31 de mai. de 2015

Do Peplum ao Faroeste Espaguete



O Pano de Fundo Histórico

Desde o princípio, o cinema italiano produziu filmes dos mais variados gêneros, dentre eles o épico histórico. Dois homens estão ligados tanto ao nascimento do cinema na Itália quanto à reconstituição cinematográfica, o produtor Arturo Ambrosio e o empresário, cineasta e inventor Filoteo Alberini – que em 1895 ele patenteou o Cinetógrafo Alberini, precursor da máquina de filmar (1). Em 1905, Alberini produziu e dirigiu A Tomada de Roma (La Presa di Roma (20 Settembre 1870)), considerado o primeiro filme histórico italiano de valor - aborda a unificação da Itália durante o Risorgimento. Ambrosio produziria em 1908 Os Últimos Dias de Pompéia (Gli Ultimi Giorni di Pompeia, direção Luigi Maggi). Em 1911, a novidade do longa-metragem chega com O Inferno (l’Inferno), adaptação da Divina Comédia (co-direção Francesco Bertolini, Adolfo Padovan, Giuseppe de Liguoro). Na seqüência, A Queda de Tróia (La Caduta di Troia, co-direção Luigi Romano Borgnetto e Giovanni Pastrone, 1910). Enrico Guazzoni desenhou os cenários de Brutus, Agrippina e Os Macabeus (I Maccabei), os três de 1911. Seu Quo Vadis? (1913) apresenta os maiores cenários e elenco até então - leões, cristãos e gladiadores na arena e Roma em chamas. (imagem acima, Por Um Punhado de Dólares, direção Sergio Leone, 1966)

O Inferno está repleto de diabos com asas de morcego, que retornarão em maior número com Maciste no Inferno (Maciste all’Inferno, direção Guido Brignone, 1925). Décadas depois, reencontraremos as mesmas figuras aladas na seqüência final de Os Contos de Canterbury (I Racconti di Canterbury). Dirigido por Pier Paolo Pasolini em 1972, a maior parte dos comentadores referencia essas figuras apenas aos quadros do pintor holandês Hieronymus Bosch (1450-1516). (imagens abaixo, Os Últimos Dias de Pompéia, direção Mario Caserini, 1913)


Embora Peter Bondanella afirme que não se pode dizer que o primeiro cinema mudo italiano era dominado pelo épico histórico, admite que este gênero represente o produto mais popular daquela indústria nascente. Com Cabiria (1914) Giovanni Pastrone eleva ao máximo do refinamento o épico histórico até então. Ambientado na Segunda Guerra Púnica entre Cartago e Roma, Pastrone apresentou uma variedade enorme de cenários. O templo de Moloch (com 40 metros de altura) e o palácio com suas estátuas de elefantes sustentando o teto, estão entre os pontos altos do cenário. Foi neste filme que Bartolomeo Pagano estreou como o herói musculoso Maciste. A influência de Cabiria pode ser sentida na seqüência de Moloch em Metropolis (1927), do alemão Fritz Lang, e nos cenários da Babilônia e sequências de batalha em Intolerância (Intolerance, 1916), do norte-americano D.W. Griffith (2). Não obstante, na opinião de Bondanella, Os Últimos Dias de Pompéia, de Caserini, seria a chave da popularização dos épicos históricos na Itália e no exterior.

Apesar do interesse no realismo histórico, Pastrone preferiu acreditar que o impacto emocional na plateia seria mais efetivo com personagens fictícios. Eis porque a narrativa de Cabiria não gira em torno de personagens históricos, mas de uma menina totalmente inventada chamada Cabiria – capturada em Catânia (Sicília) e vendida como escrava por piratas cartagineses, sendo libertada por Maciste. Apesar do sucesso internacional que por algum momento colocou a indústria cinematográfica italiana na vanguarda mundial, o roteirista e cineasta italiano Carlo Lizzani chamou Cabiria de “beco sem saída”. A obsessão com um tema “irreal” localizado no passado distante, o fardo econômico imposto pelo nascente culto das estrelas de cinema e a influência da obra de Gabriele D’Annunzio, seriam obstáculos intransponíveis para o realismo no cinema mudo. Contudo, observa Bondanella, a corrente realista nunca foi popular entre a plateia italiana.

Duas exceções na época são Assunta Spina (co-dirigido por Francesca Bertini e Gustavo Serena, 1915) e Perdidos no Escuro (Sperduti nel Buio, direção Nino Martoglio, 1914). O primeiro, ambientado em Nápoles, tinha um estilo cru, documental. O segundo, é uma adaptação de uma peça de Roberto Bracco. A narrativa ambientada nas favelas de Nápoles acompanha a saga de uma menina do povo rejeitada pelo pai rico. Sperduti nel Buio é considerado uma obra-prima digna de figurar na tradição artística que levaria a Roma, Cidade Aberta (Roma Città Aperta, direção Roberto Rossellini, 1945) e Ladrões de Bicicleta (Ladri di Biciclette, direção Vittorio De Sica, 1948).

Praticamente desde os primeiros passos do cinema na Itália os filmes épicos ocuparam as telas. Geralmente ambientados na Antiga Roma, cada vez mais um subgênero ganhava corpo. Os filmes com heróis musculosos sempre foram populares, após a Segunda Guerra seriam referidos como filmes de “sandália e espada”, ou Peplum (palavra que remete à túnica usada pelos heróis daqueles filmes, invariavelmente musculosos e seminus). O cineasta Vincenzo Leone (que usava o pseudônimo Roberto Roberti), pai do Sergio do faroeste espaguete, foi o responsável pela descoberta de Bartolomeo Pagano, estivador genovês que será o primeiro Maciste das telas de cinema em Cabiria. Pagano se manteve no papel por 14 filmes até 1927. No movimento de fluxo-refluxo característico do cinema italiano, o Peplum seria retomado na década de 50, até que desse lugar ao próximo surto criativo, o faroeste espaguete de Sergio Leone (ele próprio tendo dirigido dois Pepluns, participado da equipe de outros tantos) (3). (imagens abaixo, Cabiria, direção Giovanni Pastrone, 1914)


O homem-músculo Zampanò, o troglodita que comprou Gelsomina em A Estrada da Vida (La Strada, 1954), se não é uma citação de Fellini, é muito pertinente. A prostituta Cabíria de Noites de Cabíria (Notti di Cabiria, 1957), é outra citação de Fellini, agora ao filme de Pastrone. O gênero sobrevive hoje fora do universo greco-romano, nos filmes de Sylvester Stallone Arnold Schwarzenegger e seus muitos clones. Quando Mussolini subiu ao poder a partir de 1922, implementou uma política de esportes bastante ampla, e o ciclo cinematográfico dos homens-músculo acabou se fundindo a ela. Afinal, Il Duce estava empenhado em restabelecer o poder da Antiga Roma e também em provar a superioridade da “raça italiana”. Além de Pagano, outros nomes surgiram para incorporar Sansão, Hércules, Saetta e Ajax. Em Maciste Contra o Sheik (Maciste Contro lo Sceicco, direção Mario Camerini, 1926), Pagano (que conta como um “personagem” real) marca sua origem humilde de fora da tela enfatizando seus músculos de estivador desde os créditos iniciais. A carreira de Camerini foi marcada por uma profunda relação com Hollywood, tendo inclusive colaborado em Ulisses (1954), um Peplum com o ator norte-americano Kirk Douglas – apresentando a atriz italiana Silvana Mangano como Circe/Penelope (4).

Em Maciste Contra o Sheik, o padrão da narrativa sofre pouca variação no ciclo de filmes dos homens-músculos. A inocência está em perigo, neste caso uma jovem herdeira sofrendo nas mãos do tio. Será vendida para o harém de um sheik na África do Norte (uma região que Mussolini cobiçava colonizar). Maciste entra em cena, salva a mocinha e desvenda a conspiração. Naquela época como atualmente, o filme está mais focado nas demonstrações de força de Maciste do que num enredo específico. De acordo com Steven Ricci, este tipo de filme compartilha pelo menos três elementos temáticos com a cultura física fascista: 1) Ação é uma qualidade moralmente purificadora, e, portanto, a melhor resposta à corrupção, decadência e intriga; 2) A aplicação moral da força física é altruísta e quase sempre motivada pela necessidade de defender um inocente (a falta de interesse pessoal explicaria parcialmente a ausência de elementos românticos); 3) Na maioria dos casos, a ação (heróica) é particular, uma questão de habilidade do indivíduo para vencer grandes desafios - Maciste luta contra toda a tripulação de um navio para impedir que a herdeira seja estuprada. Também luta contra tubarões e contra todo o exército do Sheik (5).

O Peplum de Mussolini


Em Maciste l’Alpino (direção Luigi Romano Borgnetto e Luigi Maggi, 1916), Pagano é um soldado italiano durante a I Guerra Mundial que liquida com os inimigos austríacos. Enquanto isso, no mundo real, o exército italiano sofria pesadas baixas nos campos de batalha da I Guerra Mundial. O patriotismo fez a popularidade desse filme até o final da década de 20. Além do mais, ressaltou Ricci, o triunfo da ação sobrepujando a diplomacia ineficiente funde o espírito do Movimento Futurista italiano com o nacionalismo fascista. As lutas de Maciste contra inimigos estrangeiros ecoam as primeiras falas de Mussolini em relação à necessidade de poder absoluto e antecipa seu racismo da segunda metade dos anos 30. A sobreposição da produção cultural com os discursos políticos era apresentada como a combinação entre impulsos modernistas (expressos no Futurismo) e o culto de mitologias tradicionais, personificadas em figuras como Maciste, Hércules e Sansão. (imagens acima, Cipião, o Africano, 1937)

O uso da violência como resposta à corrupção também estava em harmonia com a primeira forma de expressão política do movimento fascista - o squadrismo. Ademais, uma superioridade moral e física era apresentada com algo ao alcance do público através das atividades esportivas organizadas pelo Estado. A própria figura de Mussolini era a encarnação da política do regime. Ele aparecia publicamente sem camisa, praticando esportes, cavando a terra ou usando uma marreta. Ricci destaca o comentário de Gian Piero Brunetta sobre a relação que parecia bastante direta entre o gestual de Mussolini e o de Pagano na tela de cinema. O estilo de protetor dos pobres, mulheres e crianças, típico da figura de Maciste, era transferido pela imaginação popular para Mussolini. Com o declínio da produção cinematográfica italiana no final da década de 20 os filmes de fortões desapareceram, sendo substituídos pelo resgate de temáticas e problemáticas ideológicas, ao mesmo tempo em que anunciavam algumas mudanças de prioridades do governo.

Na opinião de Bondanella, talvez o mais famoso de todos os filmes que claramente seguiam a ideologia do regime fascista foi uma obra sobre a Segunda Guerra Púnica, Cipião, o Africano (Scipione l’Africano, direção Carmine Gallone, 1937). Com sete mil figurantes e uma ambiciosa reconstituição da batalha de Zama (ocorrida em 202 a.C.), a temática seria evocada objetivando buscar apoio popular para os interesses imperais de Mussolini na África. Por conta disso, Bondanella acredita que este filme não poderia ser classificado como entretenimento escapista (6). Sendo assim, se os homens musculosos apareciam como figuras de culto, expressão pan-histórica de uma força moral, filmes como Cipião, o Africano construíam sua narrativa como se os eventos fossem a realização de histórias inacabadas, de legados históricos a serem atualizados. Focado na Renascença, Condottieri, dirigido por Luigi Trenker em 1937, também se encaixa nessa categoria. Voltando à Cabiria, Ricci sugeriu que a figura de Maciste no cartaz da versão sonorizada lançada em 1931 lembra Mussolini – e até mesmo o atual Primeiro Ministro Silvio Berlusconi (7).

O Futuro no Passado


O ciclo Maciste-Sansão-Hércules compreende o único grupo de obras que obteve sucesso contínuo até a década de 20. A partir daí a indústria o expandirá com produções sobre a Roma Antiga até declinar, ressurgindo de forma significativa durante o período fascista. Mais de 20% dos filmes italianos produzidos entre 1929 e 1943 reconstituem cenários históricos como pano de fundo de uma trama ficcional. Os filmes com os fortões ressurgirão durante o Milagre Econômico italiano do pós-guerra no início da década de 60, quando o ator Steve Reeves substituirá Bartolomeo Pagano.

No final da década de 40 e começo da seguinte, o gênero do momento era o film-fumetto (1948 a 1954), o sentimental lacrimejante, baseado em folhetins de revistas femininas (em 1952 somavam mais de 30 % do cinema italiano). Em meados da década de 50, era a hora da comédia burlesca (1955 a 1958). Com destaque para o comediante Totó, que também participou de sátiras ao Peplum: Totó e Cleópatra (1963), Totó Contra Maciste (Totò Contro Maciste) (imagem acima), Totó Contra o Pirata Negro (Totò Contro il Pirata Nero, 1964; os três sob a direção de Fernando Cerchio) e Totó da Arábia (Totò d’Arabia, direção Jose Antonio de la Loma, 1966). No Brasil, a sátira ao Peplum ficou a cargo de Oscarito em Nem Sansão Nem Dalila (direção Carlos Manga, 1954), paródia de Sansão e Dalila (direção Cecil B. de Mille, 1949). De fato, a primeira sátira após o advento do som no cinema italiano foi ao Peplum, com Nero (Nerone, direção Alessandro Blasseti, 1930).

No final da década de 50, quando os dramas e filmes de óperas já não encontravam financiamento, era hora dos “épicos mitológicos”. No imediato pós-guerra, houve certa produção de filmes históricos em reação ao advento do Neo-Realismo – reação “não intencional” na opinião de Marinucci. Em 1953 já se ensaiava o retorno ao Peplum com Ulisses (direção Mario Camerini), Spartaco e Teodora (ambos dirigidos por Riccardo Freda) e Attila (direção Pietro Francisci). Um retorno frustrado por questões financeiras (8). Diminuía o interesse nos filmes de espada e sandália e seria preciso uma adaptação: saem os homens musculosos, entram aqueles bons no gatilho.

Da Túnica ao Espaguete


Os produtores italianos e espanhóis acordaram para o faroeste apenas depois do sucesso na Europa da série de filmes alemães Winnetou, o Guerreiro (9). Além disso, quando Sergio Leone (1929-1989) dirigiu Por Um Punhado de Dólares (Per un Pugno do Dollari, 1964) (imagem acima), 25 faroestes já haviam sido filmados em Cinecittà. Peter Bondanella fala em 400 filmes entre 1963 e 1973, e não acredita que a obra de Leone sozinha explicaria o aumento da produção em período tão curto. Alguns sugerem que esse sucesso se deve também ao decréscimo na produção de faroestes em Hollywood - 1958 (54), 1962-3 (11), voltando a crescer em 1967 (37) devido ao sucesso de Leone (10).

Na Itália, os faroestes italianos se chamavam “faroeste à italiana”. No resto do mundo, a expressão “faroeste euro” vem se popularizando (11). No princípio, Sergio Leone considerava “faroeste espaguete” uma expressão um tanto pejorativa, mas depois mudou de idéia. De fato, a expressão era pejorativa nos Estados Unidos entre as décadas de 60 e 70.

Sergio Leone se inspirou em Yojimbo (direção Akira Kurosawa, 1961) para escrever o roteiro de Por Um Punhado de Dólares (Per un Pugno di Dollari, 1964), primeiro filme da Trilogia dos Dólares – ou Trilogia do Homem sem Nome -, e também foram muitas as influências hollywoodianas. Monsieur Verdoux (direção Charles Chaplin, 1947) é um caso a parte. Para Leone, o personagem era um modelo de pistoleiro, bandido e caçador de recompensas (12).

O velhinho que fabrica caixões em Por Um Punhado de Dólares chamará o Homem sem Nome de Joe (personagem de Clint Eastwood). Seguiram-se “Django” (com Franco Nero), “Ringo” (com Giuliano Gemma), “Estranho” (com Tony Anthony), “Sartana” (com Gianni Garko) – todos engendraram inúmeras imitações. Frayling contou 16 Djangos, e 14 Ringos e Sartanas e identificou subgêneros como o faroeste de horror, o thriller, o musical, a comédia (como os filmes da série Trinity), o circense (Sabata, 1969) e o faroeste político (13).


Sergio Leone, que no começo da carreira utilizou o pseudônimo Bob Robertson, dividiu os faroestes que dirigiu em duas trilogias (que até certo ponto falam do mesmo assunto). Primeiro a Trilogia dos Dólares, composta de Por Um Punhado de Dólares, Por Uns Dólares a Mais (Per Qualche Dollaro in Più, 1965) (imagem acima) e Três Homens em Conflito (Il Buono, Il Bruto, Il Cattivo, 1966). A segunda, mais direcionada à história dos Estados Unidos, com Era Uma Vez no Oeste (C’era Una Volta il West, 1968), Quando Explode a Vingança (Giù la Testa, 1971) e Era Uma Vez na América (Once Upon a Time in America, 1984) - este último, uma história de gangsters.

Na Trilogia dos Dólares não existe nenhuma mensagem moral universal, assistimos a uma sistemática profanação de elementos católicos e o Homem sem Nome não tem vida em família. Outra característica marcante na trilogia são os “duelos circulares”. Apenas Quando Explode a Vingança é explicitamente político, embora a intenção de Leone com este filme tenha sido justamente satirizar o faroeste espaguete político (14).

A última participação de Leone no gênero espaguete se deu em Meu Nome é Ninguém (Il Mio Nome è Nessuno, 1973). Dirigido por Tonino Valerii, foi produzido e supervisionado por Leone - que também elaborou a estória. Assumiria a direção em função de desentendimentos na equipe – couberam a ele as sequências do saloon e o carnaval. Inicialmente se pretendia transformar em bangue-bangue a Odisseia, de Homero - a quem Leone considerava o maior autor de faroestes - mas se tornou um comentário sobre os faroestes populares de Trinity e um adeus ao faroeste italiano (15).

Há quem tenha visto nas imagens de Leone as paisagens surrealistas e extraterrestres de Salvador Dali (16). O próprio Leone era um colecionador de Giorgio De Chirico, conhecido por suas paisagens metafísicas e arquitetura Art Deco. De acordo com Cox, Leone utilizava o rosto dos personagens como uma paisagem (17). Jacques Aumont mostrou como a introdução da tela gigante do Cinemascope mudou nossa percepção do rosto humano. Chega a falar de uma “derrota do rosto”. Sergio Leone seria um expoente máximo dessa tecnologia - o enquadramento em Scope impossibilita a identificação do quadro com uma janela ou ponto de vista. Com os super closes de Leone os rostos se desfazem, tornando-se paisagens abstratas (18).


Além das citações e dos close-ups gigantescos do rosto humano, a obra de Leone guarda algumas surpresas que passarão a fazer parte da história do cinema. Como em Era Uma Vez no Oeste, quando o pistoleiro Frank chega à casa de Brett McBain e mata todo mundo. Leone conseguiu colocar o ator Henry Fonda na pele de Frank, o que soava como uma espécie de sacrilégio para as plateias norte-americanas. Naquela época, quando este filme passava na televisão dos Estados Unidos, a cena era cortada antes de Frank/Fonda atirar numa criança – entrava o intervalo comercial e retornava na cena seguinte (19). Fonda imaginou o que as pessoas diriam quando vissem o close-up gigante de seu rosto antes de atirar no menino: “Meu Deus! É o Henry Fonda!” (20). (imagem acima, Henry Fonda em Era Uma Vez no Oeste, embora não se trate da cena citada)

Convidado para auxiliar no roteiro de Era Uma Vez no Oeste, a primeira ideia de Bernardo Bertolucci foi encher o projeto com citações de faroestes (21). Em sua opinião, este foi primeiro e último faroeste pós-moderno! Mais do que isso, Frayling afirmou que o filósofo francês Jean Baudrillard considera Leone o primeiro cineasta pós-moderno (22). Segundo Bertolucci, sua maior contribuição foi persuadir Leone a incluir uma mulher como protagonista e que, com exceção de Roberto Rossellini, Michelangelo Antonioni, Luchino Visconti e Vittorio De Sica, Leone foi o único cineasta italiano a fazer alguma coisa diferente (23). (imagem abaixo, uma recepcionista de hotel em Era Uma Vez no Oeste)

As Mulheres de Sergio Leone


No faroeste espaguete as mulheres se restringem aos papéis de prostitutas, recepcionistas e camponesas mexicanas que vivem fora da cidade. Uma das exceções é Jill em Era Uma Vez no Oeste. Embora também não tenha escapado do padrão, já que desempenha uma série de papéis passivos e se encaixa no clichê prostituta-santa! Ela representa o matriarcado, e aquilo que Frayling chamou de “o mundo sem bolas de Leone”. Nos faroestes espaguetes geralmente não existem professoras, filhas de juízes, esposas de rancheiros ou mulheres ricas do leste tentando construir uma vida no oeste (24). Frayling admite a “misoginia do espaguete”. Nas palavras de Leone,

“Se as mulheres têm uma função secundária em meus filmes, é porque meus personagens não têm tempo para se apaixonarem ou cortejar ninguém. Eles estão muito ocupados tentando sobreviver ou alcançar seus objetivos, sejam quais forem. Nos faroestes, os papeis femininos são quase sempre ridículos. O que veio fazer Rhonda Fleming em Sem Lei e Sem Alma [Gunfight at Ok Corral, 1957]? Ela serve apenas para colocar o herói, Burt Lancaster, em evidência. Se suprimíssemos seu papel, o filme teria ganhado, a ação poderia ter sido mais rápida. É bem diferente se o personagem feminino está no coração da história, como Claudia Cardinale em Era Uma Vez no Oeste [C’era Una Volta il West, 1968]. O que eu quero dizer, é que podemos ter uma abordagem distanciada, europeia, do faroeste, mantendo-se apaixonado pelo gênero” (25)

Referindo-se a um “faroeste freudiano de Hollywood”, Andrew Sarris mostrou que o papel do homem se viu amplificado ao ganhar uma parceira. Por outro lado, o faroeste espaguete a reduziu ao mero detalhe num ambiente homo-social (bares, tiroteios, brigas, etc.). Entretanto, Claudia Cardinale acredita que as mulheres eram importantes para Leone. Até a feminista Simone de Beauvoir gostava dos filmes dele (26). Questões freudianas à parte, é curioso saber que, em 1913, surgiu o primeiro faroeste italiano, La Vampira Indiana. Foi estrelado por Edvige Valcarenghi (nome artístico Bice Walerian), uma atriz de teatro que abandonaria os palcos em 1929 para cuidar de seu único filho, Sergio Leone – o diretor do filme foi o pai de Sergio (27).

Meu Nome é Antônio


De acordo com o cineasta Walter Lima Junior, assistente de direção e co-roteirista de Deus e o Diabo na Terra do Sol (direção Glauber Rocha, 1964), Antônio das Mortes (personagem de Maurício do Valle) influenciaria o faroeste espaguete em geral com sua capa preta. Lima Junior foi enfático, isso vale para o faroeste “do Sergio Leone e de muitos outros”. Maurício foi convidado para filmar na Itália, mas não viajou – ou não houve confirmação do convite. Antônio das Mortes reaparecerá em O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro (1969), lançado como Antônio das Mortes na Europa (28). Frayling considerou Antônio das Mortes “um herói do faroeste”. Por outro lado, Frayling creditou a invenção dos casacos longos usados pelos pistoleiros no início de Era Uma Vez no Oeste (e noutros faroestes) à pesquisa dos desenhistas de Leone e dele próprio (29). Seja como for, mesmo mais claros, lembram o de Antonio das Mortes. Em 1970, Glauber elogiaria o filme e criticaria o corte de meia hora no lançamento brasileiro – assistiu oito vezes (30). (imagem acima, Meu Nome é Ninguém, 1973)

Em O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, entre outras coisas, Glauber desejava recuperar a atmosfera dos faroestes norte-americanos que haviam causado nele grande impressão – Pistoleiros ao Entardecer (Guns in the Afternoon, direção Sam Peckinpah, 1961), além de três dos filmes de John Wayne para Howard Hawks: Onde Começa o Inferno (Rio Bravo, 1959), El Dorado (1967), Rio Lobo (1970) (31). Um ponto de partida para Rocha foi a exploração crítica do mito do Oeste e a realidade da fronteira contida nestes filmes. Certa vez Glauber se referiu a Rio Vermelho (Red River, 1948) de Hawks dizendo: “Você vê, é épico, isso é Homero! Parecem caubóis, mas são gregos, os heróis, aqueles do princípio da narração ocidental” (32). Contudo, na medida em que as filmagens de O Dragão aconteciam, esse tema foi se desmanchando. Numa entrevista ao Cahiers du Cinema em 1969, Glauber explicou sua mudança:

“Antônio é um matador – ligado a sua própria tradição cultural; mas ele também se relaciona a outra tradição – aquela do faroeste. Tudo que faz com que ele se pareça com um herói do faroeste ‘trabalha’ em todo tipo de país – Japão, Brasil, América, Sicília... Essa mística associada com os heróis do faroeste é uma tradição de tipo especial. Nos filmes americanos, sempre existe a realidade, e um tipo de questionamento do mito que o ultrapassa. Para nós, é mais complicado. Num Faroeste Americano, já existe uma linguagem estabelecida: quando o herói chega, nós sabemos quem ele é pelo seu cavalo, ou por suas roupas: ele carrega todo tipo de informação com ele por aí. Em nossos filmes, ele não pode carregar essa informação consigo por aí porque não temos nenhuma tradição cinematográfica desse tipo. Talvez isso seja uma limitação no desenvolvimento de nosso cinema” (33) (imagem abaixo, Três Homens em Conflito, 1966)


José Carlos Avellar esclareceu que Glauber se inspirou no major José Rufino (que matou mais de 40 cangaceiros, e matou Corisco em situação mais ou menos idêntica à de Deus e o Diabo na Terra do Sol) para compor o personagem de Antônio das Mortes (34). Rufino era um matador de cangaceiros, que, entretanto, se vestia mais como eles do que com Antônio das Mortes. Na verdade, quem andava com aquela capa colonial típica dele eram os jagunços matadores da região natal de Glauber na fronteira entre Minas Gerais e Bahia. A capa escura e comprida, a sombra do chapéu e a barba por fazer compondo o rosto com um casaco, fazem de Antônio das Mortes um personagem singular, tanto em Deus e o Diabo na Terra do Sol quanto em O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro. Na opinião de Avellar, o segundo filme era uma espécie de anti-faroeste.

Aos nove anos de idade, Glauber Rocha já criava pequenos storyboards. O primeiro de todos talvez seja uma história de cangaceiros chamada Faroeste na Bahia. O próprio Glauber admitiu uma paixão de infância pelo faroeste (“tudo que eu quero é fazer faroestes”). Já adulto, nutrindo amor e ódio por John Ford, admitiu que Deus e o Diabo na Terra do Sol era fruto da impossibilidade de fazer um faroeste ao estilo do irlandês. Como no Brasil não temos nem caubóis nem índios (hollywoodianos), concluiu o cineasta, concentrou-se nos cangaceiros e vaqueiros (35).

Do Peplum ao Faroeste Espaguete foi publicado originalmente na Recine, revista do Festival de Cinema de Arquivo. Ano 8, nº8, Brasil e Itália em Tempo de Cinema. Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, novembro de 2011.
Notas:

1. BONDANELLA, Peter. Italian Cinema. From Neorealism to the Present. New York/London: Continuum, 3ª ed, 2008 [1983]. pp. 1, 3, 8.
2. FINLER. Joel W. Silent Cinema. World Cinema Before the Coming of Sound. London: B.T. Batsford Ltd, 1997. pp. 47, 49.
3. FRAYLING, Christopher. Spaghetti Westerns. Cowboys and Europeans from Karl May to Sergio Leone. London/New York: I. B. Tauris, 2ª ed., 2006. pp.96-7.
4. RICCI, Steven. Cinema & Fascism. Italian Film and Society, 1922-1943. Berkeley: University of California Press, 2008. p. 204n28.
5. Idem, pp. 81-8, 200n5 e n8, 206n4.
6. BONDANELLA, Peter. Op. Cit., p. 19.
7. RICCI, Steven. Op. Cit., pp. 90, 18.
8. MARINUCCI, Vinício. Tendenze del Cinema Italiano. Roma: Unitalia Film, 1959. Pp. 37, 40, 48.
9. OLIVEIRA, Roberto Acioli de. O Avô Alemão do Faroeste Espaguete. Disponível em: <http://cinemaeuropeu.blogspot.com/2010/09/o-avo-alemao-do-faroeste-espaguete.html> Acessado em: 30/03/2011.
10. BONDANELLA, Peter. Italian Cinema. From Neorealism to the Present. London: Continuum, 3ª Ed., 2008. pp. 253.

11. FRAYLING, Christopher. FRAYLING, Christopher. Il Était Une Fois em Italie. Les Westerns de Sergio Leone. Paris: Éditions de La Martinière, 2005. Catálogo de exposição. pp. 176-8.
12. Leone se recusou a admitir plágio, afirmando que apenas havia conservado a estrutura de Yojimbo. De qualquer forma, esclareceu Leone, Yojimbo é baseado em Colheita Sangrenta (Red Harvest, 1929), do escritor norte-americano Dashiell Hammett. Por sua vez uma reedição de Arlecchino, Servidor de Dois Amos (Arlecchino servitore di due padroni, 1743), do italiano Carlo Goldoni. Frayling sugere outro antecedente: O Corruptor de Hadleyburg (The Man That Corrupted Hadleyburg, 1899), de Mark Twain. OLIVEIRA, Roberto Acioli de. O Irmão Japonês do Faroeste Espaguete. Disponível em: <http://cinemaitalianorao.blogspot.com.br/2010/09/o-irmao-japones-do-faroeste-espaguete.html> Acessado em: 30/03/2011.
13. FRAYLING, Christopher. Op. Cit., 2006, pp. XI, XII, XIV.
14. Ibidem, p. 230.
15. _________________. 2005. Op. Cit., pp. 68-9.
16. _________________. 2006. Op. Cit., pp. 181-2.
17. Alex Cox em O Resultado, nos extras de Era Uma Vez no Oeste, lançado no Brasil em 2003 pela Paramount Pictures.
18. AUMONT, Jacques. Le Visage au Cinéma. Paris: Éditions de l’Etoile/Cahiers du Cinéma, 1992. pp. 155-7.
19. Frayling em Era Uma Vez...
20. Frayling e Fonda em Uma Ópera de Violência... No DVD extra da edição brasileira existem três documentários: Uma Ópera de Violência, O Resultado e Algo Relacionado à Morte. Apenas no final do último há créditos, sugerindo que se trate de um documentário dividido artificialmente. A direção foi de Lancelot Narayan, 2003, Paramount Pictures.
21. SIMSOLO, Noël. Conversation Avec Sergio Leone. Paris: Cahiers du Cinéma, 3ª ed., 2006. p. 125.
22. Uma Ópera de Violência...
23. Bertolucci em Uma Ópera de Violência... e FRAYLING, Christopher. Op. Cit., 2005. p. 161.
24. FRAYLING, Christopher. Op. Cit., 2006. pp. XV-XVI, 103, 129, 200-2.
25. _________________. Op. Cit., 2005. p. 76.
26. OLIVEIRA, Roberto Acioli de. As Mulheres de Sergio Leone. Disponível em:< http://cinemaitalianorao.blogspot.com.br/2010/11/as-mulheres-de-sergio-leone.html >Acessado em: 30/03/2011.
27. FRAYLING, Christopher. Op. Cit., 2005. p. 15 e Cardinale em Algo Relacionado à Morte...
28. Walter L. Junior nos extras do DVD de Deus e o Diabo..., lançado no Brasil pela Versátil Home Vídeo.
29. Frayling na faixa de comentários do DVD de Era Uma Vez...
30. ROCHA, Glauber. VIVA LEONE. Semanário O Pasquim. Seção Dicas. Rio de Janeiro, 1970.
Disponível em: http://www2.tempoglauber.com.br/index.php. Acessado em: 07/02/2011.
31. O que foi chamado por alguns de Western Feijoada teve seus dias de glória no Brasil. Rodrigo Pereira, que escreveu uma dissertação de Mestrado sobre o tema - Western Feijoada: o faroeste no cinema brasileiro (2002, UNESP/ECA) -, afirmou que as únicas fontes bibliográficas para avaliação do gênero são revistas e jornais antigos. Disponível em:
<http://www.cinequanon.art.br/entrevistas_detalhe.php?id=3> Acessado em: 11/02/2011.
32. PIERRE, Sylvie. Glauber Rocha. Paris: Cahiers du Cinéma, 1987. p. 216.
33. FRAYLING, Christopher. Op. Cit., 2006. pp. 241, 243-4.
34. AVELLAR, José Carlos. Deus e o Diabo na Terra do Sol. A Linha Reta, o Melaço de Cana e o Retrato do Artista Quando Jovem. pp. 27, 65, 103, 104-5, 108.
35. PIERRE, Sylvie. Op. Cit., pp. 40, 95, 102, 188.