“Civilização da imagem? Na verdade uma civilização do clichê”
Gilles Deleuze
A Visão do Olhar: As Imagens de Antonioni
O último filme da Trilogia da Incomunicabilidade desenvolve de uma maneira ainda mais profunda a questão do olhar. Filmes posteriores de Antonioni, como Depois Daquele Beijo (Blow Up, 1966) e Profissão Repórter (Professione: Reporter, 1975), irão um passo além, abordando a natureza e criação da própria representação visual. Na seqüência inicial de O Eclipse (L'eclisse, 1962), Vittoria “enquadra” alguns objetos através de uma moldura vazia, como se Antonioni estivesse sugerindo como deveríamos olhar para o filme que se inicia (imagem acima). Esse gesto de Vittoria guarda dentro de si um significado que extrapola a narrativa, passando pelo significado das imagens nos filmes de Antonioni e chegando à problematização da própria busca de significados em relação ao mundo da imagem.
O apartamento de Riccardo, onde Vittoria enquadra objetos, está cheio de arte abstrata (imagem acima). Da mesma forma que a visita de Cláudia à galeria de arte em A Aventura (L’avventura, 1960) (imagem abaixo, à esquerda), essa decoração nos fornece uma chave interpretativa para o último filme da trilogia (1). Na época em que Antonioni filmou O Eclipse, uma das correntes da arte contemporânea que estava em voga era o Expressionismo Abstrato, formado por um grupo pouco homogêneo de artistas que vai desde as pinturas “pingadas” de Jackson Pollock, e os padrões de cor de Mark Rothko, até à geometrização de Barnett Newman. Nos créditos iniciais do filme, como reparou Peter Brunette, o enquadramento já sugere, com uma linha vertical à esquerda, o trabalho de Newman. Como em suas pinturas “zip”, a linha se abre, voltando a se fechar como um zíper.

adotamos frente a
um filme a mesma postura inquisitiva que adotamos
em relação a uma
obra de arte?
Por que Refletir é Chato?

De qualquer forma, durante a década de 60 não seria difícil encontrar na sociedade européia imagens do medo do holocausto nuclear. Outro exemplo daquilo que Brunette chama de exagero interpretativo estaria na seqüência da bolsa de valores. Aquela pilastra que não somente separa Vittoria e Piero, mas esconde partes deles em relação aos espectadores (imagem acima, à esquerda). Muito rapidamente se transforma essa visão num símbolo de outra coisa, geralmente ruim. “É verdade que o diretor escolheu incluir esse objeto em particular no enquadramento, e, portanto em certo sentido ele é responsável [por tantas interpretações]” (2). Mas afinal, como vamos entender se não podemos interpretar?
Através dos exemplos da caixa d’água e da pilastra, Brunette está chamado atenção para a natureza e expressão do significado visual em geral, particularmente em O Eclipse. O significado verbal (o texto, a narrativa ou aquilo que é dito pelos personagens) sempre recebeu mais atenção do que o significado visual.


“É difícil estabelecer sentidos mais precisos para esses momentos e, quando possível, ou melhor, assim parece, o resultado é quase sempre redutor. Talvez fosse melhor simplesmente ver essas imagens, tanto visuais quanto aurais [sonoras], como criando um campo emocional não específico que acompanha, ou intensifica níveis temáticos mais específicos sugeridos através dos meios convencionais de diálogo, personagem e estória. O cineasta contemporâneo que mais se assemelha a Antonioni nesse particular é o diretor polonês Krzysztof Kieslowski que, como seu par italiano, [é] adorado por alguns por suas nuances emocionais sutis e ridicularizado por outros por ser ‘chato’. Em filme após filme – como A Dupla Vida de Veronique e [os filmes da] Trilogia das Cores, baseada na bandeira francesa – Kieslowski procurou criar uma textura expressiva generalizada que parece transcender (ou vir ‘antes’) do sentido temático específico. De fato, como nos filmes de Antonioni, o tema de seus filmes pode ser precisamente essa própria sensibilidade, articulada simplesmente para seu próprio bem” (3)
O Clichê da Minha Vida

A famosa seqüência final de O Eclipse, sem diálogos e sem o encontro marcado entre Vittoria e Pietro, seria uma boa oportunidade para questionarmos os clichês em torno dos quais vivemos. Por sinal, a seqüência teria sido até mais longa se não tivesse sido cortada pelos produtores do filme sem o conhecimento de Antonioni (imagem acima, um dos poucos habitantes humanos na seqüência final). De qualquer forma, o cineasta sustenta que o espectador não deve se contentar com o final de um filme. O espectador deve levá-lo para fora do cinema, para suas vidas. Um filme, afirma Antonioni, deve ter uma vida mais longa do que simplesmente sua projeção física na sala de cinema. “Então, se o filme se mantiver no interior do espectador, significa que a experiência que ele teve valeu a pena” (4). Neste sentido é que o final sem final de O Eclipse faz sentido.
“Eu sempre imaginei se é correto sempre criar um final para as estórias, sejam literárias, teatrais ou cinematográficas. Uma vez que esteja fortemente canalizada, uma estória está em perigo de morrer no [seu] interior a menos que você permita que seu tempo se prolongue nesse mundo externo onde nós, os protagonistas de todas as estórias, vivemos. Onde nada é conclusivo. ’Me dê novos finais’, uma vez disse Chekhov, ‘e eu reinventarei a literatura’” (5)
Leia também:
Notas:
1. BRUNETTE, Peter. The Films of Antonioni. New York: Cambridge University Press, 1998. P. 75.
2. Idem, p. 77.
3. Ibidem, pp. 79-80.
4. ANTONIONI, Michelangelo. Architecture of Vision. Writings and Interviews on Cinema. USA: University of Chicago Press, 1996. Pp. 218-9.
5. ANTONIONI, Michelangelo. That Bowling Alley on the Tiber. Tales of a Director. New York: Oxford University Press, 1986. P. 188.