“Eu conheci
a realidade ao
fotografá-la quando
comecei a filmar com
minha câmera, um pouco
como em Blow-Up. Eis
porque penso que seja
meu filme mais
autobiográfico (...)”
Antonioni (1)
Formatação Informe
Michelangelo Antonioni declarou que Blow-Up, Depois Daquele Beijo (Blow-Up, 1966) era um filme diferente dos anteriores, porque agora ele estava examinando o relacionamento entre um indivíduo e a realidade, ao invés de relações interpessoais. Mas Peter Brunette (2) lembra que, em 1964, Antonioni havia dito o mesmo em relação a O Deserto Vermelho (Il Deserto Rosso, 1964) – “Em O Deserto Vermelho, eu quis realçar mais o relacionamento entre os personagens e o mundo a volta deles” (3). De fato, poderíamos dizer que em filmes como A Noite (La Notte, 1961) e O Eclipse (L’eclisse, 1962), existem muitos momentos em que o ambiente está tão em evidencia quanto os relacionamentos interpessoais. Em 1969, um entrevistador perguntou se Blow-Up seria uma espécie de meditação a respeito do valor de uma experiência “artística” naquela época. Uma “reflexão sobre a forma” (que é constante na obra de Antonioni) na maneira como o personagem principal, o fotógrafo Thomas, lida com a realidade. Thomas vê e ao mesmo tempo não vê a realidade, observou Antonioni. Por outro lado, concluiu o cineasta, tudo isso deve se materializar numa forma, numa imagem, essa é a substância do filme.
“A resposta a essa pergunta seria muito longa para uma entrevista. Se você leu o artigo de Susan Sontag ‘Contra a Interpretação’, você deve saber que ela fala sobre forma e análise; sobre a nova maneira de olhar para e avaliar a arte que está sendo proposto para nós, supondo que ‘arte’ ainda significa realmente alguma coisa. Hoje, as velhas ferramentas da ‘estética’ parecem claramente estar obsoletas. Fazer uma distinção entre forma e conteúdo me deixa um pouco confuso, porque eu não sei, em Blow-Up, quanto conteúdo pode ser separado da forma. Uma vez que o filme lida com a maneira pela qual um indivíduo se relaciona com a realidade, é óbvio que essa realidade deve tomar certa forma, ela tem de ser representada de alguma maneira. E assim, inescapavelmente se chega à forma” (4)
Brunette observa oposições estabelecidas por Antonioni, e que poderiam “guiar” o olhar do espectador - no caso de Blow-Up, a distância entre os mendigos e o bando de mímicos brincalhões, assim como uma antecipação do tema na mudança do fotógrafo, que só descobrimos que estava “fantasiado” de pobre depois que volta para casa com seu Rolls-Royce. Do ponto de vista da crítica política, se no começo de O Deserto Vermelho temos uma greve de operários de fábrica, em Blow-Up temos uma manifestação contra a bomba atômica. Além disso, para Lino Miccichè, o filme demonstra a insatisfação (com a incapacidade de saber o que é verdade e o que é mentira?) que levaria às explosões de 1968. Sem falar na responsabilidade política que Antonioni atribui aos cineastas, que deveriam se preocupar com sua responsabilidade em relação aos seus meios de expressão ao invés de simplesmente confiar em modelos formais regressivos (6).
Semear a Dúvida é Semear Lucidez?
“Depois da cena
do parque, o filme toma
uma orientação bastante
distinta daquela do
texto de Cortazar”
Ando Tassone (7)
Na adaptação que fez do conto de Cortazar, Las Babas del Diablo, Antonioni só reteve a situação de partida: um fotógrafo, um casal estranho no parque, a idéia da ampliação das fotografias revelando a realidade escondida por trás de uma fachada. Embora se possa até considerar Blow-Up um filme de mistério policial, Aldo Tassone acredita que se tenha aproveitado do conto também um clima espiritual... Tassone afirmou que o filme, mesmo tendo apresentado uma problemática bem diferente de Cortazar, as questões e aventuras dos personagens nos passam o mesmo sentimento de impotência e a mesma tensão metafísica diante de uma realidade que nos escapa (8). Na opinião de Tassone, a novidade em Blow-Up é a atitude de Thomas em relação à vida e ao casal no parque. O fato de ele ser um fotógrafo vivendo na Londres dos anos 60 é secundário para Tassone. O personagem Roberto-Michel é um moralista, o conto de Cortazar é mais uma descoberta da imanência do mal do que uma reflexão sobre mídias como a fotografia. Se concordarmos com Tassone, então a cena do parque tem menos importância para Antonioni do que as ampliações sucessivas da imagem fotográfica realizadas no estúdio de Thomas – inicialmente ele acredita, assim como o fotógrafo do conto de Cortazar, estar fazendo uma boa ação em relação aos acontecimentos no parque. O que intriga Antonioni, afirma novamente Tassone, não é a relação psicológica e moral entre o fotógrafo e o casal, mas a relação ontológica entre o fotógrafo e a realidade. Ao contrário de Cortazar, Antonioni apresenta um pouco da Londres dos anos 60 e o fotógrafo em seu meio profissional antes de contar a história.
“Blow-Up é um
filme que se presta
a muitas interpretações,
porque o tema por trás é
precisamente a aparência
da realidade. Portanto,
todo mundo pode
pensar o que quiser”
Antonioni, 1979 (9)
Em sua juventude, Antonioni havia sido um jogador de tênis. Nascido em Ferrara, chegou a passar fome quando se mudou para Roma. Uma das saídas que encontrou foi vender ou empenhar todos os seus troféus para poder viver. Talvez possamos admitir que a seqüência da partida de tênis sem bola no epílogo de Blow-Up tenha algo de autobiográfico também. Thomas está no parque enquanto a partida começa, no momento em que a bola inexistente “cai” nas proximidades, ele a lança de volta para a quadra. Com esse gesto, Thomas aceita a ilusão, confirma a ficção e renuncia a fazer uma distinção entre a realidade e a aparência. Então a partida sem bola recomeça e Thomas acompanha o movimento da bola invisível com a cabeça. Na opinião de Tassone, não existe nada de trágico nessa rendição de Thomas à aparência e a ficção. Para Antonioni, “o mundo, a realidade onde vivemos, são invisíveis, e, portanto, devemos nos contentar com quilo que vemos” (10). Contudo Thomas parece confuso com essa constatação e se afasta lentamente. Enquadrado pela câmera de Antonioni que vai se afastando, o fotografo desaparece na “nuvem” verde do gramado do parque. “Thomas desaparece, mas apenas a nossos olhos”, explica Antonioni. No texto de Cortazar, Roberto-Michel abre os olhos e tudo se transformou numa massa confusa, algumas nuvens e um céu limpo, numa imagem pregada na parede de seu quarto.
“(...) A realidade é,
talvez, uma relação”
Antonioni (11)
O caso do jogo de tênis sem bola no final de Blow-Up só instiga o espectador um pouco mais, já que os filmes de Antonioni são caracterizados por finais abertos. Brunette dá um tom antropológico à questão ao sugerir que não se trata de a realidade não ter sentido. É que ela não tem um sentido inerente, imutável. O sentido que existe, é social e historicamente determinado (12). O que Antonioni está dizendo, conclui Brunette, é que a realidade deve ser interpretada, porque nada é óbvio como pode parecer. E o que fazemos ao analisar este filme com nossos DVD players é similar ao que Thomas faz quando amplia as fotografias. Abandonando seu narcisismo (ou seu solipsismo...), Thomas admite implicitamente que a realidade é construída inconscientemente, mas também socialmente. Qualquer coisa pode ser qualquer coisa, mas apenas para um grupo, nunca para um indivíduo (pelo menos não por muito tempo, pois uma vez que Thomas aceita o sentido colocado pelo grupo de mímicos que está “jogando” tênis, ele consegue encontrar a bola no gramado e até começa a ouvi-la quando o jogo recomeça). Por outro lado, William Arrowsmith argumenta que “aceitar a autoridade” do grupo e configurar sua realidade com a dele poderia sugerir que os mímicos representam a capacidade que o grupo social tem de asfixiar o crescimento individual (é preciso admitir que o braço da guitarra, que Thomas agarrou com tanto esforço no show de rock, perdeu todo o sentido quando ele deixou o local onde aquele lixo vale alguma coisa). Brunette acredita que Antonioni adotou a hipótese mais positiva em relação ao final do filme, já que respondeu numa entrevista à Playboy em 1967 que Thomas aprendeu muitas coisas no final de Blow-Up, incluindo como jogar com uma bola imaginária. Antonioni relaciona Blow-Up com seu Neo-Realismo do interior do indivíduo e com Profissão: Repórter (Professione: Reporter, 1975):
“Eu ignoro como é a realidade. Ela nos escapa e muda sem cessar. Quando acreditamos tê-la alcançado, a situação já é diferente. Eu desconfio sempre daquilo que vejo, daquilo que uma imagem me mostra, porque eu ‘imagino’ o que exista do outro lado. Ora, ignoramos o que existe por trás de uma imagem. O fotografo de Blow-Up, que não é um filósofo, desejou ver mais de perto. Entretanto, como ele ampliou demais o objeto, este se decompôs e desapareceu. Portanto, existe um momento em que apreendemos a realidade, mas onde, pouco depois, ela nos escapa. É um pouco a significação de Blow-Up. Isso pode soar estranho, mas Blow-Up é um pouco meu filme neo-realista sobre as relações entre o indivíduo e a realidade, mesmo se aí entra um componente metafísico justamente por causa dessa abstração da aparência. Depois desse filme, eu desejei ir olhar o que havia por trás, qual era minha própria aparência no interior de minha pessoa, um pouco como havia feito em meus primeiros filmes. Foi assim que nasceu Profissão: Repórter, outro passo adiante no estudo do homem atual. Em Blow-Up, as relações entre o indivíduo e a realidade são, talvez, o tema principal, enquanto em Profissão: Repórter eu analiso as relações do indivíduo consigo mesmo” (13)
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Notas Sobre o Cenógrafo Mudo
Notas:
1. TASSONE, Aldo. Antonioni. Paris: Flammarion, 2007. Pp. 281-2.
2. BRUNETTE, Peter. The Films of Antonioni. New York: Cambridge University Press, 1998. Pp. 109-10.
3. ANTONIONI, Michelangelo. Architecture of Vision. Writings and Interviews on Cinema. USA: University of Chicago Press, 2007. P. 286. Entrevista ao Humanité Dimanche, 23 de setembro de 1964.
4. Idem, p. 313. Entrevista a Jeune Cinéma 37, março de 1969.
5. Ibidem, p. 148. Entrevista a Playboy, novembro de 1967.
6. BRUNETTE, P. Op. Cit., p. 110.
7. TASSONE, A., p. 276.
8. Idem, p. 272.
9. ANTONIONI, M. Op. Cit., 209.
10. TASSONE, A. Op. Cit., p. 279.
11. Idem, p. 281.
12. BRUNETTE, P. Op. Cit., pp. 117, 174n18 e 19.
13. TASSONE, A. Op. Cit., pp. 280-1.