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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

31 de mar. de 2018

O Espetáculo Épico do Herói Fascista no Cinema


Muitos filmes de propaganda do Fascismo italiano  misturam
guerra  e  melodrama.  Ironicamente, a única coisa que os torna
 menos questionáveis e fantasiosos é justamente o melodrama

Heroísmo Reconfortante

De certa passividade em relação ao cinema durante os anos 1920 (exceto em relação aos cinejornais), o regime fascista italiano gradativamente aumentaria o controle, embora nunca chegando a criar uma indústria controlada pelo Estado. Nestes termos Olivier Maillart definiu a relação do governo de Mussolini com a sétima arte. Para Jean Gili, o fascismo italiano oscilava entre o desejo de exercer o poder de censurar, ou empregar o cinema para “embalar/ninar” a opinião pública com doses de entretenimento apolítico ao invés da propaganda direta. Contudo, os anos 1930 viram o controle aumentar a ponto de criar-se um Ministério da Cultura Popular. Como sempre com o Fascismo, explica Maillart, o interesse num cinema autenticamente fascista manteve-se em grande parte retórico. Maillart cita três filmes realizados durante esse período de aumento do controle que podem ser considerados dentre os poucos exemplos de filmes de propaganda fascista. Esquadrão Branco (Squadrone Bianco, direção Augusto Genina, 1936) glorifica a aventura colonialista da Itália de Mussolini na Líbia. Luciano Serra, Piloto (Luciano Serra, Pilota, Goffredo Alessandrini, 1938), considerado uma das raras obras de valor da cinematografia fascista de propaganda, também aborda o contexto colonial, remetendo ao imaginário “imperial” da Roma antiga – neste caso, trata-se da aventura colonial italiana na Etiópia, sugerindo os etíopes como os novos cartagineses. Odessa in Fiamme (direção Carmine Gallone, 1942), com uma forte mensagem anticomunista. Depois da conquista da Etiópia em 1936, Mussolini declarou o renascimento do Império Romano, alguns intelectuais sugeriram que o cinema deveria encontrar um jeito “romano” de celebrar, como em artigo publicado naquele ano em Lo Schermo (1): 

“O cinema enquanto arte também pode servir ao Império. Um filme que se inspirou na romanidade, não enquanto algo falso como em muitos filmes históricos, mas na versão resistente, rural e guerreira que conquistou o mundo e levou ao reaparecimento do Império sobre as colinas históricas de Roma; um filme que destacaria os aspectos cesarianos, mas também humanos e socialmente revolucionários, da criação de Mussolini – tal filme indubitavelmente teria uma força maior de sugestão... Ao fazer esta proposta, não queremos proclamar uma arte imperial na aurora do Império; a própria realidade irá inspirar os artistas, e o Império italiano, também, terá seus Kiplings” (2)


Receberam  a  Taça Mussolini,  Esquadrão Branco e Luciano Serra, 
Piloto (que compartilhou com Olímpia, de Leni Riefenstahl), e Odessa 
in Fiamme ganha medalha de ouro no Festival de Veneza, em 1942 (3)

De acordo com Maillart, essa “terceira Roma” de Mussolini, depois da Roma dos Césares e dos Papas, usa e abusa de referências míticas, enquanto as conquistas coloniais na África fornece uma forma de gratificação simbólica nacional – provocando um entusiasmo frenético em torno da romanidade, de uma forma que encoraja a criação e o consenso em relação à guerra. Filmes como Luciano Serra, Piloto ou Esquadrão Branco recorrem a essas ideias e associações, ligando-os a Cipião, o Africano (Scipione l'Africano, direção Carmine Gallone, 1937). Enquanto este glorifica a aventura colonial contemporânea a sua realização, Odessa in Fiamme é um pouco diferente, embora baseado num mecanismo similar: uma romanidade fantasiosa nascida da união entre a Romênia e a Itália, referência a segunda Roma (católica), implícita na ideia de uma “nova cruzada” contra os comunistas ateus. O filme enfatiza o caráter não europeu dos russos e seu ateísmo. Em certa cena, o personagem principal batiza crianças, como o padre em L’Uomo della Croce (1943), de Roberto Rossellini. O inimigo não é o negro cartaginês ou púnico, mas o bolchevique meio asiático, meio mongol. Maillart explica que todos esses filmes são baseados em formulas estereotipadas derivadas do filme colonial, do filme de aventura e do filme de guerra, beneficiando-se de elevados orçamentos e apoio do Estado, incluindo a indústria aeronáutica. Para Aldo Farassino, o filme de guerra italiano é, mesmo do ponto de vista cinematográfico, legitimador do filme colonial, que teve seu momento de glória com Esquadrão Branco e Luciano Serra, Piloto.

“(...) No mesmo período de tempo em que a Itália anuncia um novo império e ocupa a Etiópia, uma variedade de filmes militares de época é lançada. Filmes como Cavalleria (direção Goffredo Alessandrini, 1936), Pietro Micca (Aldo Vergano, 1938), Esquadrão Branco, Cipião, o Africano, Condottieri (Luigi Trenker, 1937), Ettore Fieramosca (Alessandro Blasetti, 1938), Il Cavaliere senza Nome (Feruzzio Cerio, 1941) e O Filho do Corsário Vermelho (Il Figlio del Corsaro Rosso, Marco Elter, 1943), simultaneamente desenham e modificam as três maiores premissas subjacentes às convenções do ciclo [anterior] do homem forte [- cujo ícone foi o ator Bartolomeo Pagano]. Neste contexto, vale a pena salientar que Cabiria (1914) de Pastrone/D’Annunzio, o texto original de todos estes épicos históricos subsequentes, foi relançado numa versão sonorizada em 1931” (4)


Por  volta de 1935, o Fascismo parecia solicitar à indústria do cinema
a  criação de histórias que ajudassem a construir um monumento  ao
presente  na  forma  de  uma  síntese  da  história  italiana milenar (5)

Ainda na opinião de Maillart, o objetivo de todos aqueles cineastas que realizaram filmes de aventura foi competir com aquilo que estava sendo feito por Hollywood – especialmente para Goffredo Alessandrini, que trabalhou em Hollywood como escritor e agente de imprensa para a dublagem dos filmes a MGM na Itália. Luciano Serra, Piloto, o mais bem sucedido filme de propaganda fascista, seria um dos filmes italianos que mais se aproximam do estilo de Hollywood. No filme de aventura fascista, a relativa novidade do espetáculo da guerra está integrado no interior de uma estrutura bastante convencional de melodrama. Ou melhor, o melodrama de família será resolvido através da aventura militar, que restabelecerá a figura paterna. Em Odessa in Fiamme, o personagem do marido se torna simultaneamente fiel à sua esposa e seu país – o filme conta a história de um caso de adultério interrompido pela invasão russa. Em Luciano Serra, Piloto, o protagonista é um herói de guerra que não consegue se readaptar a vida civil – a nova aventura imperial em África o “salvará” restaurando o vínculo com o campo de batalha. Em Esquadrão Branco, Mario descobre na relação entre homem e exército uma ligação mais forte do que entre homem e mulher. Segundo Maillart, na aliança entre melodrama e aventura, a guerra nunca é percebida em contexto. Facilitado pelos cenários exóticos, ela é apresentada como uma bela aventura onde os homens podem testar seu heroísmo. Mesmos glorificando a guerra, os três filmes dissolvem os detalhes históricos ao mesmo tempo em que estabelecem vínculos com o presente – outro filme, 1860 (direção Alessandro Blasetti, 1933) estabelece um vínculo entre os camisas vermelhas de Garibaldi e os camisas negras de Mussolini.

“É claro, a narrativa ‘popular’ ou ‘demagógica’ não é especificamente fascista. Não obstante, analisando os filmes italianos mais comprometidos do regime, a articulação entre estética e ideologia demonstra que é por meio dos mecanismos consoladores desses filmes que sua função de propaganda é realizada; eles alcançam um papel política ao consolarem. Ao apresentarem as aventuras de heróis carismáticos que salvam sua família e seu país do mesmo jeito [ilógico], utilizam mecanismos de estereótipo capazes de tranquilizar e incentivar o apoio. Estamos, é claro, acostumados a essa [ausência de lógica], pois encontramos o mesmo nos romances de Alexandre Dumas e no cinema de Hollywood. Contudo, precisamos reaprender a ler os aspectos potencialmente ideológicos dessa [falta de lógica], recusando a naturalização de conflitos que propõem, e recontextualizando historicamente essas chamadas ‘aventuras’ africanas ou orientais” (6)

O super-homem fascista resolve as contradições
através  de  sonhos
reconfortantes

Olivier Maillart procura explicitar determinados mecanismos. No final de Luciano Serra, Piloto, o ataque ao trem é uma réplica da batalha de Adoua, somando uma dimensão de vingança. Quando o filme foi lançado, a plateia sabia da referência à terrível derrota italiana de 1896, inclusive foi parte da justificativa de Mussolini para a agressão contra a Etiópia. Neste filme, os italianos são dominados pelas grandes hordas africanas (transformadas em agressores, já que nenhuma explicação foi dada para a presença da Itália na África), mas a derrota é apenas um fantasma que logo será repelido. Não apenas não existe derrota, explica Maillart, como a real derrota é magicamente vingada por essa ficção. Pegando carona num sempre vitorioso Império Romano (que já havia justificado a vitória sobre os cartagineses em Cipião, o Africano), a vitória de Luciano Serra necessita se referir à derrota anterior para só então alcançar efeito total. Isso mostra os italianos como povo humilhado (ao estilo da retórica de Mussolini ou D’Annunzio) que encontra seus heróis e super-homens no Fascismo, resolvendo suas contradições e problemas e salvando sua honra. Maillart lembra que foi Gramsci quem primeiro reconheceu isso, explicitado por Umberto Eco em De Superman au Surhomme (1993): “a adoração do fundador super-homem nacionalista e fascista surge principalmente de um complexo de frustração pequeno-burguês” (7). Gramsci insistiu que essa figura não emerge da filosofia nietzschiana do super-homem, mas da literatura popular do século XIX. Necessidade de representações falsas que remete ao mecanismo consolador, operando apenas em termos de ficção e ilusão.

“A grande ficção proposta pelo Fascismo foi a restauração de uma figura paterna imponente. O Fascismo também sonhou com um ‘Super-Homem, transgressor de todas as leis e como um imperador romano’. Contudo, como os heróis em Odessa in Fiamme ou em Luciano Serra, Piloto, alguém, [(para citar Eco novamente)], ‘cuja intervenção coloque de volta os membros quebrados de um sociedade em crise’, ao mesmo tempo salvando a família e a nação, se estabelecendo como a figura restauradora de uma ordem que ele também contribuiu para enfraquecer’. Repetindo, tais filmes contribuíram principalmente para a dimensão tranquilizadora desse projeto: os personagens heroicos realizam-se ao se tornarem pais simbólicos ou verdadeiros (...)” (8)

Aos olhos dos intelectuais fascistas
italianos,   as   aventuras  na  África
e na guerra civil espanhola abriram
novos horizontes, que lhes permitiu
 confirmar  seu  papel de defensores 
dos  empreendimentos  fascistas  (9)

Através de seu Super-Homem heroico, o Fascismo empregou um mecanismo de consolação que resolve as contradições e problemas (aqueles da nação e aqueles do casal ou relacionamentos), restaurando magicamente a honra da nação. É isso que na opinião de Maillart justifica a utilização sistemática de representações enganadoras: romanidade e o imaginário da antiguidade, a ideia da cruzada, grandeza épica conferida pelas aventuras na África, etc. Mecanismo esse que só trabalha como ficção, servindo a um regime que é uma ficção ele mesmo. Assim Maillart define a operação da ficção da ficção (enquanto finge que não é de mentira). Enquanto tal, Maillart insiste, o cinema “fascista” (ou a parte da produção cinematográfica mais obviamente propagandística) corresponde esteticamente ao regime de Mussolini, assim como a arte kitsch foi feita por e para o povo kitsch:

“Como na famosa análise de Hermann Broch: ‘’Ademais, não falo exatamente de arte, mas sobre um estilo de vida em particular. Porque o kitsch não emergiria nem sobreviveria se não existisse nenhum kitschmensch [povo-kitsch] para amá-lo, para produzi-lo e comprá-lo, e que até pagaria um alto preço por ele. Arte, em seu sentido mais geral, é sempre o reflexo do homem numa época específica e quando arte chamativa [arte kitsch] é enganosa – como é muitas vezes, e legitimamente, descrita – a culpa recairá sobre o homem que necessita desse espelho de embelezamento ilusório para se reconhecer e, em certa medida com sincera satisfação, para identificar-se com essas mentiras” (10)

Para Maillart, essa “arte fascista” produz um efeito de espetáculo e fascinação que faz desaparecer a realidade e os conflitos, ainda que superficialmente pareça mostrar mais da história contemporânea do que os filmes “telefone branco”, típicos do Fascismo italiano. Tal cinema, encorajado pelo regime, pretende oferecer um universo heroico que poderia reviver os valores épicos da Roma Imperial, além de expressar o que alguns acreditam ser a agitada e belicosa essência do regime. Como fica claro no artigo escrito por um jornalista fascista, Mino Doletti, publicado em 10 de julho de 1940:

“Entre as novidades da guerra, existe mobilização total – material e espiritual – do cinematógrafo (e uma vez que o cinematógrafo é a arma mais forte – isso também foi dito por Mussolini – não existe outro meio num chamado para a luta, para que todos possam ter o privilégio de agir e dar alguma coisa). ... O cinema italiano deve ilustrar nossa irresistível ascensão, da mesma forma como o cinema francês expõe a decadência catastrófica de seu povo” (11)


A  última  contribuição à propaganda de guerra  fascista
 foram  três  filmes  de  Rossellini,  La Nave Bianca  (1941), 
Un Pilota Ritorna (1942) e L’Uomo della Croce (1943) (12)

No final, Maillart observa que é apenas o melodrama que sobra dessa estética da consolação. Em Odessa in Fiamme, cujo objetivo é glorificar um episódio específico (a reconquista de Odessa pelo exército fascista durante a Segunda Guerra Mundial), propõe uma história que salienta o melodrama (com sua heroína cantora de ópera e trechos de Wagner e Puccini), e tende a desviar a atenção em relação a uma realidade distante e desapontadora (as vitórias na frente oriental durante a Segunda Guerra Mundial foram breves em sua maioria). Como ironizou Alberto Farassino, neste filme novamente o melodrama salvou a Itália, ou pelo menos o que sobrou para salvar. Na mistura entre ficção confortante e realidade, Maillart conclui que a propaganda não esconde mais seus esforços para desviar do real e se comportar como ficção. Em sua opinião, isso consagra o propósito essencialmente tragicômico da aventura fascista, assim como Walter Benjamin a descreveu um ano antes de sua morte, em seu ensaio a respeito da obra de arte na época da reprodução mecânica: “A humanidade, que no tempo de Homero era objeto de contemplação para os deuses do Olimpo, o é agora para si mesma. Sua auto alienação alcançou tal grau que é capaz de experimentar sua própria destruição enquanto um prazer estético de primeira classe” (13). No pós-guerra, o cinema neorrealista até que tentou buscar reconstruir a identidade nacional, mas a cisão com a cultura do consolo não ocorreu, logo voltando a ser instigada por Giulio Andreotti e outros a partir da década de 1950. Filmes oferecendo uma romanidade consolatória, bastante reconfortante, florescem novamente.

“Cultura, cultura reconfortante e, na verdade, parcialmente responsável pela aventura fascista. O período pós-guerra propiciaria a artistas como Visconti ou Pavese, Rossellini ou Vittorini, a ocasião para examinar criticamente o que foi a cultura fascista (incluindo a cultura popular e os filmes de aventura), apoiados na vontade de criar uma nova cultura, e, portanto, acompanhar a possibilidade de renovação política. O modelo épico e heroico empregado para cantar as vitórias sonhadas de um Império ‘Romano’ foi repudiada em favor de um universo anti épico que tornou possível paisagens de destruição e os derrotados – historicamente derrotados como os pescadores em A Terra Treme (La Terra Trema – Episodio del Mare, direção Luchino Visconti, 1948), e os alemães em Alemanha Ano Zero (Germania Anno Zero, direção Roberto Rossellini, 1948), ou socialmente derrotados, como os personagens de De Sica em Ladrões de Bicicleta (Ladri di Biciclette, 1948), e Umberto D (1952). A Roma Imperial ilusória de Gallone, Genina e Alessandrini cedeu lugar à Roma em ruínas de Roberto Rossellini” (14)

Leia também:


Notas:

1. MAILLART, Olivier. Epic Consolation: The Fascist Adventure Film. In: WRIGLEY, Richard (Ed.). Cinematic Rome. Leicester: Troubador Publishing Ltd., 2008. Pp. 1-10, 10n6, 11n12, 11n16, 12n24.
2. Idem, p. 2.
3. Ibidem p. 3.
4. RICCI, Steven. Cinema & Fascism. Italian Film and Society, 1922-1943. Berkeley: University of California Press, 2008. P. 87.
5. BRUNETTA, Gian Piero. The History of Italian Cinema. A Guide to Italian Film from its Origins to the Twenty-First Century. Princeton, EUA: Princeton University Press, 2009.  Pp. 91-2.
6. MAILLART, O. Op. Cit., p. 7.
7. Idem, p. 11n16.
8. Ibidem p. 8.
9. BRUNETTA, G. Op. Cit., p. 92.
10. MAILLART, O. Op. Cit., p. 11n19.
11. Idem, pp. 11-12n20.
12. BRUNETTA, G. Op. Cit., p. 93.
13. MAILLART, O. Op. Cit., p. 9.
14. Ibidem p. 10.

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