“Nossas mãos estão limpas!” Repetem os políticos de Nápoles,
em As Mãos Sobre a Cidade, ao serem acusados de relações ilegais
com a construção civil e ignorar um desabamento suspeito em área
entregue à construtora cujo maior acionista é também vereador
Corrupção e Conflito de Interesses
Edoardo Nottola controla uma incorporadora imobiliária, ele conseguiu um contrato que lhe garante participar no plano municipal de revitalização urbana da cidade italiana de Nápoles. A primeira coisa que vemos dele são suas duas mãos estendidas na direção da cidade. Ao completar o movimento, Nottola dirige as duas mãos para a terra agrícola onde ele está. Ao apontar da cidade para o campo adjacente, Nottola pretende convencer um grupo de investidores a pressionar o poder público para que inclua no empreendimento aquela terra fora dos limites da cidade. Seu plano é comprar a terra enquanto ela não vale nada, o que pode gerar muitos milhões de lucro para todos os presentes. Ocorre que Nottola também é um político influente da extrema-direita na cidade e, em troca dos favores do governo municipal (controle sobre a licitação, a pedreira, o cimento e os operários), assegura para o governo os votos de seu partido. A seguir, confirmamos que Nottola conseguiu o que desejava, quando diante de uma maquete da região em questão ouvimos o anúncio de que um comitê de urbanistas escolheu aquela área ao norte da cidade para ser desenvolvida. Na sequência, somos levados direto para Vico Sant’Andrea (cujos prédios Nottola pretende demolir), um dos bairros mais pobres de Nápoles durante a década de 1960, no momento em que parte de um prédio desaba, matando dois adultos e mutilando uma criança. Coincidentemente, ao lado desse prédio havia um canteiro de obras pertencente a um empreendimento de Nottola – que é visto deixando sorrateiramente o local em companhia de outro homem.
“(…) Em política, indignação moral é uma mercadoria sem valor!
Você sabe qual é o único pecado? Perder”
Você sabe qual é o único pecado? Perder”
Professor De Angeli, líder dos democrata-cristãos, comenta com Balsamo, membro do mesmo
partido e que deseja retirar sua candidatura porque a responsabilidade ética diante do povo o está
impedindo de participar das eleições na mesma chapa de Nottola, em As Mãos Sobre a Cidade
O desabamento coloca a candidatura de Nottola em risco e leva a um acalorado debate na sala do Conselho, onde o prefeito será pressionado para instaurar inquérito sobre o fato.A manipulação do Plano Diretor de Nápoles e a conivência do Prefeito demonstram o conluio entre os partidos políticos e as empresas privadas. Tentando fazer valer seu poder (em função de seu conhecimento do regimento interno), o prefeito procura evitar o debate justificando que o assunto não estava na agenda. De Vita, o veemente líder da extrema-esquerda, responde que as pessoas não tem o poder de programar suas mortes para que possam se encaixar na agenda! O Prefeito não enxerga, ou não quer enxergar, o conflito de interesses na posição de Nottola. Quando Balsamo comunica a De Angeli (líder do Partido Democrata-Cristão) que pretende retirar sua candidatura por acreditar que o povo não confiará mais neles se estiverem ligados a Nottola, o líder lhe pede que julgue as coisas do ponto de vista político, não em termos morais: tudo em nome de alcançar a maioria no Parlamento. Como guiar a opinião pública, Balsamo pergunta, se aceitamos essa gente? Nós fazemos a opinião pública, respondeu De Angeli.
Corrupção e Construção Civil
“O mal no filme é a engrenagem assustadora
da democracia, através da qual o povo vota e elege seus próprios
opressores, os quais o escravizam legalmente, democraticamente
e com apoio de seu próprio [direito de voto]”
Lorenza Mazzetti
da democracia, através da qual o povo vota e elege seus próprios
opressores, os quais o escravizam legalmente, democraticamente
e com apoio de seu próprio [direito de voto]”
Lorenza Mazzetti
Em As Mãos Sobre a Cidade (Le Mani sulla Città, 1963), o cineasta italiano Francesco Rosi estava se referindo à cidade onde nasceu. Falou-se de “denúncia”, quando o napolitano questionou a especulação imobiliária que nascia numa Itália com muitos problemas habitacionais e que, graças ao Plano Marshall, havia iniciado a reconstrução do país. A fase do assim chamado boom econômico, que marcou um desenvolvimento posterior do Plano, deu forte incremento ao empreendedorismo privado e aos palazzinari, que operavam nas cidades grandes com apoio da câmara municipal e de políticos dispostos a aceitar a corrupção como moeda de troca – palazzinaro é uma gíria em dialeto romanesco que se refere pejorativamente a empreiteiros que enriqueceram através da especulação imobiliária. As mãos sobre a cidade de Nápoles e sobre a extensa periferia em vias de urbanização são as de Edoardo Nottola, palazzinaro inescrupuloso disposto a tudo para apoderar-se e construir numa área ainda longe do centro da cidade. Após uma introdução reveladora seguida dos créditos iniciais (onde vemos o adensamento da cidade, do centro às encostas dos morros, e uma favela que cresce entre duas largas avenidas) (imagem abaixo), o filme se inicia com o desmoronamento de um velho cortiço, testemunha da estreita conexão entre o princípio de especulação e os processos de execução do trabalho (1). Tullio Kezich observa que a forma como Rosi construiu o personagem do palazzinaro não agradou a todos:
“Alguns levantaram objeções a respeito do personagem Nottola, o principal empreendedor (Rod Steiger, bravíssimo). Diziam que era muito simpático. Eles diziam, ‘o filme é sobre um especulador corrupto, e ele acaba por ser uma pessoa simpática’. E isso é verdade. Porque é onde a maestria de Rosi brilha mais. Para além daquilo que um político poderia fazer, que te apresenta esse personagem como o monstro que é. Rosi conseguiu, sem induzir muita caracterização [sem dar corpo ao personagem], não vai muito sobre sua vida privada. Rosi focaliza na maneira de Nottola falar, gesticular, reagir. Rosi nos mostra esse personagem como um personagem humano que pode ser capaz de qualidades desejáveis, que de certa forma até explicam seu sucesso. Aquele homem consegue combinar todas aquelas coisas porque é um trapaceiro, porque é um conspirador, mas também um homem fascinante. Portanto, este é mais um elemento muito interessante, muito curioso, que na época não caiu bem para algumas pessoas. Fizeram uma crítica uma pouco monolítica, ‘bom’, ‘mal’; operário pobre explorado [de um lado], e [, do outro,] o explorador indigno que deveria estar na cadeia” (2)
As Mãos Sobre a Cidade foi premiado com o
Leão de Ouro no Festival de Veneza, em 1963
Dos vários filmes italianos que poderiam ser citados para ilustrar o problema, que ainda se estendia desde o final da Segunda Guerra Mundial, dos milhares de sem teto na Itália, sugere-se aleatoriamente os humorísticos A Trapaça (Il Bidone, direção Federico Fellini, 1955), O Teto (Il Tetto, direção Vittorio De Sica, 1956) e o trágico Roma às 11 Horas (Roma, Ore 11, direção Giuseppe De Santis, 1952). No filme de Fellini, um grupo de trambiqueiros aplica vários golpes, num deles se passam por responsáveis pelo cadastro de famílias que lutam para sair dos barracos e serem incluídas nos planos de habitação do governo. No filme de De Sica, casal pobre levanta uma moradia às pressas para se valer de uma lei daquela época que impede a remoção de pessoas uma vez que o telhado já foi erguido. No filme de De Santis, muitas mulheres atendem ao chamado de oferta de emprego e brigam na fila, que serpenteia escada acima de um prédio mal construído que acabar desabando. Embora os três filmes retratem a situação de penúria e desemprego vivida pela Itália naquela época, nenhum deles vai tão fundo quanto o filme de Rosi. Maurizio Fantoni Minnella observa em relação a Roma às 11 Horas que, embora antecipe o tema do desabamento de um edifício em função de crítica social, aborda a questão do ponto de vista psicológico ao registrar o impacto emotivo sobre as vítimas. Ainda que aborde a questão da precariedade das moradias populares construídas a partir dos interesses da especulação imobiliária, no filme de De Santis o desabamento do prédio não constitui, como aquele que ocorre no início de As Mãos Sobre a Cidade (imagem abaixo), o elemento principal que leva à crítica da conivência entre políticos e empreendedores da construção civil, corruptos e corruptores. Uma situação, concluiu Minnella em 2004, que atualmente ainda ocorre na Itália. Contudo, novamente Kezich nos informa que a recepção de As Mãos Sobre a Cidade não foi unânime naquela época:
“Recordo-me de quando o filme ganhou o Leão de Ouro em Veneza, contra Trinta Anos Esta Noite [(Le Feu Follet, 1963)], de [Louis] Malle. Houve aqueles que apoiaram [o filme] de Malle para que Rosi não ganhasse. Quando o vencedor foi anunciado, lembro-me de alguns de meus colegas, poderia dizer o nome, que sopraram apitos, porque parecia ser alguma coisa [uma atitude] que questionava os poderes constituídos... [Porque, então, era o correto] – a legalização da injustiça, a legalização de uma atividade basicamente criminosa, como aquela de arruinar a face da cidade. Naquele momento, o mundo mudava. Havia uma nova fronteira. Havia o degelo nas relações com a União Soviética. Havia o ecumenismo do [Concílio] Vaticano II. Era um mundo que começava a corrigir seus erros e procurar formas de vida mais saudáveis” (3)
“Recordo-me de quando o filme ganhou o Leão de Ouro em Veneza, contra Trinta Anos Esta Noite [(Le Feu Follet, 1963)], de [Louis] Malle. Houve aqueles que apoiaram [o filme] de Malle para que Rosi não ganhasse. Quando o vencedor foi anunciado, lembro-me de alguns de meus colegas, poderia dizer o nome, que sopraram apitos, porque parecia ser alguma coisa [uma atitude] que questionava os poderes constituídos... [Porque, então, era o correto] – a legalização da injustiça, a legalização de uma atividade basicamente criminosa, como aquela de arruinar a face da cidade. Naquele momento, o mundo mudava. Havia uma nova fronteira. Havia o degelo nas relações com a União Soviética. Havia o ecumenismo do [Concílio] Vaticano II. Era um mundo que começava a corrigir seus erros e procurar formas de vida mais saudáveis” (3)
As Mãos Sobre a Cidade, um filme a respeito da especulação
imobiliária, continua bastante atual, especialmente em Nápoles
imobiliária, continua bastante atual, especialmente em Nápoles
De acordo com Minnella, As Mãos Sobre a Cidade constituiu o primeiro ataque frontal ao poder democrata-cristão que, naquele período histórico (meados dos anos 1960), se alastrou em cada setor da sociedade civil (da educação à saúde, às forças armadas, etc). Mas representou também um modelo de cinema “progressista”, cuja autoria se desenvolveria bastante na década seguinte.
“‘O meu filme – escreveu o cineasta – é um debate moral. No modo de ver, de anotar, de reconstruir, de julgar a realidade, desempenho um ato político’. Todavia Rosi, sensível à lição [da literatura] hard-boiled norte-americana dos anos 1950, com seus personagens rudes e um pouco esquemáticos, recua um passo em relação a O Bandido Giuliano (Salvatore Giuliano), [seu filme anterior]. Também a utilização de uma estrutura dialética contrapositiva (de um lado Nottola, com sua carga perturbadora de arrogância, do outro, o conselheiro comunista, idealista e pragmático ao mesmo tempo), suscetível de limitar, como escreve Lorenza Mazzetti, o papel do ‘mal’ a um só personagem, quando o ‘caso Nottola’ é apenas o indicador de um mal-estar que tem afetado todo um sistema. Mazzetti afirma que ‘o mal no filme é a engrenagem assustadora da democracia, através da qual o povo vota e elege seus próprios opressores, os quais o escravizam legalmente, democraticamente e com apoio de seu próprio [direito de voto]. Essa engrenagem é o mal; as condições alienantes do povo são o mal tanto quanto a condição alienante dos opressores’” (4) (imagem abaixo, favela de Nápoles mostrada rapidamente nos créditos iniciais do filme de Rosi, somando as mazelas da exclusão social e do déficit habitacional)
Corrupção e Urbanismo Medieval
A conivência com a corrupção entre empreiteiros e políticos,
mostrada em As Mãos Sobre a Cidade, sinaliza questões
ainda mais problemáticas, já que a Camorra (a máfia
napolitana) domina o comércio de cimento naquela região
mostrada em As Mãos Sobre a Cidade, sinaliza questões
ainda mais problemáticas, já que a Camorra (a máfia
napolitana) domina o comércio de cimento naquela região
Alguns anos depois do filme de Francesco Rosi, no pequeno e pouquíssimo citado documentário realizado em 1970 por Giuseppe Ferrara, Terzo Mondo Sotto Casa (Terceiro Mundo Debaixo da Casa), nos são apresentadas as paupérrimas condições das favelas de Roma – naturalmente excluídas dos cartões postais históricos da cidade. A referência do título ao que então era chamado de Terceiro Mundo evidencia uma crítica à indigência também do sistema político que, mesmo na Itália que recebeu ajuda do Plano Marshall (mas que ainda não havia conseguido “se livrar do problema” comunista), produz e reproduz o tipo de situação social que gera tal contingente populacional de excluídos. Logo nos créditos iniciais de As Mãos Sobre a Cidade, em meio às vertiginosas imagens num mar de prédios em Nápoles, duas tomadas rápidas mostram a favela crescendo entre duas rodovias. Para Minnella, a cidade de Nápoles aparece como uma anomalia pronta para suscitar escândalo no panorama complexo do cenário metropolitano italiano – em 1963, mesmo ano do lançamento de As Mãos Sobre a Cidade, o escritor Ítalo Calvino relança um romance (originalmente publicado em 1957) onde os personagens se metem com o ramo imobiliário, La Speculazione Edilizia. No sul do país, além de Nápoles, em Palermo a especulação imobiliária também foi dramática (5). Comentando em 1994 um artigo que comemorava a obra do então recém-falecido Federico Fellini, Rosi enalteceu a capacidade do cineasta de Rimini em refletir sobre a Itália em seus filmes e lamentou a ausência desse tipo de postura no cinema italiano dos anos 1990:
“Francesco Rosi, numa resposta profundamente comovente e reflexiva à comemoração de Fellini por Clive James na [revista] New Yorker, lamenta a morte do cinema ‘que... sempre foi o espelho de temas coletivos da vida nacional’. Desenvolvendo o argumento de James de que o impulso ‘para colocar a totalidade da vida de seu país’ dentro de cada filme foi a missão dos cineastas italianos do pós-guerra, Rosi declara que o cinema se tornou o veículo privilegiado do renascimento nacional-popular após a humilhação do Fascismo e das devastações da guerra. Enquanto tal, o [cinema] forneceu [um canal] de ativismo para uma geração induzida pelo desejo de registrar a história que se desenrolava diante de seus próprios olhos e de acordar as consciências adormecidas daqueles que preferiam não ver. Para Rosi, o declínio desta tendência para o cinema nacional levou os cineastas italianos a perder a fé em si mesmos e em sua habilidade para transmitir uma perspectiva comum. Seja este colapso na ligação entre cinema e identidade coletiva a manifestação temporária do mal-estar social na era Berlusconi ou uma condição permanente, a ser agravada pelo clima de abstinência cívica, tal processo se contrapõe a toda a história do cinema italiano (...)” (6) (imagem abaixo, um exemplo da selva de pedra em Nápoles, nos créditos iniciais de As Mãos Sobre a Cidade)
Durante um período de mais ou menos quinze anos, foram tantos
os filmes sobre a governança das cidades italianas que os críticos
os transformaram em alvo de violentos ataques. Muitos cineastas
são responsáveis pela compreensão do período que vai das mortes
do Papa João XXIII e Palmiro Togliatti até a de Aldo Moro (7)
Ainda a respeito de Roma, e ainda durante a década de 1960, em filmes como Accattone. Desajuste Social (Accattone, 1961) e Mamma Roma (1962), o cineasta, poeta e pensador Pier Paolo Pasolini traçou um retrato da periferia da cidade naquela época – ele não chegou às favelas, mostrando “apenas” os bairros pobres e os conjuntos habitacionais, estes não necessariamente na periferia, para pessoas de baixa renda. Com uma veia mais humorística em Feios, Sujos e Malvados (Brutti, Sporchi e Cattivi, 1976), Ettore Scola vai direto para as favelas dentro da cidade – da porta de uma das moradias pode-se ver a cúpula da Basílica de São Pedro, no Vaticano. Com Diario Napoletano (1992), realizado para a televisão, Rosi retorna à Nápoles trinta anos depois de As Mãos Sobre a Cidade e passeia pela cidade revelando suas novas grandes mazelas (a droga, a criminalidade juvenil, etc). É como se aquilo que Minnella chamou de “o corpo doente de Nápoles” continuasse lá, de uma forma meio torta resistindo ao tormento da Camorra (que entre outros interesses investe na produção de cimento na Campania, região onde está Nápoles), que em 1963 se manifestava principalmente através da especulação imobiliária. Durante entrevista com Rosi, Minnella persegue a definição de “cinema político” de Rosi e pergunta a respeito da esperança do cineasta de, através de Diario Napoletano, colocar ordem no caos, compreender sua dinâmica profunda. Minnella quer saber se este também é um sentimento “político”. Rosi respondeu que...
“Tratando-se de Nápoles, esperança de pôr ordem no ‘caos’ é muito. Mais do que em outros [filmes], procurei mostrar [em Diario Napoletano] a real situação da cidade a trinta anos de distância de As Mãos Sobre a Cidade, procurando compreender as razões de certa anarquia. Seguramente, isso corresponde também a um sentimento ‘político’” (8) (imagem abaixo, Nottola, diante do mapa da região metropolitana da cidade de Nápoles, começa a se irritar quando seu nome é citado como suspeito do desmoronamento no início do filme)
Corrupção na Política e Representação
O Bandido Giuliano e As Mãos Sobre a Cidade são os primeiros
de muitos ataques ideológicos contra o sistema social italiano, seu apelo
deu origem ao filme “político” do final dos anos 1960 e 1970, muitos dos
quais incorporam as técnicas investigativas de Francesco Rosi (9)
de muitos ataques ideológicos contra o sistema social italiano, seu apelo
deu origem ao filme “político” do final dos anos 1960 e 1970, muitos dos
quais incorporam as técnicas investigativas de Francesco Rosi (9)
Enquanto Minnella afirma que em Roma, às 11 Horas o desmoronamento do edifício não carrega o caráter político de As Mãos Sobre a Cidade, Anton Giulio Mancino enxerga os dois filmes como os dois lados de uma mesma moeda. Os descaminhos da cidadania através daquilo que chamou de metodologia político-indiciária. Enquanto De Santis enfatiza a presença do povo, das pessoas comuns (justo aquilo que Minnella desvaloriza enquanto elemento psicológico do filme), de personagens emblemáticos de uma condição de carência material (a fila de mulheres dentro do edifício em busca de emprego), Rosi faz desaparecer a base popular em As Mãos Sobre a Cidade, engolida pelos mecanismos da política que dominava a todos, protagonistas e extras da História. Que além do mais tornava peões intercambiáveis até mesmo seus atores oficiais, privados de profundidade psicológica: os vereadores, os assessores, os prefeitos, os congressistas. A investigação da administração municipal sobre a eventual responsabilidade penal e civil do desastre, a investigação política, prosseguiu num sistema de relações, conflitos, conluios, entre a situação e a oposição. Um sistema de mecanismos que, enquanto político, dispensa a presença das pessoas, especialmente daqueles cidadãos, a plebe, as vítimas que não tem acesso direto à política. Era óbvio que no decênio seguinte o personagem-homem não estivesse mais no centro do discurso de Francesco Rosi: Um discurso a respeito do poder e da política enquanto espaço privilegiado e restrito, onde o poder se exercia e, às vezes, foi desmascarado, capturado e colocado diante de suas responsabilidades (10). Tullio Kezich, por sua vez, enfatiza o elemento ficcional do filme de Rosi:
“Mãos Sobre a Cidade é diferente de O Bandido Giuliano porque foi concebido como um ‘documentário ficcional [romanzo documento]’. Porque não existem personagens verdadeiros como em O Bandido Giuliano. São imaginários, embora não inteiramente, porque são verdadeiramente a imagem em espelho dos empreendedores que naqueles anos arruinaram a face da cidade de Nápoles com edifícios assustadores, em conluio com os políticos. É um filme, digamos, de análise de uma situação aberrante, realizada com muita força” (11) (imagem abaixo, é significativo que a primeira imagem de Nottola que aparece no filme sejam suas mãos; Na Itália, a famosa “operação mãos limpas” foi neutralizada pela criminalidade organizada)
“Mãos Sobre a Cidade é diferente de O Bandido Giuliano porque foi concebido como um ‘documentário ficcional [romanzo documento]’. Porque não existem personagens verdadeiros como em O Bandido Giuliano. São imaginários, embora não inteiramente, porque são verdadeiramente a imagem em espelho dos empreendedores que naqueles anos arruinaram a face da cidade de Nápoles com edifícios assustadores, em conluio com os políticos. É um filme, digamos, de análise de uma situação aberrante, realizada com muita força” (11) (imagem abaixo, é significativo que a primeira imagem de Nottola que aparece no filme sejam suas mãos; Na Itália, a famosa “operação mãos limpas” foi neutralizada pela criminalidade organizada)
Entre o final dos anos 1940 e o início dos anos 1950,
muitos filmes na Itália abordaram as problemáticas
relações entre a sociedade e as instituições jurídicas
muitos filmes na Itália abordaram as problemáticas
relações entre a sociedade e as instituições jurídicas
Em Roma às 11 Horas, De Santis considerava os homens, e, sobretudo as mulheres, com suas próprias consciências, o centro de seu procedimento político-indiciário. Tanto que a eles o cineasta ofereceu representação cinematográfica e, portanto, civil. Da mesma forma, outro cineasta italiano, Luigi Zampa, antes de Cidade da Perdição (Processo Sulla Città, 1952) havia feito em Angelina, a Deputada (L’onorevole Angelina, 1947), permitindo que até mesmo uma animada representante (personagem da atriz Anna Magnani) da periferia pobre de Roma almejar um espaço no Parlamento, para que escutem a voz e os temas políticos e sociais de sua gente. Mancino se pergunta o porquê de Rosi não se valer deste tipo de enredo (quando alguém entra para a política em defesa de seu bairro), quem sabe em Nápoles isso seja (tenha sido?) muito fora da realidade: em As Mãos Sobre a Cidade, assim como já em O Bandido Giuliano, o cineasta destacava o desaparecimento do homem enquanto uma entidade política, ou mesmo enquanto sujeito da História. Para Mancino, o exercício da dúvida de Rosi o permitia vislumbrar a um universo que ultrapassa a dimensão humana, e que é constituído à imagem e semelhança da estrutura de poder que opera no interior da política, das instituições, independentemente da cidadania ou dos representantes de tal cidadania. Mancino não identifica uma escola desta metodologia, mas reúne tanto De Santis quanto em Rosi numa discussão menos maniqueísta (de um lado, o bem e, de outro, o mal) e mais foucaultiana (o poder não é tão facilmente identificável, ele é capaz de se metamorfosear) a respeito do poder.
“Portanto, o panorama cinematográfico italiano do pós-guerra foi importante para compreender as engrenagens de base e os desenvolvimentos das obras de caráter político-indiciário: certamente não foram poucos os filmes realizados entre o final dos anos 1940 e os primeiros anos 1950 a colocar em cena delitos comuns, investigações, círculos criminosos e, sobretudo, o impacto do mal-estar coletivo no plano judiciário ou, vice-versa, dos problemas da justiça sobre a sociedade. Filmes que refletiam inequivocamente um estado, se não se aversão declarada, desconforto em relação à lei. Um incômodo que, a seu modo, até mesmo os autores alertaram, tendo que lidar seja com a segunda das leis de 1949 sobre o cinema (que confirmava e reforçava a orientação da censura já presente na lei de 1947), que por sua vez mantinha as disposições que datam de 1923, seja com a assim chamada lei de mercado através da qual a própria censura agia condicionando os produtores. Opondo a um modelo anterior de ‘verossimilhança’ outro nos mesmos termos, devolveram o desconforto na tela: recorreram àqueles gêneros onde códigos realistas permitiam melhor expressar a desconfiança generalizada em relação à justiça institucional” (12)
“Eu pretendo moralizar. Relativamente, é claro. Tirar vantagem? Isso
é inevitável, senhores. O Homem é Homem até certo ponto, é claro”
Palavras do prefeito aprovadas pelos representantes da direita, da esquerda e do centro,
durante a primeira reunião da investigação sobre a especulação imobiliária em Nápoles
Durante entrevista em 2006, é o próprio Francesco Rosi quem corrobora as conclusões de Mancino. O cineasta percebe que o filme continua atual, uma demonstração de como os mecanismos de poder agem contra a cidadania caso seja necessário para alcançar os fins pretendidos – algo do tipo “os fins justificam os meios”. Portanto, a denúncia da especulação imobiliária em Nápoles é apenas uma parte de As Mãos Sobre a Cidade. Antes mesmo dos créditos iniciais Rosi nos apresenta Edoardo Nottola, o empresário da construção civil (e também vereador) que pretende distorcer as leis a seu favor. A primeira frase pronunciada no filme é dele, dirigindo-se a seus pares da “iniciativa privada”: “Eu sei que a cidade está lá e está indo para aquele lado porque o plano diretor assim estabeleceu, mas é justamente por isso que nós temos de fazê-la chegar até aqui”. Nottola pretende se apoderar de uma região agrícola (e de pouco valor comercial naquele momento) na periferia da cidade para que, quando conseguir que seja incluída no plano diretor (cujo objetivo é fazer a cidade crescer justamente na direção oposta), ele e seus colegas possam ganhar muito dinheiro com a valorização do preço do metro quadrado. Nas palavras do próprio Rosi:
“(...) O filme, portanto, é a história de como se muda o destino de um terreno em relação àquilo que o plano diretor determinava. Então, o que se eterniza é o mecanismo de transformação derivado dos conluios entre política e desonestidade, entre política e criminalidade, entre política e degeneração do seu uso. É eterno porque pertence à política, à má política (já que a política deveria ser, ao contrário, o estabelecimento de tudo aquilo que serve para tornar a vida dos cidadãos mais suportável). Mostrar então esse mecanismo de degeneração, de distorção, me pareceu ser muito mais importante para as pessoas poderem entender como e porque isso acontece. É essa visão que constitui a atualidade de As Mãos Sobre a Cidade, e talvez precisamente o que define sua persistência no tempo. [...] O empresário construtor Nottola, provocando um ilimitado conflito de interesses, consegue tornar-se assessor de planejamento do governo local, com a finalidade de servir-se desse poder em favor dos interesses de suas empresas. Não confia em ninguém, e de fato afirma que deseja o cargo porque quer entregar as encomendas à sua própria empresa. Isso constitui o mais acirrado conflito de interesses que posso imaginar. As Mãos Sobre a Cidade fundamenta-se na realidade ambiental e social da cidade de Nápoles, que ainda hoje vive a tragédia decorrente da falta de trabalho, de instrução, de educação cívica, de legalidade, de estabilidade social, de uma degradação e de uma corrupção nas quais o crime organizado se insinuou com feroz violência, tornando-se dominante em todos os níveis, apesar dos esforços dos cidadãos honestos e das instituições. Nápoles é a minha cidade, eu a conheço bem e escrevi o argumento com o desejo de narrar Nápoles desse ponto de vista” (13)
Leia também:
Notas:
1. MINNELLA, Maurizio Fantoni. Non riconciliati: política e società nel cinema italiano dal neorealismo a oggi. Torino: UTET Libreria, 2004. Pp. 145-6, 370-1n79.
2. Comentários em Kezich on Rosi’s work in cinema, nos extras do DVD do filme de Rosi, Le Mani sulla Città, distribuído por Criterion Collection (USA), 2006.
3. Idem.
4. MINNELLA, Maurizio Fantoni. Op. Cit., p. 146.
5. Idem, pp. 193, 358.
6. MARCUS, Millicent. After Fellini. National Cinema in the Postmodern Age. Baltimore (USA): The Johns Hopkins University Press, 2002. P. 285.
7. BRUNETTA, Gian Piero. The history of italian cinema: a guide to italian film from its origins to the twenty-first century. Princeton: Princeton University Press, 2009. Pp. 176-7.
8. MINNELLA, Maurizio Fantoni. Op. Cit., p. 362.
9. BONDANELLA, Peter. Italian Cinema. From Neorealism to the Present. New York/London: Continuum, 3ª ed, 2008. P. 170.
10. MANCINO, Anton Giulio. Il Processo della Verità. Le Radici del Film Politico-Indiziario Italiano. Torino, Italia: Edizioni Kaplan, 2008. Pp. 79-80, 83.
11. ver nota 2.
2. Comentários em Kezich on Rosi’s work in cinema, nos extras do DVD do filme de Rosi, Le Mani sulla Città, distribuído por Criterion Collection (USA), 2006.
3. Idem.
4. MINNELLA, Maurizio Fantoni. Op. Cit., p. 146.
5. Idem, pp. 193, 358.
6. MARCUS, Millicent. After Fellini. National Cinema in the Postmodern Age. Baltimore (USA): The Johns Hopkins University Press, 2002. P. 285.
7. BRUNETTA, Gian Piero. The history of italian cinema: a guide to italian film from its origins to the twenty-first century. Princeton: Princeton University Press, 2009. Pp. 176-7.
8. MINNELLA, Maurizio Fantoni. Op. Cit., p. 362.
9. BONDANELLA, Peter. Italian Cinema. From Neorealism to the Present. New York/London: Continuum, 3ª ed, 2008. P. 170.
10. MANCINO, Anton Giulio. Il Processo della Verità. Le Radici del Film Politico-Indiziario Italiano. Torino, Italia: Edizioni Kaplan, 2008. Pp. 79-80, 83.
11. ver nota 2.
12. MANCINO, Anton Giulio. Op. Cit., p. 89.
13. PRUDENZI, Angela; RESEGOTTI, Elisa. Cinema Político Italiano. Anos 60 e 70. São Paulo: Cosac & Naify, 2006. Pp. 66-7.
13. PRUDENZI, Angela; RESEGOTTI, Elisa. Cinema Político Italiano. Anos 60 e 70. São Paulo: Cosac & Naify, 2006. Pp. 66-7.