13 de ago. de 2009

Blow Up, Depois Daquele Beijo


“(…) Seu herói favorito é
aquele que olha (seja fotógrafo
ou repórter). É perigoso, já que ao observar, ao olhar mais tempo que
o necessário (…), desequilibra-se a ordem estabelecida, uma vez que normalmente o tempo exato
de uma olhada é algo ditado
pela sociedade”

Roland Barthes

Sabe aquele filme? É, aquele em que um grupo de pessoas joga tênis utilizando uma bola imaginária! (imagem acima) Sim, foi a única vez que Jeff Beck e Jimmy Page, famosos descompensados e guitarristas, apareceram juntos na mesma banda, os Yardbirds. Sim, temos sexo casual. Sim, temos drogados o tempo todo. E sim, também temos a sensação equivocada de que em Londres (ou no Rio de Janeiro) tudo isso é só alegria de viver e não têm relação nenhuma com guerras de traficantes nos morros cariocas. Sim, temos sexo, drogas e rock’n’roll. Mas não é só isso!

Depois Daquele Beijo (Blow Up, 1966), filme do diretor de cinema italiano Michelangelo Antonioni é uma adaptação do conto As Babas del Diablo (1959), do escritor argentino Julio Cortazar (1). Neste conto, um aficionado por fotografia faz o retrato de uma mulher beijando um homem. Incomodada com o ato do fotógrafo, a mulher pede o filme. É quando outro homem, interessado naquele que ela beijava, se une a ela. O fotógrafo se alegra pelo beijado ter conseguido sair do local. Porém, quando amplia as fotografias, acredita que as imagens se movem e que talvez o homem não tenha conseguido escapar.

Antonioni se fascinava com o fato de Cortazar haver empregado a ampliação fotográfica para averiguar a realidade. Estes os elementos do conto que Antonioni utiliza em seu filme: 1] descobrir através da fotografia; 2] a ilusão de poder evitar um crime e; 3] o impacto psicológico de dar-se conta de suposições errôneas.

No filme, o fotografo Thomas (seu nome não aparece no filme, apenas no roteiro) é um profissional renomado. Fotografa moda e prepara um livro de imagens sobre sua cidade, a Londres dos anos 60 do século 20. Certo dia, Thomas fotografa uma jovem num parque, ela está abraçada com um homem mais velho. Ela segue o fotografo até sua casa e oferece seu corpo em troca das fotos. Thomas lhe dá um cartucho vazio. Intrigado, ele amplia as imagens e percebe angústia no rosto dela durante o abraço no parque. Com mais uma ampliação, descobre alguém escondido nos arbustos com uma pistola.

Acredita que conseguiu evitar um assassinato. Volta ao parque e descobre um cadáver, mas percebe que se esqueceu de levar sua câmera fotográfica, o impedindo de registrar o fato. No dia seguinte, volta ao local e descobre que o cadáver havia desaparecido.

O filme termina numa cena famosa em que Thomas devolve uma bola de tênis imaginária à um grupo de jogadores verdadeiros. Depois disso o próprio Thomas desaparece, deixando ao espectador apenas a imagem do parque. A busca de Thomas pelo cadáver e seu assassino é tão inconclusa quanto aquela de Sandro e Cláudia por Anna em outro filme dirigido por Antonioni, A Aventura (L’avventura, 1961). A diferença de Depois Daquele Beijo está no desenvolvimento mais convencional de seu argumento estrutural. Entretanto, a ausência de conclusão é distinta de A Aventura.

“A expressão do rosto de Thomas no final, quando se dá conta de que assiste a uma partida de tênis onde se joga sem bola, supõe uma conclusão em si mesma. Não obstante, o significado daquilo que pensa o protagonista é ambíguo e pode dar lugar a interpretações subjetivas. Algumas propostas são as seguintes: a arte, como forma de jogo, é ilusória; a vida é ilusória; os objetos visíveis não são suscetíveis de serem inspecionados à fundo (uma fotografia se decompõe em manchas sem sentido quando muito ampliada); um homem como Thomas (como todo artista?) deve ‘libertar-se do narcisismo[…] e admitir sem reservas que a realidade se constrói inconscientemente e se constrói socialmente’ “ (2)

Assim como A Aventura, Depois Daquele Beijo é uma estória de mistério sem resolução. A diferença no segundo caso é que o próprio protagonista desaparece no ar, na medida em que surgem na tela as palavras The End. Este desaparecimento simboliza uma parte importante da problemática do filme: a natureza problemática da ilusão, e da ilusão artística em particular. Outra questão que o filme levanta e articula a esta é a incerteza criada pela tecnologia. Ampliando suas fotografias, um fotógrafo pode ver mais do que se veria a olho nu. Thomas acredita retratar a vida cotidiana de Londres, porém, ao se converter em detetive, percebe como as coisas se distorcem a ponto de sua obra desaparecer. As ampliações acabam por transformar as imagens da realidade em puras abstrações. A realidade objetiva se perde e os simulacros tomam conta do mundo: a fronteira entre imagem, ilusão e realidade se esfuma. Antonioni disse que o desaparecimento de Thomas no final é seu autógrafo de cineasta. “Antonioni parece admitir que o destino de um cineasta seja o mesmo, e que também seu filme, o resultado de seu trabalho, acabará por desaparecer com o tempo”(3).

Além de mostrar a revolução nos costumes, fruto da nova mentalidade que surgia nas culturas européia e norte-americana, Depois Daquele Beijo mostra também seus perigos. Antonioni afirmou que procurou uma sensualidade fria e calculista. Deixar as pessoas vulneráveis à distração, indiferença e gratificação imediata é uma tendência bem evidente no filme. Além de atitudes sexistas e misóginas, Thomas é incapaz de terminar suas tarefas: seu livro de fotografias sobre Londres, seu casamento que fracassou e seu trabalho como fotografo de moda que não o satisfaz. Tudo vai ficando em aberto pelo caminho.

Durante seu trabalho de detetive, Thomas se distrai em compras compulsivas, sexo e drogas, inclusive esquece a câmera quando lhe faz mais falta. Os outros personagens sofrem problemas similares. As modelos estão com ressaca demais para conseguir posar bem, o que faz Thomas brigar e desdenhá-las – como se ele não fosse displicente. A mulher do parque, que o persegue em busca das fotografias, quase se esquece porque está no estúdio dele. Verushka, uma modelo que não pode posar para Thomas porque deve viajar para Paris, encontra com ele numa festa em Londres e, drogada, fica repetindo “estou em Paris”.

Ron, o amigo que Thomas procurava para contar sua estranha relação com aquelas fotografias do parque, está na mesma festa; mas está drogado demais para compreender aquilo que Thomas procura explicar. As drogas estão nesta trama oferecendo distração, ajudando a “viajar”.

“O exemplo mais representativo desta incapacidade para enfrentar os problemas é a conversa volúvel entre Thomas e Patrícia, esposa do pintor [vizinhos do fotógrafo]. As respostas às perguntas mútuas são incongruentes; cada um deles procura solucionar um problema determinado mas é incapaz de prestar suficiente atenção. Thomas quer saber o que fazer em relação ao cadáver assassinado, enquanto Patrícia quer que Thomas ajude, embora não consiga explicar sua situação nem dizer-lhe como deve atuar, se falam sem obter resposta um do outro. Ela pergunta a ele se não deveria chamar a polícia; ele não responde. Ele pergunta a ela porque não deixa Bill; ela não responde” (4)

No que diz respeito ao emprego das cores, Antonioni procurou efeitos que criassem uma sensação de frieza. Se em Deserto Vermelho (Il Deserto Rosso, 1964), seu primeiro filme colorido, dominam as cores quentes e vermelhos ardentes, em Depois Daquele Beijo é a vez dos azuis gélidos. O estúdio de Thomas parece mais espaçoso do que realmente é graças a uma elaborada coleção de objetos coloridos. Antonioni utiliza a cor para modelar estados de ânimo, tanto dos personagens quanto do público. Segundo o diretor italiano, a cor poderia mesmo substituir o fundo musical.

Considerava que a linguagem da imagem não tem nenhuma necessidade de misturar-se com música de fundo. Antonioni trabalha mais com os ruídos do mundo como, por exemplo, o som das folhas das árvores do parque. Comenta-se inclusive que a grama do parque foi pintada de verde com o objetivo de realçar relações entre cor e luminosidade.

Depois Daquele Beijo foi o único filme de Antonioni que deu retorno de bilheteria. Apesar de poucos admitirem, a maioria dos comentadores (e principalmente o público jovem da época) deu mais atenção ao uso de drogas, às orgias sexuais e as “viagens” (o jogo de tênis sem bola), do que em relação à questão do caráter ilusório da arte e da vida. Se minha conclusão pessimista estiver correta, ponto para o cinema norte-americano, cujo público não consegue (ou não deseja) ir além da superfície das telas dos cinemas. Quando assistimos aos filmes de Antonioni podemos dizer: “isso não é Hollywood!”

Notas:

Leia também:

Blow-Up: Antonioni e a Ficção da Vida Real
Arte do Corpo: Veruschka e a Pele Nua
Yasuzo Masumura e os Olhos nos Dedos
Isto é Hollywood!
As Mulheres de Ingmar Bergman (I)
Buñuel e as Formigas
O Que Sobrou da Nouvelle Vague?
O Desespero de Fassbinder
Antonioni e a Trilogia da Incomunicabilidade (IV)
, (V)
Ingmar Bergman e a Trilogia do Silêncio

1. CHATMAN, Seymour; DUNCAN, Paul (ed.). Michelangelo Antonioni. Filmografía Completa. Köln: Taschen, 2004. P. 100.
2. Idem, p. 103. A citação interna é de Peter Brunette em The Films of Michelangelo Antonioni: New York, 1998. P. 117.
3. Ibidem, p. 111.
4. Ibidem, p. 112.