sarajevo, episódio considerado o estopim da Primeira Guerra Mundial. Logo surge no horizonte um navio de guerra austro-húngaro em busca dos refugiados, mas concordam em aguardar até a conclusão do funeral. A seguir, após a explosão de uma granada no navio militar, supostamente jogada por um dos refugiados, Gloria N. será afundado. Para Bondanella, esse resumo parece uma versão felliniana do tema de A Nau dos Loucos – um microcosmo da sociedade europeia imediatamente anterior ao conflito militar que acabou com a belle époque. Contudo, o próprio Bondanella conclui que o filme está muito mais concentrado em discorrer poeticamente a respeito da natureza do cinema. Já na sequência inicial temos uma homenagem ao cinema mudo: com a tela colorida em sépia, e o som da película de filme passando pelo projetor, acompanhamos o embarque no transatlântico. A letra “N” presente no nome do navio seria uma homenagem de Fellini a Nino Rota (seu amigo e compositor de muitas trilhas musicais de seus filmes), falecido no início das filmagens de Cidade das Mulheres (9).


A hipnose da galinha induzida por um cantor
russo poderia até suar como provocação de Fellini
em relação a este histórico aliado dos sérvios

O som enigmático de Claire de Lune, pequena para piano de Claude Debussy, talvez seja uma ótima metáfora auditiva das grandes plataformas sobre as quais repousa o navio – a brutalidade de peças de aço capazes de movimentos tão suaves. O personagem russo que hipnotiza a galinha com sua voz grossa parece uma figura saída diretamente dos sonhos de Fellini, mas trata-se de um “baixo profundo” tradicional na música religiosa daquele país. Fellini, que até então não se furtara a anunciar que nunca gostou de ópera, faria uso extensivo de compositores clássicos do gênero como Giuseppe Verdi, Gioacchino Rossini e Vincenzo Bellini, embora tenha solicitado ao poeta Andrea Zanzotto que escrevesse novas letras para as músicas – menos para a área La Donna è Mobile, da ópera Rigoletto, de Verdi. Nesta área, cuja letra poderia muito bem ter sido inventada por Fellini (sua obsessão em torno dos personagens femininos é reconhecida), um homem dá o veredicto clichê dos machistas: “A mulher é volúvel, como uma pluma ao vento, muda de tom e de pensamento”. 

Ao buscar as influências do poeta italiano Dante Alighieri (1265-1321) na obra de Fellini, Guido Fink irá se referir ao papel da música em filmes como E la Nave Va e Ensaio de Orquestra. Dentre as várias similaridades entre poeta e cineasta, Fink destacou o caráter circular do percurso dos personagens. No caso do segundo filme, a orquestra se rebela contra o maestro para, ao final, entregar-lhe a batuta (e o comando) de volta. Quanto a E la Nave Va, o elemento circular abandona a música (cuja função aqui passa a ser de passatempo contra a vulgaridade, e não mais como elemento de rebelião contra a ordem estabelecida) e volta ao cinema:

“(...) Pode ser significativo que no final de Ensaio de Orquestra, tão repleto de som e fúria, não estamos ouvindo apenas os gritos do maestro maluco, mas também a música de Nino Rota, finalmente apresentada em sua beleza e doçura. Como se toda a parábola tivesse sido apenas uma preparação necessária, um convite para esquecer nosso egoísmo e mediocridade, e unir forças na procura por segurança (‘Le note salvano noi’, grita o maestro em seu italiano ruim: as notas musicais nos salvam). Existe aí, escondido em algum lugar por trás do Inferno de nossas vidas cotidianas, o consolo de novos vislumbres de um Paraíso possível, tal como havia sido fornecido em Amarcord pela passagem do Rex? Isso nos lembra, afinal, que mesmo nos últimos filmes realizados por Fellini, igualmente amargos, mas talvez menos satisfatórios (Ginger e Fred ou A Voz da Lua), a música (...) acaba por se transformar num remédio parcial contra a mediocridade e vulgaridade da vida e da sociedade modernas: em ambos os casos, danças fornecem momentos de encantamento e esquecimento, breves parênteses na decadência que a tudo permeia num mundo que não merece ser salvo e talvez realmente não queira ser. Ou, dito de outra maneira, e para voltar às palavras do outro explorador do Céu e do Inferno [Dante], Fellini deve ter sentido no final de sua carreira e de sua vida que la navicella de seu ingegno não estava mais, infelizmente, abrindo suas velas: que, na verdade, poderia e talvez devesse ser destruída, exatamente como o luxuoso Gloria N., no final de E la Nave Va, finalmente rendido a um ataque terrorista, com o grupo heterogêneo de seus passageiros condenados e estranhos. Contudo, uma vez mais, não deveríamos estar de alguma forma aliviados e gratificados com o fato de, num pequeno salva-vidas, um jornalista medíocre com a companhia solitária de um animal fantástico [o rinoceronte] ter sobrevivido e estar girando a roda de sua velha câmera? De certo modo, até mesmo a destruição final foi gravada no rolo de filme, o último círculo” (10)


 Durante boa parte de E la Nave Va, os refugiados 
sérvios aparecem  como  sombras expressionistas

No que diz respeito ao cenário, como explica o próprio Fellini, a aparência de artificialidade foi deliberada. Tudo foi erguido no estúdio 5 da Cinecittà, exceto o porto de Nápoles: “Em E la Nave Va, eu precisava de uma grande estrutura exterior para pintar, então utilizei a parede da fábrica de macarrão Pantanella. Foi onde meu pai, Urbano Fellini, trabalhou quando passou por Roma ao retornar dos trabalhos forçados na Bélgica depois da Primeira Guerra Mundial. Foi quando estava na fábrica de macarrão em 1918 que ele conheceu minha mãe, Ida Barbiani, e a raptou. Não num garanhão branco, mas na terceira classe de um vagão de trem, com o consentimento dela, para longe de sua família e classe social de Roma” (11). De volta ao estúdio 5, seis plataformas montadas sobre equipamento hidráulico simulavam o movimento do navio e suportavam o peso de 170 toneladas de cenários e 250 pessoas. Como já havíamos visto em Amarcord (na sequência da passagem do transatlântico de Mussolini), o oceano em E la Nave Va não esconde sua natureza artificial de material plástico (polietileno) (fato que uma das passageiras marcou ao comentar que o pôr-do-sol é tão bonito que “parece falso”). No final do filme, enquanto a câmera se afasta do navio, nos é revelado que se trata da plataforma daquele estúdio. A câmera desliza do deck do navio para a parte inferior da plataforma, até chegar a uma câmera operada pelo próprio Fellini, que filma enquanto é filmado (12).


 O acompanhante  turco do  rinoceronte  doente de 
amor parece sentir-se tão isolado quanto o animal

Então somos empurrados de volta ao filme por mais alguns instantes, sem que nada do que Fellini acaba de nos mostrar (toda a parafernália mecânica que possibilitou a construção daquela ficção que já dura duas horas) diminua nosso êxtase. A cor retorna ao sépia do início do filme (incluindo ranhuras que simulam uma película cinematográfica gasta) e reencontramos Orlando, que está num bote salva-vidas juntamente com o rinoceronte (13).

“No interior da trama pseudo-histórica de E la Nave Va [a questão dos sérvios], Fellini apresenta sua própria versão abreviada da história do cinema. A evocação inicial do documentário silencioso relembrando os irmãos Lumière é seguida pela chegada do som; a seguir, a capacidade expressiva plenamente desenvolvida do cinema é demonstrada no set do navio completamente artificial de Fellini sobre um oceano imaginário. O resultado é um trabalho de grande poder poético, frequentemente apresentando em imagens e música aquilo que não pode ser expresso através de diálogo. Além disso, a sequência final, filmada no estilo contemporâneo de um comercial de televisão, claramente sugere que esse meio frágil e poético [o cinema] foi ofuscado atualmente por uma imagem mais homogênea e despersonalizada” (14)

A Nau dos Loucos: Fellini e Pinóquio


(...) Cada um de nós pode se encontrar nessa multidão
de personagens de quadrinhos, felizes, ameaçadores; estamos
todos em algum lugar nos cantos do retrato em grupo”

Tullio Kezich (15)

Gloria N. é o exato oposto de Rex, o transatlântico de Mussolini em Amarcord. Esta é a opinião de Kezich, para quem o segundo navio é o mensageiro da mudança (pelo menos considerando aquilo que os italianos pareciam imaginar que fosse), e o primeiro uma representação da temática da Nau dos Loucos, especialmente na versão do pintor holandês Hieronymus Bosch (1450-1516). É curioso que os refugiados sérvios tenham sido incluídos como passageiros, o próprio Fellini se surpreenderia quando, alguns anos depois, eles se tornariam vilões no mundo real – durante a década de 1990, após o desmembramento da antiga Iugoslávia, os sérvios travariam uma guerra cruenta com seus vizinhos Bósnios e Croatas. Até hoje alguns oficiais do exército sérvio são procurados por crimes contra a humanidade, bem ao estilo da limpeza étnica e dos campos de concentração e extermínio nazistas. Fellini utilizou atores e atrizes ingleses em E la Nave Va, ainda que não se possa dizer que o critério do cineasta foi estritamente técnico – quem sabe isto teve relação com os financiadores do projeto, ou ainda com a hipótese de uma melhor penetração do filme nos países de língua inglesa. Contudo, o critério de escolha do ator para o papel de Orlando (o jornalista que aparece como a personificação de Fellini), uma figura central, dá uma ideia do sistema de trabalho do cineasta. Fellini contou que não tinha certeza se um ator shakespeareano como Freddie Jones seria a escolha certa, mas quando o cineasta viu uma propaganda do soverte Orlando num ônibus, não teve dúvida de que aquilo era um sinal! De acordo como Tullio Kezich, o nome do personagem foi inspirado num então famoso comentador de televisão chamado Ruggero Orlando. Marcello Mastroianni, que até desejou assumir esse personagem, foi eliminado – alguns sugerem que a opção pelo velho amigo teria sido acertada (16). (imagens acima, à esquerda, detalhe de Nau dos Loucos, Hieronymus Bosch, 1490–1500; à direita, o transatlântico Gloria N. acabar de zarpar)


 O  navio    está   afundando,    mas   o 
amante ainda está fixado no passado

Sarah-Jane Varley, então uma jovem atriz inglesa, foi quem desta vez encarnou a representação do eterno feminino segundo Fellini. A bailarina alemã Pina Bausch atuou como a princesa cega. Kezich contou que Fellini gostava do “estilo clerical” dos atores e atrizes ingleses (alguém que se entrega ao serviço com uma atitude mais ou menos humilde). Apesar disso, o cineasta nunca havia visto nenhum daqueles atores trabalhando, tendo escolhido a todos da forma usual: olhando seus rostos num catálogo e a seguir acompanhando o desfile silencioso de cada um na sua frente, sem conversas ou promessas. A ideia de inserir a história do filme na história na Europa de 1914 foi uma paródia da moda retro da Europa central, muito em voga na Itália dos anos 1980. Orlando, o próprio jornalista retrô, cumpre bem sua função de figura fora de moda e medíocre. Ao mesmo tempo em que dignifica o mundo da arte através da ópera, a ambiguidade em E la Nave Va não deixa de apresentar aqueles cantores e cantoras como uma espécie de bando ridículo. Ainda que o funeral de Edmea Tetua tenha sido inspirado num evento real: os funerais da cantora de ópera Maria Callas em 1979, cujas cinzas foram levadas à Grécia (sua terra natal) e espalhadas no Mar Egeu. A conclusão de Kezich parece convincente: “(...) O enredo não é importante, aos personagens não é permitida nenhuma profundidade e talvez a história não tenha nenhuma moral. Ainda assim, é um filme com muitos armários escondidos, repletos de segredos e surpresas. E la Nave Va é, mais do que qualquer coisa, algo para ser olhado, impregnado com atividade e cor. É também um objeto para se refletir, ainda que não de forma sistemática ou com o espírito de resolução de um problema (..)” (17)


Navegando num mar de plástico, 
o  navio  de  guerra  austro-húngaro
veio buscar os refugiados sérvios

Talvez seja mais instrutivo e inspirador citar o próprio Fellini que, referindo-se à seu trabalho enquanto cineasta, na verdade, está sugerindo que não se trata do que você vai colocar ou excluir na montagem de um filme. As “falhas” de E la Nave Va a que Kezich se refere não foram inseridas de maneira “racional” na montagem. Foram inseridas na vida do próprio Fellini, ele apenas as transferiu para a película. Tente pegar a vida e ela escorrega entre seus dedos - pois é ela que nos pega. Na explicação pitoresca de Fellini: “Eu decidi renunciar, formalmente, por escrito, à ideia de que sou onipotente quando estou dirigindo. Quanto mais eu me convenço de que estou pilotando o navio, mais o navio vai para onde ele quer. Depois das primeiras semanas, eu não estou mais dirigindo o filme; o filme está me dirigindo. Não há nada de novo. Isso aconteceu com Geppetto também. Ele ainda estava lá trabalhando em seu precioso marionete quando, de repente, Pinóquio começa a chutá-lo” (18)

Percepção, Decepção e Recepção


 “(...)  Depois  de  Fellini  8 ½,  é 
meu  filme favorito  de Fellini”

Michelangelo Antonioni
A primeira projeção pública de E la Nave Va teve lugar no dia 10 de setembro de 1983, fora da competição, no 40º Festival de Veneza. Fellini ficou lisonjeado em saber que Ingmar Bergman havia pedido para assistir o filme dele numa seção privada – o cineasta sueco apresentou Fanny e Alexander (Fanny och Alexander, 1982) no Festival daquele ano. O fato de que Fellini não pediu para ver o filme de Bergman levou a especulações de que o italiano desdenhou o sueco. Contudo, de acordo com Tullio Kezich, a verdade é que Fellini gostava de fazer filmes, nas não de assisti-los, o que incluía seus próprios filmes:

“Obrigado a assistir E la Nave Va pela última vez ele disse, ‘quando sou forçado a assistir um de meus próprios filmes, sinto o mesmo desconforto de quando eu percebo a mim mesmo numa vitrine de loja – uma figura grande e desajeitada. E eu também sinto muito medo [no cinema], como se estivesse me olhando sentado numa cadeira diante de mim mesmo’. Ele acrescenta, ‘eu sinto que filmes são como ectoplasmas que mudam de acordo com o local onde são vistos – como quando você aborda um amigo em outra cidade ou situação e inicialmente não o reconhece. É um truque de mágica; filmes espelham sua platéia. Se a platéia está entediada, os filmes parecem entediantes para mim. Se a platéia está inquieta, eu também estou’. É um comentário estranho que revela um desconforto e uma preocupação consigo mesmo, e relutância para olhar a si mesmo a partir do exterior, o que, até então, ele disfarçou de várias formas em seus filmes” (19)

Kezich observou que E la Nave Va fez sucesso em Veneza naquele ano, elogios ao estilo e algumas críticas ao tamanho do filme. Em Paris, onde estreou no ano seguinte, foi considerado obra-prima. Já nos Estados Unidos, seria considerado enorme e chato. E la Nave Va não foi indicado para o Oscar, Kezich sugere que a razão está nas poucas cópias distribuídas então. Se ainda fosse preciso detalhar o desdém (e a estratégia mercadológica) dos donos do mercado norte-americano (e mundial) de cinema, poderíamos resgatar o comentário de alguém como o cineasta Woody Allen (com data provável do ano de 2009). Não é possível saber se o comentário também incluiria E la Nave Va, mas a referência à televisão não deixa dúvidas quanto aos efeitos dela também na terra do tio Sam (pelo menos em relação aos filmes estrangeiros): “Houve um tempo, em Nova York, em que havia muitos cinemas que exibiam filmes estrangeiros, mas todos foram fechados, por causa da concorrência da TV. Não se viu os últimos filmes de Fellini. Consegui que me mandassem uma cópia de A Voz da Lua. O mesmo se passou com Entrevista, que pude ver só agora, depois de todos esses anos. E isso com um dos diretores mais importantes do mundo...” (20)


Durante todo o processo de desenvolvimento de E la Nave Va Fellini foi uma celebridade bastante presente na mídia. Dava entrevistas na televisão, os jornais cobriam as filmagens e as fofocas. Contudo, Kezich observa que, enquanto Fellini era capaz de atrair plateias para os filmes dos outros, para os seus próprios filmes sua fama e nome não pareciam suficientes para atrair um grande público. Kezich especula a respeito de uma tendência na Itália da década de 80 do século passado em separar os artistas e a gente comum, os profissionais e a gente da rua. Além disso, uma nova geração de espectadores munidos do controle remoto da televisão busca incessantemente o espetacular e perde o interesse por histórias. De qualquer forma, crescia uma desconexão entre o interesse em relação a Fellini o personagem e a indiferença em relação a sua arte. Kezich cita uma nota no Giornale dello Spettacolo:

“A recepção ao filme E la Nave Va, de Fellini, é um caso interessante. Quando foi lançado, o filme foi elogiado por políticos (incluindo o presidente da República), elogiado por intelectuais e críticos. Recebeu um grande empurrão da cobertura televisiva. Ainda que modestamente, a promoção gigante funcionou apenas pelos primeiros cinco meses. Então, assim que o filme começou a passar nos cinemas, um declínio irresistível começou. O destino de E la Nave Va nos cinemas não foi afetado pela promoção da mídia. Evidentemente, os italianos gostam de falar sobre cultura, porém certamente estão cansados de ir vê-la” (21) (imagens a seguir, no alto, a dançarina Pina Bausch interpreta uma princesa cega; abaixo, a representação do eterno feminino segundo Fellini)


Em Rimini, cidade natal de Fellini, o dia de lançamento de E la Nave Va na Itália foi declarado Dia de Fellini. O Grande Hotel, onde aconteceu uma recepção para 1.500 convidados, foi decorado como o Rex. Segundo consta, dessa vez o cineasta gostou da bajulação quando a cidade televisionou a entrega de uma casa no porto como presente. Contudo, posteriormente Fellini teve de entrar na justiça, pois o imóvel não havia sido realmente comprado do verdadeiro dono – o caso se estendeu por anos. A piada em Rimini era: “Fellini fez A Trapaça [Il Bidone, 1955], mas Rimini o enganou” – neste filme um grupo de ladrões aplica golpes para arrancar dinheiro de gente pobre, inclusive se travestindo de religiosos. Triste episódio que mostra até que ponto certos países são capazes de humilhar seus próprios filhos. Mas nem tudo está perdido, numa entrevista em 1985 o cineasta italiano Michelangelo Antonioni não só afirmou que frequentava o cinema como deixou bem clara a importância de E la Nave Va em seu interesse na obra do amigo:

Eu sei que você vai ao cinema frequentemente. Quais diretores atuais você prefere? Meus gostos são muito inconstantes. De qualquer modo, são os filmes que me interessam mais do que os diretores. (até ‘grandes’ diretores podem fazer um filme ruim de vez em quando). Digamos – e esta não é uma lista exaustiva – que estou interessado em [Ingmar] Bergman, [Robert] Altman, Fellini, Woody Allen. Eu acredito, por exemplo, que o último filme de Fellini, E la Nave Va, foi absolutamente esplêndido. É o trabalho de um diretor que sabe o que quer e como consegui-lo num filme. Aparentemente, nada de extraordinário acontece a bordo daquele navio; afinal de contas, nada realmente inusitado pode acontecer num navio. No espaço de alguns dias os passageiros passam a se conhecer uns aos outros. No entanto, é claro, existe toda sorte de coisas acontecendo – de crises existenciais individuais ao conflito entre classes sociais e conspiração política para a guerra. Neste filme você pode ver toda a vida representada, ele chamou minha atenção desde o começo. É um trabalho muito perspicaz, conduzido com grande inteligência e ‘discrição’, sem nada da pompa que nem sempre Fellini consegue evitar. Você sente que o cineasta está olhando para o mundo com uma grande dose de respeito. Depois de Fellini 8 ½, é meu filme favorito de Fellini” (22)

O Rinoceronte e o Eterno Feminino 


Um rinoceronte  apaixonado  flutuando no bote 
salva-vidas. Seria a Europa ou o próprio Fellini?

O jornalista informa que alguns passageiros se salvaram e que o leite do rinoceronte é muito nutritivo. Encerra o filme a despedida de Orlando no bote salva-vidas, em companhia do rinoceronte deprimido. O primeiro pensamento que nos assalta ao visualizar aquele grande rinoceronte (animal que pesa várias toneladas) dentro do barco salva-vidas é de espanto, imediatamente nos vem à mente o contraste entre o mais pesado e o mais leve. Uma metáfora felliniana? Kezich comparou aquele animal à baleia branca do livro de Herman Melville, Moby Dick (1851), e Orlando a Ismael, o único sobrevivente do massacre perpetrado pelo grande cetáceo enfurecido. Como se Orlando/Ismael tivesse trazido Moby Dick para dentro do navio. A testemunha e o monstro, indispensáveis um ao outro, batendo-se contra a sociedade moribunda (aquela de 1914, às portas da Primeira Guerra Mundial) que rejeita o desconhecido (os refugiados sérvios, a gaivota que invade o salão de refeições). Então Orlando acolhe o monstro, força primordial da natureza, e se alimenta de seu leite (23). Contudo, Damian Pettigrew nos lembra de um elemento do corpo feminino muito presente nos filmes de Fellini: o leite materno. O cineasta explicou que,

“O leite materno é uma imagem muito italiana que utilizei uma ou duas vezes em meus filmes. A mulher é uma embaixadora, uma mediadora, e, portanto, um poderoso estímulo. Em E la Nave Va, o leite do rinoceronte tem conotações de alguma coisa inconsciente enterrada no homem que, se negligenciada, poderá inflamar e envenená-lo. O subconsciente é alimentado pela confusão, pelo imprevisto, pelo perpetuamente imóvel – e isso nos assusta. Mas é por isso que devemos explorar essas zonas obscuras. Ignorar o subconsciente é se mutilar. O final de E la Nave Va, com Freddie Jones expondo a qualidade nutritiva do leite do rinoceronte é baseada num hábito pessoal meu. Eu começo toda manhã com um grande copo de leite de rinoceronte especialmente trazido do Quênia, e os efeitos benéficos são impressionantes – estou gerando uma nova safra de cabelo em minha cabeça” (24)

Seria mais uma piada de Fellini? Noutra ocasião ele relacionou o estado de prostração do rinoceronte a relações sexuais. A deixa foi quando a moça que Orlando achava misteriosa (o eterno feminino) vira-se em sua direção (nossa direção?) e sussurra que o animal está apaixonado. Quando, no mesmo momento, Fellini faz um dos cantores de ópera dizer que no seu caso amar o deixa radiante, temos a impressão de que o cineasta dá uma chance à hipótese de que estar amando não é o mesmo que estar com problemas. Contudo, caso não se trate apenas de mais uma piada de Fellini, resolve a questão com mais uma de suas “memórias”. Desta vez ele fala de sexo, desfazendo a sutileza sobre o que poderia ser o amor: “O rinoceronte é um parente distante da zebra doente que eu ajudei a lavar quando era garoto em Rimini. Minha teoria a respeito do porque a zebra estava doente era que ela não havia feito sexo em sua vida. Como ela poderia sentir-se bem? Afinal de contas, havia apenas uma zebra naquele circo. O rinoceronte está apaixonado. Somente um rinoceronte é o mesmo que uma zebra” (25). No final das contas, talvez certa dose de melancolia presente em E la Nave Va tenha sido (incluindo aquele momento hilário em que o rinoceronte defeca enquanto é içado pelo guindaste para tomar ar fresco fora de seu claustro nos porões do transatlântico) a melhor maneira encontrada por Fellini para libertar um de seus últimos (e inspirados) suspiros por seu amado cinema. 


Exceto por variações de configuração do texto que não modificam seu conteúdo, Quando o Cinema Suspira: E la Nave Va foi publicado originalmente na Revista Universitária do Audiovisual (seção Panorama), da Universidade Federal de São Carlos, São Paulo (RUA/UFSCar). Abril de 2013.

Leia também:

Notas:

1. BONDANELLA, Peter. Italian Cinema. From Neorealism to the Present. New York/London: Continuum, 3ª ed., 2008. P. 385.
2. GRAZZINI, Giovanni. Fellini par Fellini. Entretiens Avec Giovanni Grazzini. Paris: Flammarion, 1984. P. 63.
3. PETTIGREW, Damian. I’m A Born Liar. A Fellini Lexicon. New York: Harry Abrams Inc., 2003. P. 53.
4. BONDANELLA, P. Op. Cit., pp. 384-5.
5. Idem, p. 385.
6. QUINTANA, Àngel. Federico Fellini. Paris: Cahiers du Cinéma, 2007. P. 80.
7. BRUNETTA, Gian Piero. The History of Italian Cinema. A Guide to Italian Film from its Origins to the Twenty-First Century. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 2009. P. 258-9.
8. PETTIGREW, Damian. Op. Cit., p. 129.
9. Idem, p. 112.
10. FINK, Guido. ‘Non Senti Come Tutto Questo Ti Assomiglia?’ Fellini’s Infernal Circles. In: IANNUCCI, Amilcare A. Dante, Cinema & Television. Toronto/Buffalo/London: University of Toronto Press Incorporated, 2004. P. 173.
11. CHANDLER, Charlotte. I, Fellini. New York: Random House, 1995. P. 222.
12. Idem.
13. BONDANELLA, P. Op. Cit., pp. 386-8.
14. Idem, p. 387-8.
15. KEZICH, Tullio. Federico Fellini. His Life and Work. New York/London: I.B. Taurus, 2006. P. 355.
16. CHANDLER, C. Op. Cit., p. 222; KEZICH, T. Op. Cit., pp. 350-1, 354.
17. KEZICH, T. Op. Cit., pp. 354-5.
18. Idem, p. 352.
19. Ibidem, p. 356.
20. FELLINI, Federico. A Arte da Visão. Conversa com Goffredo Fofi e Gianni Volpi. Tradução Sérgio Maduro. São Paulo: Martins Fontes, 2012. P. 67.
21. KEZICH, T. Op. Cit., p. 357.
22. ANTONIONI, Michelangelo. Architecture of Vision. Writings and Interviews on Cinema. USA: University of Chicago Press, 1996. Pp. 235-6; TASSONE, Aldo. Antonioni. Paris: Flammarion, 2007. Pp. 413-4.
23. KEZICH, T. Op. Cit., p. 355.
24. PETTIGREW, D. Op. Cit., p. 129.
25. CHANDLER, C. Op. Cit., p. 224.