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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

31 de out. de 2015

Mastorna: Federico Fellini e o Outro Mundo

“Vou acabar com você se não fizer esse filme”

Ultimato do produtor Dino De Laurentiis para Fellini (1)

Só Mais Um Sonho

Entre Julieta dos Espíritos (Giulietta degli Spiriti, 1965) e Toby Dammit (episódio de Histórias Fantásticas, 1968) ocorreu um intervalo na obra do cineasta italiano Federico Fellini, no qual ele esteve muito doente e delineou o roteiro de um filme que jamais realizaria – existe uma estranha simbiose entre seu problema de saúde e esse roteiro. Toda uma sequência de acontecimentos, que se estendeu por décadas, assombraria todas as tentativas de transformar o roteiro em filme. Sequência de eventos que, por si só, daria outro filme (imagem acima, sonho de Fellini referindo-se à Mastorna, desenhado por ele mesmo, em 9 de setembro de 1978; o texto que o acompanha se encontra na nota 18). De fato, Fellini já havia quase feito isso quando realizou 8 ½ (Otto e Mezzo, 1963), quando contou a história de Guido  e sua crise de inspiração e criatividade - ao mesmo tempo em que era pressionado pelos compromissos assumidos. A importância deste roteiro não filmado é declarada pelo próprio Fellini:

“Estou certo de que, sem esse Mastorna, eu não teria imaginado Satyricon de Fellini [1969] ou, pelo menos, não o teria imaginado tal como realizei. Muito menos o Casanova de Fellini [Il Casanova di Federico Fellini, 1976] ou A Cidade das Mulheres [La Città delle Donne, 1980]. Mesmo Ensaio de Orquestra [Prova d’Orchestra, 1978] e E La Nave Va têm uma pequena dívida com Mastorna“ (2)
A vontade de realizar este filme parece ter renascido, pois já estava em germe desde a década de 40, com o falecimento de Ernest Bernhard (1896-1965) - psicanalista junguiano que, a partir da década de 60 do século passado, ouvia Federico Fellini relatar seus sonhos. Traumatizado com o morto, o cineasta sonhou com ele. O doutor estava em sua casa morto quando Fellini se aproxima para olhar, então o velho levanta o braço, segura os pulsos dele e diz, “não pense que eu estou morto, eu nunca vou morrer”. Quando Bernhard morreu em 1965, Fellini interrompeu as filmagens de Julieta dos Espíritos e foi até a casa do amigo prestar seus respeitos. Lá chegando, a primeira surpresa, o homem que atende a porta era o mesmo que em seu sonho fazia o mesmo gesto. Na opinião de Kezich, em seu leito de morte Bernhard ofereceu uma lição final para Fellini: “Sofra sua morte plenamente consciente”. (imagens abaixo, no lado superior, A Cidade das Mulheres e Satyricon; a seguir, E La Nave Va e Casanova)


No verão daquele ano, o cineasta escreveria um roteiro atormentado em parceria com Dino Buzzati que deveria ser uma espécie de ilustração da última parábola de seu mestre. Assim começou a se materializar Il Viaggio di G. Mastorna (A Viagem de G. Mastorna), embora Kezich tenha sugerido que o fruto mais tangível e imediato dessa relação com Bernhard tenha sido o lendário Livro dos Sonhos de Fellini - compilação de seus sonhos que o cineasta ilustrou através de sua também lendária mestria no desenho de figuras e caricaturas (3).

Fellini já havia se mudado de Rimini para Roma em 1939 quando teve um sonho que o marcou. De acordo com Kezich, o sonho era uma mistura de alívio e cinismo, amor e arrependimento – talvez porque Fellini havia torcido para que a família o deixasse viver uma vida independente em Roma. No sonho, ele voltava para Rimini e entrava no Grande Hotel. Então o porteiro comentou que lá havia um casal com o mesmo sobrenome dele. Fellini os reconheceu mesmo que estivessem de costas no terraço, olhando para o mar, ainda que eles não se parecessem realmente com o futuro cineasta. Fellini sacode os ombros como quem diz, “e daí?”. Ele via o casal apenas como um homem e uma mulher, não como figuras arquetípicas do pai e da mãe. Esta cena seria incluída no roteiro de Mastorna (4). 

Ao explicar que várias situações acabaram sendo excluídas ou ficando de fora da versão final de Roma (1972), Fellini faz um comentário sobre a morte que pode dar a impressão de que talvez já tivesse conseguido compreendê-la como um fenômeno mais natural. Supondo, naturalmente, que a exclusão de uma representação da morte tenha sido puramente casual:

“(...) Também ficou de fora a sequência sobre o cemitério de Verano. Em Roma, a morte sempre tem um aspecto familiar, como se fosse um parente. Alguns romanos dizem ‘vou ver meu pai, vou ver meu tio’, e então se descobre que foram ao campo-santo. Até nisso vemos uma projeção do tipo funcionalismo, burocracia; mesmo com a morte encontramos recomendações, sempre existe um cunhado no paraíso que pode dar uma mão. O que acaba com a angústia, a ansiedade neurótica da morte: basta pensar que os romanos a chamam de ‘comadre seca’ (5). Comadre, ela também é meio parente. E há outras expressões: ‘foi visitar as parreiras’, ‘está preparando a terra para o grão-de-bico’. Nesse grão-de-bico encontramos o habitual tema da comida. Até no campo-santo Roma tem um aspecto de grande apartamento no qual se pode passear de pijamas e arrastando os chinelos. Mas não rodei esta sequência” (6) (imagem abaixo, Amarcord)

A Novela do Filme


  “(...) Ao fazer filmes de minhas memórias, 
 minhas  memórias  são  substituídas  pelas
 memórias  dos  filmes  que  eu  fiz  delas”

Federico Fellini (7)

Kezich conta que a ideia por traz daquilo que se tornaria Il Viaggio di G. Mastorna remonta aos últimos meses antes de Fellini trocar Rimini por Roma. Nessa época ele devorou um pequeno romance do escritor Dino Buzzati intitulado Lo Strano Viaggio di Domenico Molo (A Estranha Jornada de Domenico Molo), publicado em 1938 – O Deserto dos Tártaros (Il Deserto dei Tartari, 1940), outro romance de Buzzati, adaptado pelo cineasta Valerio Zurlini em 1976. É a história de um garoto de 12 anos de idade que morre e vai para um limbo onde julgamentos são realizados e punições aplicadas. A criança embarca numa odisseia no além, e, tendo aprendido o segredo da vida, ao invés de ir para o Céu volta para a Terra (8). 

“Após a conclusão de Julieta dos Espíritos, Fellini pretendia filmar um trabalho provisoriamente intitulado Il Viaggio di G. Mastorna. Escrito originalmente durante o verão de 1965 com Dino Buzzati (1906-72), o enigmático escritor italiano de pequenas histórias misteriosas que muitas vezes foi chamado de o Franz Kafka italiano, o filme foi assolado por numerosos problemas. Os argumentos habituais com produtores relutantes que caracterizou a maioria das criações anteriores de Fellini agora passaram para segundo plano [em função de] sua rara síndrome Sanarelli-Schwartzman. A vida onírica de Fellini também entrou em crise, e muitos sonhos deste período evidenciam um bloqueio de inspiração artística e a impossibilidade de realização de Mastorna. Tem sido sugerido que Fellini sentiu ser impossível realizar Mastorna porque o tema do filme era, em última análise, sobre a natureza da morte, e seu protagonista músico foi estreitamente identificado pelo diretor com ele mesmo” (9)

Fellini procurou Buzzati em 1965 propondo uma parceria, baseados no romance do escritor italiano eles escreveriam juntos o roteiro de Il Viaggio di G. Mastorna – outros roteiristas se sucederiam nessa tarefa. Buzzati aceita, mas uma série de contratempos, apenas os primeiros numa longa série de eventos e sonhos bizarros, impediria a pareceria – que ainda assim chegou a durar por mais de um ano, apesar da crescente percepção de Fellini quando a suas diferenças de estilo em relação ao escritor. Nas palavras de Kezich, Fellini escreveria um longo tratamento para o filme em forma de carta para o produtor italiano Dino De Laurentiis. Após muita especulação, Fellini decidiu que Guiseppe Mastorna seria um violoncelista – um instrumento, como diria Fellini, com cintura feminina.

“A carta passa a descrever o começo do filme: um avião voa para dentro de uma tempestade, o piloto perde o controle e os passageiros entram em pânico. Então, subitamente, tudo fica terrivelmente quieto. Eles pousam silenciosamente na praça de uma cidade desconhecida, à sombra de uma catedral gótica. Os passageiros saltam do avião e caminham no vento e na neve em ruas mal iluminadas até um ônibus. Fellini diz que vai tentar representar ‘uma experiência mística, inefável, [e] transmitir a sensação de totalidade’, mas ele ainda não tem nenhuma ideia sobre o final. Apesar do tema melancólico, o diretor insiste que o filme será cômico – regressando à ilusão que ele manteve em 8 ½” (10)

De Laurentiis, que estava esperando um filme de ficção científica, deveria recusar, mas não o fez. O produtor se ressentia de não ter produzido A Doce Vida (La Dolce Vita, 1960), então não queria cometer o mesmo erro. Durante muitos anos, De Laurentiis iria esperar em vão por Mastorna. Certa vez, alguém mencionou que Gustavo Rol, paranormal e amigo de Fellini (assim como de Buzzati), teria colocado um aviso no bolso do cineasta: “não faça esse filme”. Dino De Laurentiis se manteve calmo, considerava Fellini apenas um “bebê grande que acredita na paranormalidade” (11). (imagens abaixo, Amarcord)


“Por décadas Fellini seria muito reservado ao se referir a Il Viaggio di G. Mastorna, por duas razões um tanto paradoxais. Primeiramente, ele continuou a pensar que poderia realizar o filme algum dia e, portanto, manteve o enredo em segredo. Segundo, uma espécie de medo supersticioso rastejou para dentro do projeto. De vez em quando, num momento de confusão, o diretor listaria os infortúnios em torno de Il Viaggio di G. Mastorna. Incluindo as perdas sofridas ao longo de constantes desvios, e cogitar fantasias surpreendentes sobre o que resultaria disso” (12)
O roteiro revela uma série de elementos de filmes que Fellini viria a realizar posteriormente. Uma vez que falhava cada tentativa de colocar o projeto para frente, o cineasta utilizava partes dele em outros projetos. Por exemplo, o motel em Ginger e Fred (1985) e muitos detalhes de Amarcord (1973) – o cinema Fulgor, a velha escola, o padre que ensina religião, o professor de filosofia De Cercis, a vizinha Margherita (Bianchina), assim como várias falas dos pais de Titta. Bernardino Zapponi indica também uma relação entre os bordéis de Mastorna e os de Roma (13).

De acordo com o roteiro, antes de se dirigir para o aeroporto G. Mastorna está reunido com seu grupo numa grande mesa em U, ele assiste a um filme sobre sua vida desde quando era um feto. O passaporte dele para um mundo melhor só será concedido depois de assistir a si mesmo na tela enquanto mostra a língua para um cachorro através da janela de um carro entalado no tráfego. O grupo em torno da mesa aplaude: esse foi o gesto mais pessoal de G. Mastorna em toda a sua vida. Então segue para o aeroporto num ônibus não muito diferente daquele no qual Ginger e Fred chegam. Durante o transporte, explica Kezich, ele conhece um casal, um homem e uma mulher tão repletos de perdão que qualquer relação entre os três seria possível, mesmo homossexual – ainda que o roteiro não sugira isso. 

Após esse voo final, o avião pousa num vale cercado por grandes montanhas. Dois funcionários da alfândega estão lá (um dos atores desejados por Fellini para esses papéis terminaria fazendo o papel de Teo, o tio maluco, em Amarcord; aquele que sobe numa árvore e fica gritando: “Eu quero uma mulher!”). Uma aeromoça conduz G. Mastorna através da noite fria e brilhante. A jornada termina com uma caminhada em Florença num dia ensolarado, ele está ansioso para chegar a tempo no ensaio da orquestra – com Ensaio de Orquestra, sugere a dificuldade de o italiano assumir os riscos da liberdade, não somente ao nível individual, mas também em relação à “orquestra Itália”.

“Impulsionado neste projeto pela emoção da morte recente do Dr. Bernhard, Il Viaggio di G. Mastorna é o destino de Fellini depois de uma estrada atormentada. É uma metáfora que amplia o significado de 8 ½ e Julieta dos Espíritos num sopro de serenidade cósmica: aceitando-se a si mesmo, faça amizade consigo, ou vida simples obriga aceitar o passado, presente e futuro, assim como dar boas vindas à morte como dá boas vindas à vida. Uma sem a outra não tem sentido” (14) (imagem abaixo, Ensaio de Orquestra)

O Italiano Voador


 “(...) Mastorna marca  o  início  de  uma
 nova  etapa, mais morosa e pessimista”

Àngel Quintana (15)

A ideia de um homem que podia voar acompanharia Fellini desde sua infância – ou como ele mesmo disse, durante toda a sua “vida criativa”. Embora o cineasta tenha dito que detestava viajar de avião, em seus sonhos ele adorava voar, confessou que se sentia livre e que isso lhe dava a mesma sensação eufórica de quando está realizando um filme. Fellini disse que a inspiração original para Mastorna surgiu de sua visita à catedral da cidade alemã de Colônia, onde ouviu a respeito de um monge medieval que podia voar à vontade – mas não sua própria vontade. O monge só voava quando a vontade de um espírito (que não era o seu próprio) desejava. Portanto ele não tinha controle sobre seu dom especial, sendo muitas vezes transportado para situações inapropriadas das quais tinha dificuldade em se desvencilhar. “Assim como eu”, confessou Fellini, “meu personagem [G. Mastorna], tinha o problema de ter medo de voar” – talvez por esse motivo o roteiro começa com um pouso de emergência, que poderíamos considerar um acidente aéreo (16). Apesar de sua capacidade de voar, seu desconforto com aviões parece ter sido outro fator determinante em relação à Mastorna:

“Eu me lembro de me perguntar por que pessoas velhas, quando suas vidas vão perdendo o valor, ficam com mais medo de voar, e agora isso aconteceu comigo. Eu nunca gostei, e uma quase fuga me deixou mais certo que mesmo G. Mastorna não foi feito para voar. Agora, acho que pegar um vôo me preocupa mais do que nunca, porque me preocupo antecipadamente. Na hora que chego ao meu destino, realmente já fiz a viagem várias vezes. Pior ainda, a dor física que sinto agora não me permite uma fuga rápida. Isso me deixa plenamente consciente de cada momento no avião. Eu não posso mais escapar de algumas jornadas, como costumava fazer em minha mente. Parece que não consigo encontrar um lugar para mim” (17) (imagens abaixo, restos dos cenários de Mastorna em Diário de um Cineasta, A Director’s Notebook, 1969)


Noutra oportunidade Fellini contou a Charlotte Chandler que a ideia para Mastorna surgiu em 1964, no momento do pouso de avião em que viajava para Nova York. Era inverno, numa visão repentina Fellini visualizou o avião batendo na neve. Por sorte, confessou o cineasta, era apenas uma visão. Da mesma forma, G. Mastorna estaria num avião que realiza uma aterrissagem de emergência durante uma nevasca. O avião pousa nas proximidades de uma catedral gótica (inspirada pela catedral de Colônia), Mastorna segue de trem pelo que parece uma cidade alemã (novamente inspirada em Colônia) até um motel. Fellini segue sua descrição dizendo que lá havia um cabaré com apresentações estranhas e um festival gótico na rua. G. Mastorna se sentiu perdido na multidão e não conseguia ler as placas porque estavam escritas numa língua estranha. Ao encontrar a estação ferroviária, reparou que alguns trens encolheram enquanto outros cresceram até o tamanho de prédios. Por alguns segundos G. Mastorna fica feliz porque encontrou um amigo, mas logo se lembra de que ele havia morrido há alguns anos. Então começa a imaginar que talvez o avião tivesse se espatifado na neve e ele estivesse morto também. Em 9 de setembro de 1978, Fellini voa em sonho até Mastorna:

“As mesmas velhas vibrações e subida vertical de meu corpo em direção ao céu noturno. Eu voo, e sei que estou uma vez mais vivendo essas misteriosa experiência. Eu me elevei a grandes alturas no céu noturno. Eu peço para ver ‘Mastorna’, ele, seu rosto, o personagem inalcançável com o qual eu fui obcecado por mais de vinte anos, o perseguindo e sendo perseguido por ele. Subitamente, surge uma enorme fotografia, enquadrada por uma borda escura: ela retrata um homem usando chapéu e segurando uma mala numa das mãos. Ele tem um bigode negro e seus olhos são negros, velados. É Mastorna! Parece a mim que a fotografia (de cor sépia) o mostra no meio do saguão de uma grande estação de trem. No mesmo instante que eu, esmagado de emoção, reconheço meu protagonista, a vibração cessa. Eu não estou mais voando e tenho a exata sensação de acordar num quarto enorme, simples e vazio, no qual Giulietta está de pé ao meu lado bloqueando minha visão do pé da cama (onde aparece a fotografia de Mastorna) ao levantar um lençol ou guardanapo na frente de meus olhos. Ela faz isso três ou quatro vezes, e duas garotinhas à minha direita parecem se divertir, rindo inocentemente do que está acontecendo comigo” (18)

Desde a infância Fellini voava durante muitos de seus sonhos. Dos seus sonhos, aparentemente era desses que mais gostava. Algumas vezes, disse ele, tinha asas gigantes, tão grandes que podiam ser vistas por todo mundo e eram até desajeitadas. Outras vezes ele nem precisava de asas, levantava vôo com sua força interior. Às vezes tinha um destino, em outras ocasiões estava somente explorando. Como seus colaboradores e amigos sabiam que Fellini detestava voar de avião, perguntaram a ele porque queria fazer um filme sobre um homem que podia voar. Então o cineasta respondia que era uma metáfora e eles ficavam quietos. E por falar em metáfora, Fellini admitiu que a coisa se complicasse quando em seus próprios sonhos ele não podia mais voar. Fellini concluiu que o motivo devia ser porque estava muito gordo. O próximo problema é que o cineasta nunca teve disciplina para fazer dietas. Então desabafou numa entrevista a Chandler, provavelmente já na década de 90:

“Agora Mastorna nunca irá voar. Eu acredito que poderia ter sido meu melhor filme se pudesse tê-lo realizado. E agora, uma vez que eu sei que não o farei, posso continuar acreditando que teria sido meu melhor filme. Vivo apenas em minha mente, ele nunca me desapontará” (19) (imagem abaixo, Toby Dammit, 1969)

Morrer, Dormir, Talvez Sonhar


 “(...)  Morte  é  alguma  coisa  de  que  todos  nós  falamos
literariamente;    nunca   discutimos   sobre   ela   como   se
fosse  real.   Podemos   inventar   milhares  de  representações. 
 Podemos   ler   todos  os    testemunhos.  Contudo,  no final, 
 é algo que nunca iremos verdadeiramente compreender”

Federico Fellini (20)

Depois que G. Mastorna concluiu que poderia estar morto, ele não luta e aceita seu destino. O pior já passou, não há mais agonia, tensão ou dilemas. Como nas históricas de ficção científica, ele explora universos alternativos, encontrando sua avó, seu avô que nunca conheceu e bisavós que haviam morrido muito antes dele nascer. G. Mastorna gostou muito deles. Invisível, ele também visitou Luisa, sua esposa. Fellini contou que deu a ela o mesmo nome da esposa de Guido em 8 ½ porque era assim que o cineasta a via. G. Mastorna a encontra na cama com seu novo homem, aparentemente ela superou bem a perda. Ele não está chocado com isso, mas sim com não se importar. 

Fellini admite que um importante fator para atrapalhar a realização do filme foi sua doença em 1966. Admitiu também que isso tenha relação com seu medo de realizar essa tarefa. Ele considerou a hipótese de que o próprio filme o estivesse matando, por não desejar ser realizado! Seja lá qual for o motivo, concluiu Fellini, no começo de 1967 ele se convenceu de que estava mortalmente doente. Quando sentiu os primeiros sintomas, estava em casa e tomou precauções para que sua esposa Giulietta Masina não encontrasse seu corpo morto, caso o pior acontecesse. Já no hospital, Fellini sentia muitas dores. Contudo, em sua opinião o pior é que perdeu seus sonhos e fantasias, sendo deixado “com o terror da realidade”:

“Tentei ligar na imaginação para me transportar a outro local mais agradável. Mas a realidade era muito forte e meu próprio medo, do qual eu desejava escapar, me aprisionava com seu controle forte sobre minha mente. Eu sabia que não estava pronto para morrer. Eu tinha tantos filmes por fazer. Irrequieto, tentei fazer um em minha mente. Mesmo nos melhores momentos nunca fui capaz de visualizar um dos meus filmes na totalidade, como seria, eventualmente, antes de começar a filmar. Desta vez, não conseguia criar nem mesmo uma parte de meu filme. Eu não consegui distrai nem a mim mesmo. Portanto, privado de meu refúgio, meu santuário de sonhos acordado, me senti nu, vulnerável, sozinho. Quando comecei a receber cartas sentimentais, até visitas, de pessoas zangadas comigo quando eu tinha boa saúde, tive ainda mais certeza de que o fim havia chegado. Estar num hospital reduz você ao status de ser uma coisa; não para você, é claro, mas para os outros. Falam sobre você na terceira pessoa. Enquanto estão em sua presença se referem a você como ‘ele’. Quando você está doente, não importa quantas pessoas o visitem, não importa quantas pessoas cuidem de você, você está sozinho. É esse tipo de momento quando você é forçado a descobrir se é ou não uma boa companhia” (21) 

Fellini se confessava fascinado pela experiência de quase morte. Segundo ele, nesse momento entre a vida e a morte algumas pessoas seriam capazes de captar os segredos da vida. Mas o preço é a morte. Foi isso que ele imaginou para G. Mastorna. Fellini sabia muito bem que várias pessoas chegadas acreditavam que ele ficou supersticioso em relação ao filme, que se identificou com G. Mastorna e que ele tinha medo de morrer caso completasse Mastorna. Fellini admitiu também que se identificou com G. Mastorna da mesma forma que ocorreu com Guido. Mas o cineasta insistiu em dizer que a verdadeira razão, além de acreditar que caso falasse sobre a história ela poderia perder a mágica, está na canibalização do filme para alimentar outros projetos – a ideia principal se manteve intacta, mas ele teria de reescrever todo o resto: “Quando eu estava dirigindo Mastroianni como Guido [em 8 ½], às vezes senti como se estivesse [dando ordens para mim mesmo]” (22). (imagem abaixo, Ginger e Fred)

“Fellini sempre se sentiu atraído pelo mistério da morte e sua impossível encenação. Para o final de 8 ½, ele teve a ideia de filmar o além como uma viagem de trem, mas acabou substituindo-a por um desfile celebrando a vida. Em Il Viaggio di G. Mastorna, ele tem a intenção de filmar uma aterrissagem nesse nada que é a morte, mas o filme jamais será realizado. E mesmo que em Toby Dammit ele mostre o ritual que supõe morrer, apenas na sequência final de Casanova de Fellini ele filmaria o além de forma visionária” (23)

De acordo com Jean-Max Méjean, numa das raras mortes de personagens nos filmes de Fellini, o louco/acrobata que foi vítima de Zampanò em A Estrada da Vida (La Strada, 1954), não há morbidez nem melodrama – aparentemente, Gelsomina morre de desgosto no final. Na cena final de A Trapaça (Il Bidone, 1955), parece que Augusto morre, mas isso não fica absolutamente claro. Não deve ser por acaso que, juntamente com Noites de Cabíria (Le Notti di Cabiria, 1957) (que começa com a prostituta Cabiria quase morrendo afogada), estes dois filmes compõem o que Peter Bondanella chamou de Trilogia da Graça ou da Salvação, onde Fellini apresenta um “cristianismo existencialista”. Méjean insiste que as poucas mortes nos filmes de Fellini são reservadas a personagens secundários, ainda que importantes dentro da simbologia de cada filme. A morte do outro serve como rito de passagem do protagonista para a idade adulta ou a velhice. Na opinião de Méjean, a morte da mãe de Titta em Amarcord, por exemplo, dá ao filme uma dimensão mais grave (24).

Em Satyricon, Encolpio partirá para o mar logo depois que Ascilto foi assassinado nos pântanos quando buscava sua virilidade logo depois da morte de Eumolpo. Num dia de farra, este último lhe havia revelado certos mistérios de Elêusis. Em Os Boas-Vidas (I Vitelloni, 1953), é a partida de Moraldo daquela cidade do interior (na costa do Mar Adriático) que é vivida como uma morte. Para Méjean, antes de tudo, trata-se da morte da cidade da infância de Moraldo, que abandona o mar e a mãe – Moraldo seria o primeiro alter ego de Fellini, que fez exatamente isso quando trocou Rimini por Roma. Sem falar nos mortos que ressuscitam como num sonho iniciático. Como Guido em 8 ½, que reencontra seus pais e lhes faz perguntas. Além disso, conclui Méjean, pouco se vê a morte. Sabemos da morte de Gelsomina em A Estrada da Vida bem depois, assim como Toby Dammit, só vemos a garotinha brincando com a cabeça dele e a corda manchada de sangue. Ou ainda o pai de Marcello Rubini em A Doce Vida, que teve um problema qualquer, mas acabou nem morrendo.

“O duplo de Fellini não morre: nem Moraldo, nem Marcello, nem Guido. Como se Fellini, supersticioso, tivesse desejado afastar de si as representações de sua própria morte através daquela de seu duplo. Sabemos que ele esteve muito doente durante os anos 60 e que é por esta razão que Il Viaggio di G. Mastorna foi adiado sine die [por tempo indeterminado]. Curiosamente, a introdução [de Mastorna] começa por uma descrição clínica do que poderia ter sido sua morte no hospital quando esteve na sala de radiologia. Presságio do necrotério, num dia quase irreal. Fellini não gosta da morte. Seu cinema é para os vivos. Nós todos estamos numa barca quase virando, mas damos graças à força dos mitos e à esperança violenta. Ironia do destino que desejou que Fellini revivesse uma última vez suas cenas de hospital e que, pelo contrário, resistisse ainda quinze dias antes de morrer. Como se, através de seu coma, ele desejasse esperar o dia do aniversário de seu casamento com Giulietta”  (25) (imagem abaixo, momento do lançamento das cinzas ao mar, E La Nave Va)

Meu Nome é Ninguém


“Para mim  não existe  uma linha divisória  entre realidade
e   imaginação.    É   verdade   que    Mastorna    é  um    filme
sobre vida depois da morte, mas meu herói perdeu alguma coisa
insignificante   para   os   outros,   mas   de    grande    importância
emocional    para    ele.     Ele    conseguiu     entrar   no    labirinto
de sua memória,  contendo  incontáveis saídas,   mas   apenas
 uma   entrada...  Eu   ainda  não   encontrei   a   entrada (...)

Federico Fellini (26)

Fellini encontrou o nome do protagonista no catálogo telefônico. Naquele momento o filme ainda se chamava apenas Il Viaggio e o cineasta ficou se perguntando quem seria este senhor cujo nome figurava na lista telefônica de Milão. Dino Buzzati, que Fellini afirmou ser capaz de encontrar nomes estranhos e ao mesmo tempo verossímeis, chegou a propor uns vinte exemplos. Antes de pronunciar o nome, o escritor soltava uma breve risada, isso divertiu Fellini durante uma meia hora, ao final da qual ele pediu o catálogo telefônico e o abriu ao acaso.

Fellini também revelou outro encontro estranho que o teria “levado à Mastorna”. Certa vez o cineasta estava na sala de espera do aeroporto de Copenhague, na Dinamarca, quando notou uma mala de metal perto dele. Ao lado da alça havia um cartão de visita onde se podia ler “J. Mastorna”. Fellini olhou para todos os lados procurando pelo dono daquela mala, foi quando o alto-falante anunciou a partida de seu vôo. O cineasta já estava no ônibus que o levaria ao avião quando pensou ter visto ao longe alguém se abaixar para pegar a mala, mas a imagem não era clara, poderia ser um negro, uma mulher... (27). Depois tantos adiamentos de Mastorna, Fellini comentou numa entrevista que estava considerando a hipótese de transformar o filme numa história em quadrinhos (28) (imagem abaixo, 8 ½)

Entre Sonhos e Pesadelos


“A recusa da realidade desagradável foi a base [do  gosto célebre
  de   Fellini]     pela     mentira.    Ele     mentia     para     si     mesmo, 
 assim    como    para    os    outros,    por     delicadeza,      por      pudor,  
por   uma    espécie   de   ‘encenação   total’:   criar    em   torno   de   si
 um  mundo   acolhedor   e   doce.  Alguns   não   compreenderam  isso, 
julgaram-no mal,  e  Fellini   tinha  uma  reputação de   duplicidade. 
Mas   mentira   é   uma   coisa,   hipocrisia   é   outra.   A  hipocrisia
pressupõe   uma  vulgaridade  totalmente   estranha   a   Fellini”

Bernardino Zapponi (29)

Mastorna seria filmado em preto e branco (e algum contraste com cores escuras), na primavera de 1966 começa a busca por locações e rostos (atores e atrizes). Certo dia Fellini teve um terrível devaneio, a catedral de Colônia (na Alemanha) estava desabando sobre ele – quando acordo, o cineasta reparou que havia pulado quatro metros de distância de onde estava. Fellini ficou perplexo, assustado, refletindo-se na busca pelo ator principal. Fellini disse que não queria se repetir e evitou chamar Marcello Mastroianni (muitas vezes considerado o alter ego do cineasta). Parece que na época circulou a sugestão de que Mastorna fosse uma contração de Mastroianni ritorna (Mastroianni retorna), uma coisa que Fellini pretendia evitar – de qualquer forma, o ator não estava disponível.

Curiosamente, ressaltou Kezich, Fellini demonstrava abertamente ciúmes pelo fato de Mastroianni estar trabalhando para outra pessoa – o cineasta chegou a tentar convencer alguns amigos a não ir aplaudir Mastroianni! Outros nomes cogitados foram Lawrence Olivier, Steve McQueen e Giorgio Strehler – perto do final de sua vida, na segunda metade da década de 90, este grande ator de teatro chegou a propor que sua estreia na direção de cinema poderia ser realizando Il Viaggio di G. Mastorna. Fellini tem um sonho com Olivier e Ugo Tognazzi em 26 de junho de 1967:

“Eu fui falar com Lawrence Olivier para o papel em Mastorna. Vendo ele em pessoa, falando com ele, estou convencido de que é a pessoa ideal para o papel. Que belo rosto! Que humanidade! Abraçamo-nos chorando como se ambos soubessem que não há maneira de trabalharmos juntos. ‘Talvez’, disse Sir Olivier, seu rosto cheio de lágrimas, ‘se você puder adiar o filme até abril’. Mas então ele balança a cabeça como que dizendo que mesmo que isso aconteça não poderia honrar o compromisso. Que pena! Eu insisto, me arrependendo amargamente de todas as dúvidas e preocupações que tinha tido em relação à escolha de tal ator. Olivier [também está realmente chateado], ele se afasta, logo deverá estar no palco, dá adeus mais uma vez e então desaparece. Em meu sonho, Tognazzi aparece sentado na mesa conosco, seu rosto mais fino, nítido, não parece tão ruim quanto antes” (30)

Depois de pensar em convidar o comediante italiano Totó (31), Fellini acabou optando por Mastroianni mesmo. Ainda assim, o cineasta não parece confortável com a situação:

“Em 14 de setembro, Fellini registra um pesadelo em seu livro. Um trem parte as 8:30 (uma referência à 8 ½ talvez?), e, ainda que Fellini já estivesse na estação, ele o perde – exatamente como Mastorna. O diretor consegue saltar num dos degraus de desembarque e se agarra perigosamente do lado de fora do trem em alta velocidade, mas ele não pode saltar [ou] abrir as portas para entrar. A última palavra é ‘Socorro!’ Teria sido esse sonho o que levou Fellini a enviar uma carta registrada naquele dia mesmo a De Laurentiis, explicando sua perda de entusiasmo pelo filme” (32) (imagem abaixo, bordel barato em Roma)


Kezich conta que De Laurentiis agiu exatamente como o produtor no final de 8 ½, que ameaçou: “Vou acabar com você se não fizer esse filme” (33). O tempo passa e já estamos em 1967 quando Fellini anuncia que estúdios norte-americanos estão interessados em Mastorna e voa para Londres em busca de atores ingleses. Como Mastroianni está ocupado novamente, Fellini escolhe Enrico Maria Salerno para o papel principal. De Laurentiis manda seus advogados para tentar costurar um acordo, cineasta e produtor se encontram e se reconciliam, enquanto seus advogados esperam nos carros – De Laurentiis tem outra versão para o episódio. Novamente, o começo das filmagens é adiado – uma nova equipe teria de ser reunida, já que a original se dispersou em outros trabalhos.

De Laurentiis acha que Salerno simplesmente não é conhecido o suficiente para estrelar Mastorna e continua sonhando com um ator norte-americano. O produtor se irrita com Fellini porque este já começa a anunciar seu próximo projeto, Satyricon de Fellini, com um rival de De Laurentiis, o produtor Franco Cristaldi. Nova discussão entre Fellini e De Laurentiis leva à escolha do ator Ugo Tognazzi para substituir Mastroianni – o cineasta não está feliz com a decisão. Fellini ainda tentou colocar o ator Vittorio Gassman no lugar de Tognazzi. Gassman não disse nem que sim nem que não, mas deixou claro para Fellini que ele não poderia fazer isso com seu grande amigo Tognazzi (34). A data de início das filmagens se aproxima e Fellini fica cada vez mais nervoso e insone. Começa a registrar sonhos loucos em seu livro, repleto de sinais de parada, barreiras, cruzamentos de nível, alfândegas, catástrofes e a palavra auguri (boa sorte) partida ao meio. Fellini chegou a sonhar com o ator duas vezes (em 22 e 28 de maio de 1967):

1) “Dominado pelas mesmas velhas dúvidas dilacerantes sobre Tognazzi, eu pensei que uma maneira de resolver o problema sério de sua cara de macaco poderia ser vê-lo viver como uma das muitas encarnações bestiais de Mastorna que o protagonista encontra durante suas viagens. ‘Mastorna abre uma porta’, eu pensei, ‘e dentro ele vê (a si mesmo) Tognazzi. Em outras palavras, um personagem com essa cara que vive lá, vive lá dentro’ (...)”

2) “Na cozinha, eu sei que Giulietta está dizendo a Tognazzi que eu mudei de ideia a respeito dele e que ele não é bom para o filme. Mais tarde, Tognazzi me chama, como um covarde eu ainda quero dar-lhe alguma esperança porque eu não tenho coragem de dizer a verdade para ele. Mas ele começa a chorar. ‘Por que você está chorando’, lhe perguntei. ‘Porque você não me quer em seu filme!’, responde Tognazzi. Agora eu estou num grande avião, os motores já estão roncando, em poucos segundos a aeronave se moverá. Para onde estou indo? Para Londres? Para Milão? Talvez para Londres. De repente, eu decido não ir, quero saltar, me deixem! A comissária de bordo me dá meu paletó e minha mala, a porta ainda está aberta. As escada ainda está lá fora, mas outros passageiros chegam correndo exatamente quando estou para sair. Sem querer, a comissária bloqueia a saída, a escada está repleta de passageiros atrasados... e o avião começa a se mover nesse exato momento. As escadas se afastam. Eu ainda tenho tempo de pular? Ou eu serei forçado a sair? Cada fração de segundo que passa deixa minha decisão mais impossível. A tomarei a tempo? O sonho termina aqui... Estou dentro do avião em movimento, os motores rugem, a porta está aberta... Eu ainda posso alcançar as escadas se pular” (35)

Quando não faltava mais nada, Fellini fica gravemente doente. De Laurentiis está cético e manda seus próprios médicos para investigar, que o surpreendem ao sugerir que pode ser câncer. Todos os amigos querem visitar Fellini no hospital, até mesmo Papa Paulo VI envia uma mensagem – alguns anos antes, enquanto ele era bispo em Milão, recusou-se a receber Fellini, considerado pecador público por causa de A Doce Vida; o cineasta teve vários problemas com a Igreja ao longo de sua carreira, outro caso famoso aconteceu contra Noites de Cabiria. Muita gente se juntou ao coro que sugeriu se tratar de uma “doença tática” de Fellini, quando veio o diagnóstico de pleurite aguda. No hospital ele sonha de novo, desta vez um homem é engolido pelo tubo de respiração e o cineasta se pergunta: “quando o verei novamente?”. Fellini está bem disposto e até ri quando é informado sobre a internação de De Laurentiis com apendicite. Mas a recuperação do cineasta é lenta, até que seu tratamento será modificado depois que um médico (antigo amigo de escola de Fellini) o diagnostica com a síndrome de Sanarelli-Schwartzman. Agora com o tratamento correto, em pouco tempo Fellini está fora do hospital. (imagem abaixo, bordel caro em Roma)


De volta ao problema do protagonista, o norte-americano Paul Newman é mandado por De Laurentiis ao encontro do cineasta, para discutir sua eventual participação em Mastorna. Enquanto isso, Ugo Tognazzi pretende processar Fellini depois que leu nos jornais que o cineasta está com tognazzite (uma alergia à Tognazzi). Tempos depois, Fellini está tranquilo o suficiente para começar a escrever suas memórias para o livro La Mia Rimini, que servirá de base para base de Amarcord. Em agosto de 1967, Fellini assina um contrato de cinco anos com De Laurentiis que tomará o lugar de Il Viaggio di G. Mastorna – uma cláusula obriga Fellini a devolver o dinheiro investido até agora por De Laurentiis, algumas centenas de milhões de Liras. No mesmo dia o cineasta sonhou que foi decapitado enquanto dirigia ao tentar salvar algumas crianças. De acordo com Kezich, ele salvará seus futuros filmes (suas crianças) ao decapitar o motorista (G. Mastorna), assim como o protagonista de Toby Dammit, adaptação de um conto de Edgar Allan Poe em que um homem aposta sua cabeça com o diabo. 

Agora foi a vez de De Laurentiis ficar com ciúmes, já que o episódio foi produzido por outra pessoa, Alberto Grimaldi, que se mostrou até mesmo disposto a comprar os direitos de Mastorna (pertencentes à De Laurentiis). Kezich conta que, quando De Laurentiis pegou o cheque, se ajoelhou e disse, “São Gennaro existe e está de pé diante de mim, e seu nome é Alberto Grimaldi”. Posteriormente De Laurentiis acrescentaria, “nem mesmo São Gennaro realizaria o milagre real de conseguir que Fellini faça esse filme” (36). Mastroianni está com tempo novamente e não falta mais nada. Quando parece que tudo vai dar certo Fellini, nos termos de Kezich, tira a máscara: ele realmente não quer fazer o filme. Oferece então uma série de alternativas, uma delas é Satyricon, mas o cineasta será salvo pelo gongo, o dinheiro francês lhe convidou para realizar Toby Dammit. Pouco antes de partir para a realização de Satyricon, Fellini faz um epitáfio para Il Viaggio di G. Mastorna através de um documentário chamado Diário de um Cineasta (A Director’s Notebook, 1969).

Escrito por Fellini em parceria com Bernardino Zapponi, o pequeno documentário apresenta o que restou dos cenários de Mastorna, incluindo o avião e a catedral gótica – tudo isso ainda estava na chamada Dinocittà, terreno do estúdio cinematográfico de Dino De Laurentiis. Neste filme, que segundo Zapponi chamou de “merdinha”, o cineasta insere um bando de hippies morando naquele cenário, que vira uma cidade chamada Mastorna. O Diário é inspirado na passagem entre Mastorna e Satyricon, Zapponi contou que Fellini ainda tentou convencer Grimaldi (o produtor que sucedeu De Laurentiis na “saga Mastorna”) a realizar Mastorna ao invés de Satyricon. Grimaldi respondeu que simplesmente não queria ouvir falar desse filme (37).

“Contudo, Diário de um Cineasta não é a solução para o problema de Il Viaggio di G. Mastorna. Não obstante, entre um contrato e outro, Fellini consegue reembolsar Grimaldi e finalmente em 1971 possui integralmente os direitos [do filme]. Em 1976, depois de Casanova de Fellini, ele começa a falar sobre ressuscitar Mastorna com o escritor Tonino Guerra, mas uma ressurreição refinada e atualizada. Todavia, uma vez mais o diretor se depara com obstáculos que toma por avisos em código para não continuar. Certo dia, quando estava debatendo [a respeito da] história com Tonino num escritório na via Sistina, ele recebe uma chamada telefônica transmitindo notícias ruins. Altura em que ele fecha o roteiro, o atira dentro do armário e tranca a porta. Ele não falará novamente sobre o filme que, certa vez, Buzzati queria chamar La Dolce Morte (A Doce Morte). Numa entrevista, Federico concluiria que ‘Mastorna, como a relíquia de um navio submerso no fundo do oceano, alimentaria todos os meus filmes que vieram depois’” (38)



Mastorna: Federico Fellini e o Outro Mundo foi publicado originalmente na revista online dEsEnrEdoS (ISSN 2175 - 3903), ano IV - número 14 - edição julho-agosto-setembro de 2012.

Notas:

1. KEZICH, Tullio. Federico Fellini. His Life and Work. New York/London: I.B. Taurus, 2007. P. 272.
2. GRAZZINI, Giovanni. Fellini par Fellini. Entretiens Avec Giovanni Grazzini. Paris: Flammarion, 1984. P. 136.
3. KEZICH, Tullio. Op. Cit., pp. 24, 224-5.
4. Idem, p. 24.
5. A Comadre Seca, em italiano La Commare Secca, é também o título do primeiro filme realizado pelo cineasta italiano Bernardo Bertolucci, em 1962. Ambientado na periferia de Roma, o roteiro foi escrito pelo poeta e também cineasta Pier Paolo Pasolini. No Brasil, o filme receberia o título A Morte.
6. FELLINI, Federico. Fazer um Filme. Tradução Mônica Braga. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. P. 192.
7. CHANDLER, Charlotte. I, Fellini. New York: Random House, 1995. P. 372.
8. KEZICH, Tullio. Op. Cit., pp. 266-80.
9. BONDANELLA, Peter. The Films of Federico Fellini. New York: Cambridge University Press, 2002. P. 28.
10. KEZICH, Tullio. Op. Cit., p. 268.
11. Idem, p. 272.
12. Ibidem, p. 269.
13. ZAPPONI, Bernardino. Mon Fellini. Paris: Éditions de Fallois, 2003. P. 90.
14. KEZICH, Tullio. Op. Cit., p. 270.
15. QUINTANA, Àngel. Federico Fellini. Paris: Cahiers du Cinéma, 2007. P. 54.
16. CHANDLER, Charlotte. Op. Cit., pp. 70, 165-7, 289-90, 317.
17. Idem, p. 365.
18. BOARINI, Vittorio; KEZICH, Tullio (Eds.). Federico Fellini. The Book of Dreams. New York: Rizzoli, 2008. P. 540.
19. CHANDLER, Charlotte. Op. Cit., p. 291.
20. PETTIGREW, Damian. I’m A Born Liar. A Fellini Lexicon. New York: Harry Abrams Inc., 2003. Pp. 52-3.
21. CHANDLER, Charlotte. Op. Cit., p. 167.
22. Idem, p. 290.
23. QUINTANA, Àngel. Op. Cit., p. 74.
24. BONDANELLA, Peter. Op. Cit., p. 24; MÉJEAN, Jean-Max. Fellini, un Rêve, une Vie. Paris: Éditions du Cerf, 1997. Pp. 63-7.
25. MÉJEAN, Jean-Max. Op. Cit., p. 67.
26. PETTIGREW, Damian. Op. Cit., p. 97.
27. GRAZZINI, Giovanni. Op. Cit., pp. 135-8.
28. PETTIGREW, Damian. Op. Cit., p. 97.
29.  ZAPPONI, Bernardino. Op. Cit., pp. 14-5.
30. BOARINI, Vittorio; KEZICH, Tullio (Eds.). Op. Cit., p. 511.
31. FELLINI, Federico. Op. Cit., p. 171.
32. KEZICH, Tullio. Op. Cit., p. 272.
33. Idem.
34. ZAPPONI, Bernardino. Op. Cit., pp. 89-90.
35. BOARINI, Vittorio; KEZICH, Tullio (Eds.). Op. Cit., pp. 508, 509.
36. KEZICH, Tullio. Op. Cit., p. 278.
37. ZAPPONI, Bernardino. Op. Cit., pp. 28, 30, 31.
38. KEZICH, Tullio. Op. Cit., pp. 279-80.

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