9 de jun. de 2009

Pasolini e o Sexo Como Metáfora do Poder (IV)


“Eu não sei
nem como
,
nem quando,
alguma coisa
de humano
acabou”


Pier Paolo Pasolini (1)
Revolução Sexual?

Depois de dirigir os filmes de sua Trilogia da Vida, Pier Paolo Pasolini parecia não nutrir muitas esperanças de que a Itália sobrevivesse ao bombardeio avassalador que o consumismo promovia nos corações e mentes de seus conterrâneos. Tanto é que ao ver como os filmes foram deglutidos pela lógica do consumo e transformados em pornografia ele abjurou os filmes da Trilogia. Talvez fosse tarde demais, os próprios corpos das pessoas haviam sido dominados, a sexualidade em si mesma estava a mercê e a serviço do mercado de consumo: agora sexo é bom por que vende um produto qualquer, ainda que seja a pornografia.

Na década de 70 do século passado, após o advento da pílula anticoncepcional, a liberdade sexual era uma questão aparentemente resolvida. Os corpos eram agora aparentemente livres para fazer sexo quando quisessem e com quem desejassem. As lutas das feministas em torno do aborto estavam na ordem do dia. Entretanto, do ponto de vista de Pasolini era como se o mundo estivesse acabando. Para começar, ele era contra o aborto e questionava o papel da escola, que estaria a serviço do capital e não mais se concentrava em formar pessoas, mas consumidores.

Há quem diga que a luta dele contra o aborto teria raízes em sua mãe. Ele foi muito ligado a ela e estaria vendo a legalização do aborto como uma forma de destruir os laços entre mães e filhos. Seja como for, o cineasta acreditava que era falsa a permissividade do Estado em relação à revolução sexual. Pasolini fazia uma distinção entre pornografia comercial e pornografia poética, chamando atenção para o fato de que a tolerância do Estado tendia a se voltar para as obras pornográficas vulgares e comerciais, enquanto mantinha sua intolerância em relação às obras de arte onde o elemento erótico tinha sempre um significado cultural e político (2). A falsa permissividade do Estado esconderia a censura àquelas formas de erotismo e de culto ao corpo que não estão a serviço dele e do mercado de consumo direcionado a um público massificado (estúpido).

Foi esse o motivo que levou Pasolini a abjurar sua Trilogia da Vida, pois o erotismo e os corpos nus ali presentes foram destituídos de sua carga poética e o mercado de consumo passou a enfatizar apenas o lado pornográfico, vulgar e comercializável. De acordo com ele, se o exercício da própria sexualidade liberta alguém, então o Estado e o neocapitalismo trataram de destituir o sexo dessa potência libertária e o transformaram numa espécie de rede através da qual a energia da vida poderia ser capturada e direcionada ao consumo de produtos – pornográficos ou não.

Pode-se compreender agora o ponto de vista de Pasolini: por uma censura democrática contra a permissividade do Estado. Segundo o cineasta: “(...)Tal permissividade do Estado é um dos elementos de poluição do homem, justamente porque ele é estatal, capitalista; ela é, portanto, um elemento da alienação e da neurotização dos indivíduos – um elemento de mercantilização que, em grande escala, coincide com um verdadeiro genocídio” (3)

O erotismo torna-se obsessivo, uma vez que em sua nova condição de produto, deverá ser vendido e consumido. Sim, o sexo deve ser transformado numa compulsão para que dê lucro. A frustração com essa sexualidade compulsiva adviria do fato de que fazer sexo se tornou então uma obrigação! Portanto, quanto mais se faz, menos ele satisfaz. Este seria o universo da falsa tolerância do Estado em relação à pornografia. Além disso, sempre que o Estado assim desejar voltará a fazer suas cruzadas moralistas, culpando as pessoas pela degradação engendrada por ele e se apresentando como salvador da moral pública.

“Pasolini sabia também que a revolução sexual promovida pelo fascismo do consumo era uma mistificação, que assim que a humanidade terminasse de realizar a industrialização total do planeta, um moralismo feroz ressurgiria a obrigar todos a fazer o amor dentro das normas produtivas e sociais, através da distribuição de papéis” (4)

O Novo Fascismo

“Se cinco anos de progresso
fizeram
dos italianos um povo
de
neuróticos idiotas, cinco anos de
miséria podem restituir-lhes
a humanidade (...)

Pier Paolo Pasolini (5)

Salò, os 120 Dias de Sodoma
(Salò o le 120 Giornate di Sodoma) é uma metáfora do poder totalitária que se metamorfoseia. Dos dias de Mussolini até a fase do Milagre Econômico na Itália do pós-guerra, existe uma linha que leva direto ao coração do “totalitarismo tolerante” que Pasolini combatia. Eis porque, seu filme foi proibido tão veementemente, eis porque apenas se enfatizam as perversões sadomasoquistas que se pode assistir ali. A bestialidade, que Pasolini desejava fazer ver nos desejos dos Patrões fascistas do filme, foi transformada em fetiche pornô, neutralizando a perspectiva crítica em relação ao momento que a Itália estava vivendo nas décadas do pós-guerra. Pasolini não viveu para ver como ele estava certo, entretanto se Salò foi concebido como a forma mais violenta possível para se mostrar o absurdo da situação política e social da Itália de então, hoje em dia tudo que se pode ver ali passaria quase despercebido aos sadomasoquistas de hoje. Se naquela época, teríamos que conseguir uma cópia pirata do filme de Pasolini para vislumbrar jogos sadomasoquistas, hoje basta comparecer a banca de jornais mais próxima.

Pasolini distinguia entre clérico-fascismo e novo fascismo. O primeiro correspondia a aliança entre o Estado capitalista e a Igreja. Daqui nascia um totalitarismo agrário, artesanal e conservador. Talvez equivalente ao coronelismo no Brasil, esse fascismo era “superficial”, no sentido de que ainda manteria intacta a estrutura psíquica do povo e suas tradições. Exemplos de clérico-fascismo seriam as ditaduras de Salazar em Portugal, de Franco na Espanha e o regime de Mussolini na Itália. O novo fascismo corresponde a aliança entre a Empresa totalitária com o Estado. Mais profundo que o anterior, esse novo fascismo penetra os indivíduos até a alma, roubando-lhes a humanidade. Exemplos desse tipo de fascismo seriam todos os “milagres econômicos” – a Itália atravessou dois até a década de 80 do século passado e o Brasil atravessou um na década de 70, justamente durante a última ditadura. Se antes o italiano seria capaz de interiorizar a pureza da natureza e da humanidade, com o advento do novo fascismo o indivíduo só consegue interiorizar um carro, um refrigerador, um fim de semana na praia (6). O novo fascismo se apresenta com a roupagem da democracia, entretanto a sociedade de consumo transforma radicalmente os jovens.

É isso que está por trás de Salò, os 120 Dias de Sodoma. Ali podemos encontrar assassinato, corpos nus, homossexualismo, sadismo e masoquismo, travestismo e masturbação, além das repugnantes cenas de coprofagia. Entretanto, somente as mentes puritanas e/ou aquelas afogadas na cloaca da estupidez totalitária-consumista-hipócrita serão incapazes de perceber que não se trata de pornografia barata, mas de uma representação do Poder que as fez andar de quatro sem que se dêem conta disso.

Notas:

1. NAZÁRIO, Luiz. Todos os Corpos de Pasolini. São Paulo: Perspectiva, 2007. P. 107.
2. Idem, p. 103.
3. Pour une censure démocratique contre la permissivité d’État, Écran nº42; Le génocide, Écrits Corsaires, pp.239-301. Citado em NAZÁRIO, Luiz. Op. Cit., p. 103.
4. NAZÁRIO, Luiz. Op. Cit., p. 102.
5. Idem, p. 107.
6. La première vraie révolution de droite, Écrits Corsaires, p. 50. Citado em NAZÁRIO, Luiz. Op. Cit., p. 104.