31 de mar. de 2017

As Mulheres de Roberto Rossellini (II)

Paisà
  

A  transição  de  Francesca  em  Paisà,   de   moça   pura   no   dia   da
libertação  de  Roma  à  prostituta   seis   meses   depois,    assim   como
a incapacidade de Fred perceber que é ela mesma,  foi  um  comentário
irônico  sobre  a  esperança e o otimismo em Roma, Cidade Aberta  (1)

Perspectiva Masculina

Quando Mussolini ainda estava no poder e Rossellini ainda trabalhava para ele, nos três filmes que realizou para o ditador italiano (no que ficou conhecido posteriormente como “trilogia fascista”), as mulheres tem papel secundário em relação aos homens, apresentados sempre como os verdadeiros heróis em Un Pilota Ritorna (1942) e L’Uomo dalla Croce (1943). Em La Nave Bianca (1941), uma enfermeira cuida de feridos de guerra num navio hospital e protagoniza uma história de amor com seu enteado (2). Em seu segundo filme depois do fim da guerra, quando passou a oscilar entre o cristianismo e o marxismo, Rossellini seguiu o padrão de sua obra mais famosa, Roma, Cidade Aberta (Roma Città Aperta, 1945), ao reapresentar a combinação de papeis tradicionais e inovadores para as personagens femininas em Paisà (1946). Em Paisà o papel das mulheres na resistência contra o invasor nazista se espalha por toda a Itália, da Sicília no extremo sul até o rio Pó ao norte – sua estrutura em episódios, similar a uma coleção de pequenas histórias em prosa, fez deste filme um protótipo para outros que utilizam o mesmo método. Dos seis episódios, três apresentam personagens femininos. Carmela (episódio 1) e Francesca (episódio 3) são centrais em suas respectivas histórias. Contudo, Marga Cottino-Jones não vê Harriet (a enfermeira norte-americana do episódio 4) ocupando o mesmo nível de importância. Ela atravessa Florença em busca de um líder guerrilheiro antinazista apenas para descobrir que o homem está morto, mas a ação do episódio é a busca do florentino Massimo por sua família do outro lado do rio Arno, ainda ocupado pelos alemães (3). Ao contrário de Millicent Marcus, para quem Harriet se torna uma enfermeira da Cruz Vermelha comprometida com a causa da libertação da Itália, postura bem distante da passividade da freira de La Nave Bianca (4). (imagem acima, Francesca ouvindo Fred falar da mulher que ele não percebe estar ao seu lado, episódio 3; abaixo, Joe tenta se fazer entender por Carmela, episódio 1)


Paisà coloca algumas mulheres em papel de destaque num universo
de   soldados,   guerrilheiros,   nazistas,   fascistas   e   gente  do  povo

No primeiro episódio o pano de fundo é a Sicília na época em que os soldados aliados desembarcaram na costa leste da ilha. O episódio segue um pequeno grupo de soldados norte-americanos que, tendo acabado de desembarcar, procura estabelecer uma fortificação próxima da pequena cidade de onde acreditam que os alemães acabaram de fugir. Os personagens principais são Joe, natural de New Jersey, e Carmela, a garota escolhida pelos moradores para guiar os soldados no terreno perigoso em volta da cidade, que havia sido minado pelos nazistas. A certa altura, ela admite para os soldados que só os guiou por estar à procura de seu pai e seu irmão – Carmela Sazio tinha quatorze anos quando Fellini, um dos roteiristas de Paisà, a encontrou na rua e a recrutou para o papel (5). A comunicação entre os dois é precária, ele só fala inglês e ela o dialeto local – outra inovação de Rossellini, uma vez que Mussolini procurou de todas as formas sufocar os muitos dialetos falados no país em nome de impor o idioma italiano formal para todos, mais uma vez tentando de maneira autoritária forjar uma unidade nacional. Um dos objetos utilizados por Joe para se comunicar com Carmela foi um fósforo acesso, cuja luz foi avistada pelos alemães ao longe, resultando na morte do soldado norte-americano. Posteriormente, Carmela mata um soldado alemão e o som do tiro é ouvido pelos companheiros de Joe. Ao encontrarem apenas o corpo dele e nenhum traço dela, concluem que foi Carmela a responsável pela morte de Joe. Apenas ao espectador será mostrado o corpo dela, assassinada pelos alemães.

“Portanto, a mensagem deste episódio é sombria e definitivamente trágica: ambos são mortos em circunstâncias de guerra. Além disso, nenhuma comunicação foi alcançada em nível político. Mesmo que fosse possível, não ajudou ninguém e ainda se mostrou perigosa, já que causou morte” (6) (imagem abaixo, no tempo em que era doce e pura, Francesca recebe Fred pela primeira vez, episódio 3)


Em Roma, Cidade Aberta, a atriz Maria Michi era Marina, 
que  entregou  o  amante  guerrilheiro  aos  nazistas em troca
de um casaco de pele. Em Paisà é Francesca, mulher comum
que se tornou prostituta  e  agora possui um casaco de pele

No episódio 3 o cenário é Roma, poupada da destruição, e onde se cruzam as vidas do soldado norte-americano Fred e da italiana Francesca. A história começa no dia da libertação da cidade pelos exércitos aliados durante o verão de 1944, tudo é festa e a confraternização é generalizada. Depois dessa introdução, Rossellini faz um corte e avança seis meses, quando os dois se reencontrarão num contexto em que as condições de vida na Itália ainda são extremamente difíceis. Temos então de um lado os norte-americanos como provedores (de chocolate, chiclete, boogie-woogie, bebida alcoólica e dólares), e do outro os italianos, ou os necessitados (em sua maioria mulheres). Estes últimos perderam tudo durante a guerra e estão dispostos a tentar de tudo para sobreviver. Cottino-Jones nos lembra de que o personagem de Francesca é interpretado pela italiana Maria Michi, a mesma atriz que em Roma, Cidade Aberta foi escalada no papel de Mariana, a atriz-prostituta que foi corrompida pelos nazistas. O primeiro encontro entre Fred e Francesca é projetado através de um flashback, técnica pouco comum em filmes neorrealistas. Dessa vez o filme parece sugerir a possibilidade de comunicação entre os dois grupos sociais envolvidos. Ela oferece água para Fred (algo significativo para as plateias daquela época, já que naquele momento ainda não existia água corrente em Roma), que oferece chocolate para ela, que por sua vez não tem nada comestível para oferecer ao soldado. Os dois tentam se comunicar através de um dicionário inglês-italiano. Na opinião de Cottino-Jones, os tons claros da sequência e o vestido branco usado por Francesca sugerem inocência e a possibilidade de uma comunicação pessoal significativa. (imagem abaixo, Francesca, a prostituta, episódio 3)


(...) O episódio de Roma em Paisà, que rastreia a transformação
de   uma   jovem   comum   em   prostituta,    [seria   mais   correto]
se  tratasse do notório  destino  das  mulheres de Nápoles (...)  (7)

Quando Fred e Francesca se reencontram seis meses depois tudo mudou. Os encontros humanos sedem lugar a encontros sexuais sem coração entre soldados e prostitutas. Francesca é uma das que se viu forçada a se prostituir, mas procura manter uma relação honesta com Fred. Fred, por sua vez, não está interessado e nem mesmo a reconhece. O soldado faz apenas julgamentos negativos a respeito das mulheres italianas, que para ele são todas prostitutas e fala da doce Francesca que conheceu no dia que chegou a Roma de como deseja reencontrá-la. Entretanto, ele está bêbado demais para perceber que é justamente Francesca que está ao seu lado dizendo que existem muitas outras garotas que encontraram meios de trabalhar e vencer a fome e a pobreza, procurando convencê-lo de que a moça que ele procura é uma delas. Novamente Cottino-Jones chama atenção para a iluminação, que enxerga nessa segunda sequência mais escura e com meios-tons uma aura de presságio sinistro e nenhuma esperança de um desfecho positivo para o encontro. No final do episódio, Francesca espera por Fred na chuva na porta do prédio onde mora enquanto ele está em frente ao Coliseu à espera do caminhão militar que irá levá-lo embora da cidade. Cottino-Jones conclui que comunicação significativa entre homem e mulher na Roma do pós-guerra não é mais possível. O tema da comunicação ou de sua falta é constante na obra de Rossellini, pelo menos a partir de Roma, Cidade Aberta. Assim pensa Geoffrey Nowell-Smith, que o considera central em Paisà, Alemanha Ano Zero (Germania Anno Zero, 1948) e no chamado ciclo Bergman logo na sequência, reaparecendo nos filmes para televisão, notadamente Blaise Pascal (1972).

“O caso de Paisà é particularmente interessante, porque a falha de comunicação, e uma muito rara transcendência dessa falha, estão no coração de cada um dos seis episódios nos quais o filme é dividido. No primeiro, Joe ‘de Jersey’ procura superar a diferença linguística que o separa de Carmela; ao tentar, ele negligencia as precauções mais elementares de segurança, sendo morto ao acender um fósforo. No segundo, o sargento norte-americano negro não compreende o comportamento do trombadinha napolitano, tem suas botas roubadas, mas no final compreende alguma coisa das condições de vida das vítimas italianas da guerra. No terceiro, Fred e Francesca criam para si mundos imaginários de amor que não sobrevivem ao encontro com a realidade das relações entre homem e mulher, ocupante e invadido. No quarto, Harriet, separada de seu amante guerrilheiro, tenta cruzar as linhas alemãs para se juntar a ele, mas só consegue receber as notícias da morte dele. No quinto, os monges vivem num universo onde judeus são seres desprovidos da luz do salvador e não compreendem a fraternidade não sectária dos capelães do exercito alojados no monastério. No episódio final, o sentido de não comunicação é ainda mais devastador: poucas palavras são pronunciadas, a maioria delas contraditórias, servindo apenas para esconder o silêncio fundamental que é aquele de Deus” (8) (imagens abaixo, Carmela e os soldados norte-americanos, episódio 1)

Ao Primeiro Plano e Além


 “(...)  Ao  abordar  mulheres,  embora  cientes  do  legado patriarcal  [...] 
anterior, os filmes neorrealistas  demonstram  compreensão benévola
 delas enquanto vítimas  de  injustiça social,  como  Marina  em  Roma, 
Cidade Aberta, Francesca em Paisà e a empregada em Umberto D (9)

Para melhor compreender a repercussão e o alcance das protagonistas que Rossellini representou em Paisà, é preciso ter em mente que durante as duas décadas que Mussolini esteve no poder, as mulheres eram relegadas ao segundo plano. A “mulher fascista” exemplar, desenhada por aquele universo patriarcal, deveria ser parideira de filhos, mãe e esposa exemplar, o que significava que seu lugar era na cama e na cozinha! Existia uma identificação do tipo “Mussolini=macho=marido”, fazendo do ditador o pai de todos os italianos – quanto ao que realmente Il Duce foi capaz de fazer com uma mulher, basta assistir à Vincere (direção Marco Bellocchio, 2009) e acompanhar o destino bizarro de Ida Dalser e seu filho. Steven Ricci cita Nono Mandamento (Desiderio/Rinascita, direção Marcelo Pagliero, 1946) e L’adultera (direção Dullio Coletti, 1946), além de A Terra Treme (La Terra Trema – Episodio del Mare, 1948), Roma, Cidade Aberta e Paisà como filmes que, algum tempo depois da queda do regime, promoviam um curto-circuito na ligação que havia sido construída entre Estado e família (10). Ao contrário dos fascistas, que haviam “embrulhado” a família numa cortina de hipocrisia, os neorrealistas escancaravam a distopia que se seguiu à queda de Mussolini, sendo o adultério apenas um dos temas recorrentes, sem falar na criminalidade e no desemprego, o que incomodava muito aos conservadores, mais acostumados a maquiar a realidade com imagens de um mundo social e institucional idílico. Com exceção de filmes como Pão, Amor e Fantasia (Pane, Amore e Fantasia, direção Luigi Comencini, 1953), nada preocupado em reforçar estereótipos, uma lista incompleta do imediato pós-guerra que apresente as mulheres já longe do cinema fascista da década de 1930 incluiria os filmes em episódios Nós, as Mulheres (Siamo Donne) e O Amor na Cidade (Amore in Città), ambos de 1953. (imagem abaixo, Harriet descobre que seu amor é um herói da resistência anti-nazifascista, mas está morto, episódio 4
 

Harriet, mais uma possibilidade frustrada de comunicação entre
os italianos e o anglo-saxão invasor-salvador.  Em busca de seu amor
 italiano  antifascista,  ela  se  arrisca  em  Florença no meio da guerra, 
 apenas para  descobrir através de um moribundo que ele morreu 

Exemplos extremos seriam Adua e suas Companheiras (Adua e le Compagne, direção Antonio Pietrangeli) e O Belo Antonio (Il Bell'Antonio, direção Mauro Bolognini), ambos de 1960. No primeiro, um grupo de prostitutas tenta mudar de ramo devido à lei que fechou os bordéis (que durante o Fascismo eram administrados pelo Estado...). No segundo, onde italiano com fama de Don Juan se casa e não consegue transar com a esposa, acelera a desconstrução do macho latino narcisista. Em 1977, Ettore Scola ilustra a situação em Um Dia Muito Especial (Una Giornata Particolare), onde reuniu Sophia Loren como dona de casa (e empregada do marido que a trata como um objeto) e Marcello Mastroianni no papel de um homossexual – o qual, por sua opção sexual, estava sendo procurado pela polícia. Contudo, ainda durante a vigência do regime fascista três filmes italianos negavam essa identificação e também são apontados por muitos como precursores do neorrealismo ou, pelo menos, enquanto recusa do cinema fascista: O Coração Manda (Quattro Passi tra le Nuvole, direção Alessandro Blasetti, 1942), Obsessão (Ossessione, direção Luchino Visconti, 1943), A Culpa dos Pais (I Bambini ci Guardano, direção Vittorio De Sica, 1944). No primeiro, temos uma mãe solteira. No segundo, temos um adultério, algo que é a própria negação direta da falsa mitologia da família perfeita fascista. Ao assistir Obsessão, o filho de Mussolini bradou irritado: “Isso não é a Itália!” - a manifestação da sexualidade feminina em A Terra Treme, de Visconti, também teria sido considerada ilícita de acordo com os padrões fascistas. No terceiro, o adultério é visto pelos olhos de uma criança – no pós-guerra, De Sica retornará às crianças, especialmente em 1946, com Vítimas da Tormenta (Sciuscià).

“(...) No filme de Blasetti, a filha, ao se apresentar grávida diante dos pais, recorre à ajuda de um falso marido, expediente logo descoberto; naquele de Visconti, a esposa compensa sua frustração sexual nos braços do amante e o leva a matar o marido; no de De Sica, a mãe também repudia o marido, que acaba por se suicidar, simbolizando a incapacidade de toda uma geração de reagir à própria falência [- à falência da geração dos pais, Lino Micciché opõe a solidão das novas gerações nascidas sob o signo do fascismo e da guerra, simbolizadas nesse filme por Pricó e, posteriormente, pelos dois protagonistas de Vítimas da Tormenta. Vittorio Spinazzola verá no protagonista de Umberto D (1952) uma ‘reencarnação’ do pai de A Culpa dos Pais, o qual, tendo sobrevivido à desagregação de sua família, teria alcançado a velhice solitário, mas não vencido]. O triângulo, portanto, ficará sempre desfalcado de um de seus elementos (o marido, senão o macho), o que impedirá a identificação fálica e levará a uma dessacralização do pater familias e, com ela, a um desmascaramento do culto fascista das aparências, da virilidade e da família” (11) (imagens abaixo, Carmela e os soldados norte-americanos, episódio 1)

A Mulher do Povo


A  timidez de Carmela no contato com homens está de acordo
com  a  tradição  patriarcal.  Sendo  assim,  guiar  sozinha  soldados
no  escuro  é  incomum,   embora  possa  apontar  para  a  exaltação
da participação do povo na resistência contra o invasor nazista

Como já havia mostrado em Roma, Cidade Aberta, Rossellini também apresentará diferentes tipos de personagens femininos nos episódios 1 e 3 de Paisà. Carmela, por exemplo, enquanto demonstra claramente a timidez e reserva em relação aos homens que a tradição exige das mulheres italianas jovens, desde o começo também apresenta uma forma incomum de coragem, inesperada numa mulher jovem de sua idade e classe. A moça não hesita em deixar sua família e amigos para acompanhar um grupo de homens estranhos que nem mesmo consegue compreender. Quando Carmela é confrontada com a morte de seu amigo estadunidense, a quem aprendeu a gostar respeitar, reage de maneira atípica para uma mulher (sem lágrimas ou lamentações) e friamente se prepara para vingá-lo atirando num soldado alemão com a arma de Joe sem temer as consequências de tal ato. Na opinião de Cottino-Jones, como Pina em Roma, Cidade Aberta, Carmela combina qualidades femininas tradicionais com heroísmo fora do normal. Da mesma forma, também neste episódio a bravura de uma mulher está disfarçada sob o manto dos sentimentos por um homem de quem gosta. Francesca, por outro lado, parece ser um tipo mais tradicional de mulher, embora também oscile entre o “bem” (no início do episódio) e o “mal” (no restante do episódio). Ainda de acordo com Cottino-Jones, o filme parece pretender retirar o estigma de mulher “má” ao apontar para as condições sociais (ainda muito pequena a guerra a deixou órfã e na indigência total) que a transformaram de menina inocente em prostituta.

“(...) Desta forma, o filme claramente enfraquece a codificação tradicional cujo objetivo é a criação de polaridades que ignoram a constituição complexa de um ser humano. Ambos os filmes revelam a visão geral de compaixão das mulheres enquanto indivíduos sofredores que será enfatizada nos dois curtas-metragens posteriores de Rossellini, Uma Voz Humana (Una Voce Umana) e O Milagre (Il Miracolo), [lançados juntos com o título de O Amor (L’Amore, 1948)], exclusivamente centrados em protagonistas femininos, que, mesmo que não mais vítimas da injustiça política, ainda são apresentados como criaturas socialmente derrotadas e sofredoras. Rossellini apresenta novamente Anna Magnani como protagonista de ambos os filmes. Estes proporcionam uma ligação entre os filmes neorrealistas de Rossellini e os posteriores, especialmente aqueles protagonizados por Ingrid Bergman (...)” (12) (imagens abaixo, o lado prostituta de Francesca, episódio 3)


“Por  que  devemos  enviar essas imagens  de  mulheres
italianas  para  o  mundo?  O  soldado  [norte-americano]
 que retorna não tem o suficiente para dizer sobre elas?” 

Gian Luigi Rondi, Tempo, 9 de março de 1947

O crítico italiano se refere especificamente a uma cena do episódio de Roma, em Paisà
Desde o começo, a transparência dos cineastas neorrealistas em relação à Itália foi combatida 
por  críticos  mais  moralistas,  preocupados  com  a  imagem  do  país  no  exterior  (13)

Millicent Marcus relaciona o episódio de Roma em Paisà a alusões que outros filmes fizeram a Roma,Cidade Aberta no contexto do desapontamento e da crítica da incapacidade da Itália do pós-guerra caminhar ao encontro das esperanças da Resistência (que pegou em armas contra nazistas e fascistas) por renovação social. Maria Michi atuou como Marina, a atriz de shows de revista em Roma, Cidade Aberta, a quem o amante Manfredi recusa perdoar a obstinação, à empurra para as mãos dos nazistas. Michi volta como Francesca em Paisà, de temperamento similar à Marina – ao mesmo tempo corruptível e aberta à influência de um homem bom. Como Manfredi, Fred também condena rapidamente Francesca por devassidão, perdendo a chance de “salvá-la” através do amor. Para Marcus, Francesca incorpora os dois lados da dualidade de Pina-Marina em Roma, Cidade Aberta, insistindo com Fred que ela não é como todas as outras romanas de “vida fácil” – personagem da atriz Anna Magnani, Pina, é “a” heroína. No imediato pós-guerra, os principais cineastas italianos do realismo queriam romper com a representação do cinema fascista (que também possuía traços realistas). O ideal hollywoodiano da estrela foi rejeitado, embora os atores profissionais não tenham sido desdenhados completamente. Mais do que qualquer outra atriz, foi Magnani quem representou o movimento neorrealista. Vinda do teatro de revista, seu primeiro papel dramático foi com Pina. Ela não era particularmente bonita ou “bem dotada”, mas foi a pioneira de um novo tipo de mulher-mãe passional do povo e representou a obstinação dos romanos durante a ocupação alemã e a reconstrução (14). Contudo, Marcus sugere que nem mesmo Rossellini acreditava mais nisso:

“(...) O fato de Fred recusar o encontro com Francesca, perdendo seu papel no enredo de melodrama convencional redenção-da-prostituta, significa que o próprio Rossellini renunciou à alegoria da ‘boa’ Itália, personificada por Pina no final de Roma, Cidade Aberta. No breve espaço de um ano que separa Roma, Cidade Aberta de Paisà, o sonho utópico deu lugar ao cinismo e desespero expressos pela variante de 1946 [Paisà] [...] da personificação feminilizada da alegoria, tão recorrente nos filmes realistas críticos do período do pós-guerra, aonde personagens mulheres altamente sexualizadas personificam o Estado-nação italiano como um todo” (15)

Leia também:

Notas:

1. BONDANELLA, Peter. Italian Cinema. From Neorealism to the Present. New York: Continuum, 3ª ed., 2008. P 46.
2. BEN-GHIAT, Ruth. The Fascist War Trilogy In FORGACS, David; LUTTON, Sarah; NOWELL-SMITH, Geoffrey (Eds.). Roberto Rossellini, Magician of the Real. London: British Film Institute, 2000. Pp. 24, 25, 29.
3. COTTINO-JONES, Marga. Women, Desire, and Power in Italian Cinema. New York: Palgrave MacMillan, 2010. Pp. 59-62.
4. MARCUS, Millicent. After Fellini. National Cinema in the Postmodern Age. Baltimore (USA): The Johns Hopkins University Press, 2002. Pp. 31, 326n31.
5. KEZICH, Tullio. Federico Fellini. His Life and Work. New York/London: I.B. Taurus, 2006. P. 84.
6. COTTINO-JONES, Marga. Op. Cit., p. 61.
7. MULVEY, Laura. Vesuvian Topographies: The Eruption of the Past in Journey to Italy In FORGACS, David; LUTTON, Sarah; NOWELL-SMITH, Geoffrey (Eds.). Op. Cit., p. 103.
8. NOWELL-SMITH, Geoffrey. North and South, East and West: Rossellini and Politics. In FORGACS, David; LUTTON, Sarah; NOWELL-SMITH, Geoffrey (Eds.). Op. Cit., pp. 11-12.
9. COTTINO-JONES, Marga. Op. Cit., p. 74.
10. RICCI, Steven. Cinema & Fascism. Italian Film and Society, 1922-1943. Berkeley: University of California Press, 2008. P. 170.
11. FABRIS, Mariarosaria. O Neo-Realismo Cinematográfico Italiano. São Paulo: Edusp, 1996. Pp. 90, 111n83.
12. COTTINO-JONES, Marga. Op. Cit., p. 62.
13. BRUNETTA, Gian Piero. The History of Italian Cinema. A Guide to Italian Film From its Origins to the Twenty-first Century. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 2009. Pp. 109-10.
14. GUNDLE, Stephen. Bellissima. Feminine Beauty and the Idea of Italy. New Haven & London: Yale University Press, 2007. P. 123.
15. MARCUS, Millicent. Celluloide and the Palimpsest of Cinematic Memory. Carlo Lizzani’s Film of the Story Behind Open City In GOTTLIEB, Sidney (Ed.). Roberto Rossellini’s Rome Open City. Cambridge/UK: Cambridge University Press, 2004. P. 70.