14 de mai. de 2009

Pasolini e o Sexo Como Metáfora do Poder (II)

Salò, os 120 Dias de Sodoma
 
  
“Lá é bom, mas é ruim.
Aqui é ruim, mas é bom”

Junior,
ídolo do flamengo e integrante da seleção

brasileira em 82 e 86. Um jornalista pediu que ele
falasse sobre sua vida quando jogou na Itália



Contextualizando

Pino Bertelli traça um interessante quadro da situação política da Itália na década de 70, o que pode auxiliar a compreensão do filme de Pasolini (1). Entre 1968 e 1982, as lutas sociais na Itália tomaram caminhos diversos. Depois do Outono Quente de ’69 (2), a classe operária sindicalizada gradativamente se rende ao consumismo, tornando-se a coluna de sustentação da “nova pequena-burguesia” e legitimando a passagem de um fascismo a outro. Dos Movimentos de ’68 surge a luta armada terrorista. Descobre-se que por trás de muitos atentados e problemas entre grupos estão o Serviço Secreto, o neo-fascismo, a máfia, a camorra e o crime organizado.

O filme se 
refere à morte dos
valores   tradicionais
e   a    imposição    de
uma  mentalidade consumista
... (3)

A luta armada na Itália tem raízes profundas na Resistência traída (4). A onda terrorista entre ’68 e ’82 obteve sucesso em mostrar um Estado social em decomposição, em processar todo o período constitucional e, ao eliminar Aldo Moro (5) desvelar a conivência entre poder político e criminalidade, culpados dos massacres que ensangüentaram o território italiano a partir do episódio da Banca dell’Agricultura, em Milão, 1969 (6).

Pasolini tinha dúvidas
se um espectador comum
,
ou    mesmo    os     críticos
,
entenderiam     que     todo
aquele sexo e depravação

eram uma metáfora (7)

As Brigadas Vermelhas tinham pouco mais de 300 integrantes prontos para tudo. Isto é, para fazer a revolução num país onde o catofascismo (catolicismo+fascismo) Democrata-Cristão estava profundamente ligado ao fascismo vermelho do Partido Comunista Italiano (PCI). Embora existissem milhares de simpatizantes das Brigadas, também havia muita gente que não estava nem do lado das Brigadas nem do lado do Estado. Enquanto isso, em O Desaparecimento dos Vaga-lumes (8) (1º de fevereiro de 1975), Pasolini grita contra a passividade cultural e política do povo italiano e o casamento torpe entre a direita e o PCI.


Segundo    Pasolini,
o homem nasce
conformista,
a sociedade apenas aprofunda
essa     tendência
.    Portanto
não existe
liberdade! (9)



Uma polêmica atual entre os governos do Brasil e da Itália poderia ilustrar a situação. A Itália tem pedido ao Brasil a extradição de Cesare Battisti, um ex-ativista que fugiu do país e se encontra preso aqui. A recusa do governo brasileiro tem feito o tom do governo italiano mudar... O pensador italiano Toni Negri acha que o Brasil está sendo insultado com a retórica do governo de Silvio Berlusconi. De acordo com Negri, o sistema judiciário deficiente seria uma das causas para a fuga de ex-militantes de grupos terroristas de esquerda. Não se acredita num julgamento justo. Até porque, afirma Negri, o governo italiano atual, deseja trancar esses antigos opositores como assassinos e, ao mesmo tempo, encobrir e levar ao esquecimento a natureza brutal do...

“(...) Estado de Exceção, que permitiu a detenção e a prisão preventiva de milhares de pessoas durante estes anos. É necessário recordar que nos anos 70 o limite jurídico da prisão preventiva era fixado em 12 anos. É necessário recordar o uso da tortura e de processos sumários inteiramente construídos sob a palavra de presos aos quais era prometida a liberdade em troca de confissões. Este foi o clima dos anos 70. E não nos esqueçamos que nos anos 70 houve 36 mil detenções, seis mil pessoas foram condenadas e milhares se refugiaram no exterior. E se há quem duvide desses números, e que quer continuar duvidando, basta que dêem uma olhada nos relatórios da Anistia Internacional naqueles anos. Portanto, essa é uma questão muito séria. O caso Battisti é, na verdade, um pobre exemplo de uma estrutura, de um sistema no qual a perseguição, insisto na palavra ‘perseguição’, era acompanhada por enormes escândalos na estrutura política e militar italiana (...)” (10)

De acordo com Pasolini,
a esperança foi inventada
 pelos    partidos   políticos
. 
Não     podemos     esperar
nada     do     Poder:     nós
não     somos     livres! (11)


Ao mesmo tempo em que o governo italiano utiliza dois pesos e duas medidas, já que não se interessa em pedir a extradição de terroristas que trabalharam para os governos de direita do país, mas que foram forçados a deixá-lo para não serem julgados. Ou seja, refugiados de direita não são incomodados. O próprio Negri ficou preso durante muitos anos, acusado de chefiar as Brigadas Vermelhas. Negri conclui num tom bem próximo ao de Pasolini, dizendo que “o governo italiano é um governo quase fascista”.

“(...) Na Itália se busca desesperadamente fazer valer uma mitologia dos anos 70 que é falsa. E a direita no poder hoje busca a qualquer custo restaurar um clima de falsidade e de intimidação para não permitir que a história seja contada como foi (...)” (*)

Notas:

Leia também: 

Pasolini e o Sexo Como Metáfora do Poder (I)

1. BERTELLI, Pino. Pier Paolo Pasolini. Il Cinema in Corpo. Atti Impuri di un Eretico. Roma: Edizioni Libreria Croce, 2001. Pp., 302-3.
2. Greves e manifestações dos trabalhadores italianos em busca de melhoria das condições de trabalho, melhoria salarial e maior reconhecimento social. Conseguiram aumento o aumento salarial, a semana de quarenta horas e a presença do sindicato nas empresas. A reivindicação de consolidação das instituições democráticas no país, para alguns, foi um anseio não conquistado.
3. VOSLION, Amaury. Salò d’Hier à Aujourd’hui. Documentário, 2002.
4. Em 25 de abril de 1943, cai a ditadura de Benito Mussolini, o movimento de Resistência esperava por uma revolução que não veio. Este episódio é um dos fundamentos das Brigadas Vermelhas, grupo terrorista que atuou na Itália e surge do Partido Comunista Italiano, mas para rebelar-se contra um partido que consideravam incapaz de realizar a revolução mundial preconizada por Che Guevara.
5. Entre as muitas teorias sobre o seqüestro e assassinato de Aldo Moro, existe a hipótese de que o próprio governo norte-americano estivesse envolvido, com o objetivo que manter o estado de desordem social na Itália, o que beneficiaria de alguma forma a superpotência no campo de batalha da guerra fria que estava em curso.
6. Guiseppe Pinelli, anarquista italiano acusado de ter perpetrado o atentado ao banco Banca dell’Agricultura, morre em condições misteriosas: ele caiu da janela de uma delegacia de polícia em Milão, 15 de dezembro de 1969.
7. VOSLION, Amaury. Op. Cit.
8. “Scomparsa delle Lucciole”, artigo escrito no Corriere della Sera. Existe uma versão digital disponível em:
http://www.pasolini.net/saggistica_scritticorsari_lucciole.htm Acessada em: 12/05/09.
9. VOSLION, Amaury. Op. Cit.
10. Itália insulta o Brasil no caso Battisti, diz filósofo italiano Toni Negri. Entrevista de Toni Negri à Thiago Scarelli, 15/02/2009. In Blog da Segurança Pública – Polícia Levada a Sério. Disponível em: http://noticias.uol.com.br/politica/2009/02/15/ult5773u622.jhtm

11. VOSLION, Amaury. Op. Cit.

7 de mai. de 2009

Accattone: Favelado, Cafetão e Cristo




Accattone
,
em italiano
,
quer dizer
“mendigo”






A Favela Italiana na Telona

De acordo com Pino Bertelli, o cinema de Pier Paolo Pasolini é um veneno para o coração de todos que possuem um imaginário domesticado. Já em Accattone, Desajuste Social (Accattone, 1961), Pasolini cria um obra ímpar, que mostra a vida na favela da periferia de Roma em detalhe. Na opinião de Bertelli, o primeiro filme de Pasolini constituiu a maior estréia individual do cinema italiano (1). Accattone, um cafetão da favela de Torpignattara em Pigneto durante a década de 60 do século passado (2). De fato, Franco Citti, que interpreta o papel, era um morador da favela e foi ao freqüentá-la que Pasolini o conheceu. Accattone é também uma espécie de Cristo pasoliniano.




“O  chamavam  de
 Accattone porque ele
mendigava a vida”

Pino Bertelli





Anjos serão uma constante na cinematografia pasoliniana. Uma série de seqüências do filme remetem a vida/morte. Logo no começo, para provar que não tem medo da morte (e também para arrumar algum dinheiro apostando que não morreria), Accattone salta de uma ponte no rio Tibre que atravessa Roma. Nesta cena podemos ver as estátuas de anjos da ponte como que protegendo aquele homem (imagens acima). No final do filme, quando Accattone rouba uma motocicleta, bate e morre, Ballila, um de seus amigos, faz o sinal da cruz invertido. Embora Bertelli chame atenção para esse detalhe, de acordo com Pasolini, o que importa é perceber um significado de esperança no sinal da cruz. O cineasta achou que poucos veriam a cena nesse prisma, mas foi isso que quis dizer (3).



O filme 
mostra a degradação 
da vida na periferia
de Roma





Mas antes disso o filme mergulharia numa seqüência digna de Luis Buñuel (as duas próximas imagens). Na noite que antecede o dia em que Accattone resolveu arrumar um emprego honesto, ele tem um sonho/pesadelo. Ele caminha no parapeito de uma ponte, quando desce para o asfalto vê ao longe o grupo dos napolitanos amigos de Ciccio (um cafetão que Accattone conseguiu mandar para a cadeia e colocar a culpa em Maddalena, a prostituta que trabalha para os dois). Ao se aproximar, eles agora estão nus e mortos. Em seguida, Accattone percebe ao longe um cortejo fúnebre (o mesmo que havia visto de verdade um outro dia) e encontra seu grupo de amigos. Para sua surpresa, estão indo ao enterro dele! Accattone os acompanha, mas é impedido por um funcionário de entrar no cemitério. Ele pula o muro e avista um coveiro cavando uma sepultura para ele na sombra. Accattone pede que cave um buraco onde bate o sol.



O    filme     mostra
também  a  santidade
da inocência que essa

degradação contém





A Censura (Mas Não ao Consumismo) 


A cultura
de Accattone
(ou  a  falta  dela)

legitima  a  visão
de     mundo
burguesa



O filme exorta, defende Bertelli, a uma análise sobre a dominação do imaginário pelo consumismo e pela mitologia do consenso e dos desejos coletivos. A linguagem do consumo substitui o imaginário, “o mercado torna-se a única estética à qual conformar-se”. O percurso pasoliniano, sugere ainda Bertelli, tende a redescobrir a subjetividade criativa do indivíduo, disseminando novas estéticas do sonho e outras figurações da realidade. Neste sentido é que se pode afirmar que Pasolini está entre aqueles (como Jean-Luc Godard em Acossado, para a seqüência surreal em que Accattone acompanha o próprio funeral; e Orson Welles) que subverteram a gramática cinematográfica (4). Bertelli não para por aí, em vários trechos de Accattone, Desajuste Social, ele afirma encontrar pitadas de Carl Dreyer (A Paixão de Joana D’arc, 1928; O Vampiro, 1932), Mizoguchi (Mesmo Assim Continuamos a Viver (5), 1931), Phil Jutzi (A Viagem de Mãe Krause Para a Felicidade, 1929), Sergei Eisenstein (O Encouraçado Potemkin, 1926), Vsevolod Pudovkin (A Mãe, 1926) e Aleksandr Dovzenko (A Terra, 1930). Sem falar numa releitura do Neo-Realismo (6).





Pasolini sempre
criticou o racismo
da burguesia




Bertelli questiona os críticos da época. Reprova Paolo Gobetti por sugerir que Accattone, Desajuste Social tem uma linguagem cinematográfica imatura. Acusa de moralista a afirmação de Guido Aristarco de que o filme foi uma forma de Pasolini expor um sentimento de culpa em relação a sua homossexualidade. Na opinião de Bertelli, o que escandaliza os moralistas é a homossexualidade declarada de Pasolini (7). E a sociedade italiana era (?) provinciana e preconceituosa, não conseguia aceitar as críticas de Pasolini à forma como a economia e a política da Itália estavam sendo geridas no pós-guerra. Como se a homossexualidade impedisse o espírito crítico.

Pasolini
era contrário
à doutrinação
das     classes
pobres pelos
comunistas



O universo subproletário de Roma torna-se uma metáfora do mundo na obra literária e cinematográfica de Pasolini. Em 1955, baseado em sua experiência nas favelas de Roma, Pasolini havia publicado Ragazzi di Vita. Alguns poderiam dizer que se trata apenas da história indigesta e imoral de rapazes pobres que vivem de roubo e prostituição. Mas o contexto do livro está ancorado nos primeiros dias do pós-guerra em Roma, e mostra desde as esperanças traídas da Resistência (os grupos de civis que lutaram contra o invasor alemão) até a restauração do que Pasolini considerava o “novo fascismo” dos anos 50 do século passado. O governo classificou como “leitura obscena” e censurou o livro, os católicos chamavam de blasfêmia e os comunistas estavam desconcertados com um livro que mostrava a animalidade da vida nas favelas da cidade (8).

Contextualizando

Bertelli nos lembra do contexto ao qual Accattone, Desajuste Social remete ou, pelo menos, do qual Pasolini era contemporâneo, já que o filme foi lançado em 1961. O filme mostra a continuidade entre o regime fascista de Mussolini e o Democrata-Cristão/Comunista da década de 60 (9). A vida curta de Accattone espelha o povo italiano humilhado pelo então governo de Giovanni Tambroni. Em 30 de junho de 1960, no episódio conhecido como A Revolta de Genova, ocorre um confronto entre as forças neofascistas e o povo nas ruas. Pela primeira vez desde o fim da guerra, haviam entrado para o governo os fascistas do Movimento Social.


Em 30 de junho, os fascistas da Força Nova convocaram uma manifestação em Genova. Os portuários convocaram uma greve e uma manifestação para se opor aos fascistas. A postura antifascista era muito popular, embora difusa, entre os proletários de então.

Após a reconstrução do pós-guerra, os anos do Milagre Econômico não foram acompanhados por um aumento na representatividade política das diferentes forças sociais. O Partido Comunista Italiano (PCI) controlava a classe operária e procurava fazer frente ao Partido Democrata-Cristão DC), então no poder. Uma multidão de 100 mil pessoas (proletários e trabalhadores) percorre a cidade. Fazem um comício na Piazza della Vittoria e se dirigem a Piazza De Ferrari. Lá entram em confronto com a polícia. O governo Tambroni cai e se abre caminho ao futuro governo de centro-esquerda (10). (imagem abaixo, Accattone conhece Stella e diz o que faria para melhorar a Itália)


Com esta contextualização compreende-se melhor a frase de Accattone quando conheceu Stella. Ele havia ido procurar sua esposa para tentar arrumar algum dinheiro com ela. O lugar era uma espécie de depósito gigante de garrafas vazias, onde algumas pessoas ganhavam trocados separando-as e lavando-as. Enquanto espera, Accattone conhece Stella, uma moça muito pobre e muito ingênua (mas que já sabe o que é a prostituição, pois sua mãe havia feito isso para viver). Em certo momento, Accattone faz um comentário:

“Eu sei o que é preciso
para acertar a Itália
. Veja só, Lincoln  libertou  os  escravos!
E aqui [instituíram a escravidão]! Com   uma   metralhadora   na
minha    mão
   sobrariam
poucos    de    pé”
(11)

Notas:

1. BERTELLI, Pino. Pier Paolo Pasolini. Il Cinema in Corpo. Atti Impuri di un Eretico. Roma: Edizioni Libreria Croce, 2001. Pp. 24 e 28.
2. CECCARELLI, Filippo. Le borgate perdute di Pasolini In
Pier Paolo Pasolini. Pagine Corsare, 2005. Disponível em: http://www.cinetecadibologna.it/sitopasolini/notizie_borgateperdutedippp.htm Acessado em: 06/05/09.
3. BERTELLI, Pino. Op. Cit., pp. 29-30.
4. Idem, p. 33.
5. Título não lançado no Brasil até o momento, esta é uma tradução baseada no título italiano citado no livro de Bertelli.
6. BERTELLI, Pino. Op. Cit., p. 37-8.
7. Idem, p. 31.
8. Ibidem, p. 44.
9. Ibidem, p. 49.
10. 30 giugno 1960 La rivolta di Genova. In Umanità Nova. Settimanale Anarchico n.24 del 1 luglio 2001 Disponível em:
http://www.ecn.org/uenne/archivio/archivio2001/un24/art1711.html Acessado em: 07/05/09.
11. Nas legendas do dvd lançado no Brasil pela Versátil Home Vídeo, o trecho utiliza palavras um pouco diferentes do texto no roteiro original, embora sem grande prejuízo. O próprio roteiro é seguido apenas em parte. Mesmo assim, optei por fazer uma mistura entre os dois por considerar o texto do roteiro mais contundente. Accattone: “Eh, lo saprebbe io che ce vò in Itália! Sì che s’ha da vede! Eppure Lincoln l’há libberati li schiavi! Invece qua se manca proprio che ce mettono la palla ar piede! Ah, co’um mitra in mano a me, rimanessimo pochi in piedi!” SITI, Walter; ZABAGLI, Franco (eds) Pier Paolo Pasolini per il Cinema. Milano: Mondadori, 2 vols. 2001. Vol 1, p. 50. 


5 de mai. de 2009

Antonioni e a Trilogia da Incomunicabilidade (V)



“Civilização da imagem? Na verdade uma civilização do clichê”

Gilles Deleuze


A Visão do Olhar: As I
magens de Antonioni

O último filme da Trilogia da Incomunicabilidade desenvolve de uma maneira ainda mais profunda a questão do olhar. Filmes posteriores de Antonioni, como Depois Daquele Beijo (Blow Up, 1966) e Profissão Repórter (Professione: Reporter, 1975), irão um passo além, abordando a natureza e criação da própria representação visual. Na seqüência inicial de O Eclipse (L'eclisse, 1962), Vittoria “enquadra” alguns objetos através de uma moldura vazia, como se Antonioni estivesse sugerindo como deveríamos olhar para o filme que se inicia (imagem acima). Esse gesto de Vittoria guarda dentro de si um significado que extrapola a narrativa, passando pelo significado das imagens nos filmes de Antonioni e chegando à problematização da própria busca de significados em relação ao mundo da imagem.



 Antonioni não fala através de imagens,, 
ele  problematiza  a  própria  imagem

O apartamento de Riccardo, onde Vittoria enquadra objetos, está cheio de arte abstrata (imagem acima). Da mesma forma que a visita de Cláudia à galeria de arte em A Aventura (L’avventura, 1960) (imagem abaixo, à esquerda), essa decoração nos fornece uma chave interpretativa para o último filme da trilogia (1). Na época em que Antonioni filmou O Eclipse, uma das correntes da arte contemporânea que estava em voga era o Expressionismo Abstrato, formado por um grupo pouco homogêneo de artistas que vai desde as pinturas “pingadas” de Jackson Pollock, e os padrões de cor de Mark Rothko, até à geometrização de Barnett Newman. Nos créditos iniciais do filme, como reparou Peter Brunette, o enquadramento já sugere, com uma linha vertical à esquerda, o trabalho de Newman. Como em suas pinturas “zip”, a linha se abre, voltando a se fechar como um zíper.


Por que não
ad
otamos frente a
um filme a mesma postur
a inquisitiva que adotamos
em relação a uma
obra de arte?


Por que Refletir é Chato?

Os filmes de Antonioni podem acabar sendo castigados por interpretações simbólicas apressadas. Brunette volta ao exemplo da seqüência inicial, quando Vittoria abre a cortina e vemos uma forma arquitetônica parecida com um cogumelo atômico. Concluiríamos logo que se trata de uma metáfora da situação do casal. Entretanto, pelo menos para os italianos residentes em Roma, aquilo é uma torre com uma caixa d’água no topo. Primariamente, trata-se apenas de um prédio em forma de cogumelo, ainda que sua forma se preste muito bem ao significado da bomba atômica que se poderia dar a ela fora da Itália.




 Existe algum
sign
ificado nos
filmes
deAntonioni se
ele não pode ser
verbalizado?



 De qualquer forma, durante a década de 60 não seria difícil encontrar na sociedade européia imagens do medo do holocausto nuclear. Outro exemplo daquilo que Brunette chama de exagero interpretativo estaria na seqüência da bolsa de valores. Aquela pilastra que não somente separa Vittoria e Piero, mas esconde partes deles em relação aos espectadores (imagem acima, à esquerda). Muito rapidamente se transforma essa visão num símbolo de outra coisa, geralmente ruim. “É verdade que o diretor escolheu incluir esse objeto em particular no enquadramento, e, portanto em certo sentido ele é responsável [por tantas interpretações]” (2). Mas afinal, como vamos entender se não podemos interpretar?



Como descrever um significado visual?

Através dos exemplos da caixa d’água e da pilastra, Brunette está chamado atenção para a natureza e expressão do significado visual em geral, particularmente em O Eclipse. O significado verbal (o texto, a narrativa ou aquilo que é dito pelos personagens) sempre recebeu mais atenção do que o significado visual.


Sempre foi difícil dizer exatamente o que qualquer imagem quer dizer. Mas é um erro acreditar que as palavras são ferramentas sem ambigüidades. Diante da velha disputa entre sentido verbal e sentido visual, e já que Antonioni enfatiza a interpretação visual, Brunette se pergunta se existe sentido naquilo que não pode ser verbalizado. Se existe como verbalizá-lo? Ou, para quê verbalizar? Nesse caso, como comunicar? Existem closes de mãos em O Eclipse, o que elas querem dizer? Existem alguns closes de faixas de pedestres na rua, o que elas querem dizer?



Qual foi a intenção de Antonioni na seqüência inicial, quando colocou apenas o topo da cabeça dos personagens no enquadramento (filmadas por trás)? E a brisa que se ouve soprando entre as árvores ou entre os cabelos de Vittoria, ou no escritório de Piero, ou ainda o som das cordas batendo nos mastros quando Vittoria vai procurar o cão de Marta? (imagem acima, à direita) Existe algum sentido nessas imagens e sons ou são apenas elementos visuais sem nenhuma relevância para a narrativa? De acordo com Brunette, Antonioni pensa visualmente, mas não de uma maneira simbólica.


“É difícil estabelecer sentidos mais precisos para esses momentos e, quando possível, ou melhor, assim parece, o resultado é quase sempre redutor. Talvez fosse melhor simplesmente ver essas imagens, tanto visuais quanto aurais [sonoras], como criando um campo emocional não específico que acompanha, ou intensifica níveis temáticos mais específicos sugeridos através dos meios convencionais de diálogo, personagem e estória. O cineasta contemporâneo que mais se assemelha a Antonioni nesse particular é o diretor polonês Krzysztof Kieslowski que, como seu par italiano, [é] adorado por alguns por suas nuances emocionais sutis e ridicularizado por outros por ser ‘chato’. Em filme após filme – como A Dupla Vida de Veronique e [os filmes da] Trilogia das Cores, baseada na bandeira francesa – Kieslowski procurou criar uma textura expressiva generalizada que parece transcender (ou vir ‘antes’) do sentido temático específico. De fato, como nos filmes de Antonioni, o tema de seus filmes pode ser precisamente essa própria sensibilidade, articulada simplesmente para seu próprio bem” (3)

O Clichê da Minha Vida

 Confiamos tanto no olhar que nos tornamos cegos, nos viciamos naquilo que, acostumados a ver, tomamos como o único mundo possível. Fomos apanhados na teia dos clichês visuais que nós mesmos criamos. Os protagonistas masculinos de O Eclipse, Riccardo e Pietro, são a mesma pessoa, na medida em que parecem perdidos no mesmo ponto cego de suas vidas. Com sua resposta insistente ao mundo (“não sei, não sei”), Vittoria poderia representar um ponto de ruptura, quando percebemos nossa vida mergulhada em clichês, mas não conseguimos decidir como nos libertar.




A famosa seqüência final de O Eclipse, sem diálogos e sem o encontro marcado entre Vittoria e Pietro, seria uma boa oportunidade para questionarmos os clichês em torno dos quais vivemos. Por sinal, a seqüência teria sido até mais longa se não tivesse sido cortada pelos produtores do filme sem o conhecimento de Antonioni (imagem acima, um dos poucos habitantes humanos na seqüência final). De qualquer forma, o cineasta sustenta que o espectador não deve se contentar com o final de um filme. O espectador deve levá-lo para fora do cinema, para suas vidas. Um filme, afirma Antonioni, deve ter uma vida mais longa do que simplesmente sua projeção física na sala de cinema. “Então, se o filme se mantiver no interior do espectador, significa que a experiência que ele teve valeu a pena” (4). Neste sentido é que o final sem final de O Eclipse faz sentido.

“Eu sempre imaginei se é correto sempre criar um final para as estórias, sejam literárias, teatrais ou cinematográficas. Uma vez que esteja fortemente canalizada, uma estória está em perigo de morrer no [seu] interior a menos que você permita que seu tempo se prolongue nesse mundo externo onde nós, os protagonistas de todas as estórias, vivemos. Onde nada é conclusivo. ’Me dê novos finais’, uma vez disse Chekhov, ‘e eu reinventarei a literatura’” (5)


Leia também: 


Notas:

1. BRUNETTE, Peter. The Films of Antonioni. New York: Cambridge University Press, 1998. P. 75.
2. Idem, p. 77.
3. Ibidem, pp. 79-80.
4. ANTONIONI, Michelangelo. Architecture of Vision. Writings and Interviews on Cinema. USA: University of Chicago Press, 1996. Pp. 218-9.
5. ANTONIONI, Michelangelo. That Bowling Alley on the Tiber. Tales of a Director. New York: Oxford University Press, 1986. P. 188.