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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

11 de out. de 2009

Antonioni na Babilônia (final)


“Existem duas almas
em Zabriskie Point
,
o retrato da América
e a história privada
,
elas não chegam a se fundir num filme
harmoniosamente

Wim Wenders (1)

A Classe Média Em Nós

Alberto Moravia questionou Michelangelo Antonioni em relação ao papel daqueles estudantes em Zabriskie Point (1970). Afinal de contas, até então seus filmes só haviam mostrado os burgueses da classe média lutando contra seus problemas. Aqueles estudantes, Moravia lembra, procuravam colocar a si mesmos fora do sistema. Antonioni disse que se interessou realmente por eles, a ponto de incorporá-los ao filme. Na concepção de Antonioni, eles eram elementos típicos da situação dos Estados Unidos de então (2).


(...)[Em Zabriskie Point],
eu não mudei as cores, tentei explorar as cores que tinha”

Antonioni comentando sobre sua
tendência de mudar as cores das
árvores e das ruas em seus filmes (3)



Antonioni chega a insinuar que esses estudantes são a parte dos Estados Unidos que ele gostou, sendo que a classe média foi justamente de quem não gostou. Em seguida o cineasta faz uma comparação, em sua opinião a classe média norte-americana é louca, alienada e cheia de boas intenções, enquanto a classe média européia é corrupta, embora não seja louca. Aqueles jovens estudantes, Antonioni enfatizou, ao contrário da burguesia, demonstram uma absoluta indiferença em relação ao dinheiro. É o caso de perguntar quantos anos durou essa indiferença!

Sexo Grupal com Areia

A sexualidade foi outro aspecto daquela juventude norte-americana que parece ter tido grande impacto em Antonioni. Na famosa cena da orgia no deserto, Mark e Daria transam na areia. Aos poucos, outros casais surgem, multiplicando aquele sexo num delírio que Aldo Tassone sugere teria sido fruto da imaginação de Daria – que ofereceu maconha para Mark, que recusou. Triunfo hippie do sexo livre e da quebra das convenções. Tudo isso em Zabriskie Point, numa parte isolada do deserto da Califórnia chamado Vale da Morte.

Citando Jean-Luis Bory, Tassone fala do deserto e do sexo: “Esse deserto da morte, onde reinam a esterilidade e a pureza – o grau zero da sociedade de consumo – torna-se um paraíso de poeira luminosa para Adão e Eva 1970 que, reinventando o casal, fazem renascer a vida. A poeira não é mais fim, mas começo” (4). Mas o Éden, como bem lembrou Tassone em seguida, não passa de uma miragem, um delírio onírico. Antonioni gostava dos desertos e disse que “freqüentou” alguns dos encontros de amor (Love-ins) dos hippies. Pensou em inserir um desses encontros no filme, mas desistiu. No Ano Novo de 1968-9 ele antecipou algumas considerações sobre a polêmica em torno do sexo em Zabriskie Point, que ainda não havia sido lançado:

“Foi só uma idéia, mas eu nunca vi essa idéia como algo real. Eu não tinha a imagem, eu não achava a chave para fazer isso. Eu vi muitos encontros de amor [Love-ins] na América – com grupos brincando e gente fumando ou dançando ou não fazendo nada, apenas no chão. Mas eu estava procurando por algo diferente – algo que fosse mais relacionado com o caráter especial de Zabriskie Point [o lugar no deserto], eu não encontrei essa relação. Vou colocar isso no filme de qualquer jeito, mas de uma forma diferente – apenas algumas pessoas e um fundo quase vazio” (5)

Peter Brunette, que não gostou de Zabriskie Point, não conseguiu esconder que considerou muito bem composta a cena da orgia dos hippies no deserto. Depois de elogiar, preferiu denegrir a imagem de Antonioni dizendo que a cena foi uma coisa embaraçosa vinda de um cineasta já com seus 57 anos liberando sua sexualidade. Curiosamente, Brunette não faz o mesmo tipo de comentário em relação às cenas ousadas em Blow Up. Depois Daquele Beijo (Blow Up, 1966), apenas alguns anos antes de Zabriskie Point – não podemos esquecer que Brunette é norte-americano, talvez não queira correr o risco de pensar... diferente... dos seus pares/patrões. A respeito da cena, Antonioni disse em 1969:

“A América me modificou. Agora eu sou uma pessoa muito menos isolada; mais aberto, preparado para dizer mais. Eu até mudei minha visão do amor sexual. Em meus outros filmes, eu olhava par o sexo como uma doença do amor. Eu aprendi aqui [nos Estados Unidos] que o sexo é apenas uma parte do amor; estar aberto e receptivo um ao outro, como os garotos e garotas de hoje estão, é a parte importante” (6)

Eu Quero que (Quase) Tudo se Exploda

(...) Uma das raras
vezes que estive feliz foi
durante a explosão final em
Z
abriskie Point. Estava muito tenso,
mas feliz. A audácia da cena era
tão interessante! Espero que
essa confissão não seja mal
interpretada”


Michelangelo Antonioni (7)

Como bem lembrou Tassone, o começo da seqüência final evoca a seqüência final de O Eclipse (L’eclisse, 1962). Logo depois que Daria deixa a casa e o mundo do patrão, Antonioni mostra partes vazias da mansão. O terraço deserto, uma revista tem suas páginas viradas pelo vento, um cigarro aceso no cinzeiro. Quando já estamos nos acostumando com aquele passeio do olhar, a ponto de esquecermos que momentos antes Daria teve um brevíssimo lampejo da explosão, somos assaltados por uma série de repetições da mesma explosão.

Há quem tenha visto uma provocação na repetição da destruição da mansão do representante da burguesia norte-americana. Antonioni utilizou 17 câmeras e filmou a cena de vários ângulos e distâncias. Dali a pouco, o quadro muda para uma visão alucinatória da explosão. Acompanhamos o vôo em câmera lenta de vários objetos típicos da sociedade de consumo, incluindo frangos crus e livros, passando por geladeiras, televisores e mesas, pacotes de pão e cereal. Quando já estamos nos acostumando com tudo aquilo, de repente voltamos a Daria, com um leve sorriso nos lábios olhando para a mansão intacta.


“Para alguns,
o cineasta só se
apaixonou de verdade
pelas seqüências
do deserto”


Aldo Tassone (8)


Daria entra no carro e vai embora, e o filme acaba num grande sol. Seria o entardecer do estilo de vida norte-americano? Seria o anúncio do crepúsculo da sociedade norte-americana sugerido por Alberto Moravia quando chamou os Estados Unidos de “soberba Babilônia dos tempos modernos”? (9) Bem, seja como for, ninguém pareceu se incomodar em colocar um carro entre os objetos da explosão alucinatória em câmera lenta. Será que o automóvel, um dos símbolos do estilo de vida norte-americano, não entra nessa conta? Seria hippie demais da conta não possuir um carro, mesmo para Moravia ou Antonioni?



Salvos pelo gongo!
A crítica à sociedade
de consumo não inclui
largar o carro!




“Uma conclusão tão abertamente alegórica encorajou interpretações apocalípticas de um filme que se queria sobre tudo uma história de amor. Adaptação moderna do mito de Ícaro, que escapou do labirinto da sociedade de consumo (Jean-Luis Bory), metáfora do amor impossível (Fernaldo Di Giammatteo), Zabriskie Point foi interpretado, sobretudo, como um apelo a revolução. Partir de novo do zero depois de um apocalipse de proporções bíblicas, uma condenação da sociedade de consumo. Moravia viu nesse filme ‘uma profecia do desastre atômico que punirá a sociedade de consumo pó haver permitido que Tanatos triunfasse sobre Eros. Que o fim, a saberá o homem, se torna-se o meio, e o meio, a saber, o lucro, se torna-se o fim’: ‘O filme apresentou a hipótese nova e perturbadora segundo a qual um fogo ‘moralista’ poderia destruir a orgulhosa Babilônia moderna, os Estados Unidos’. Todavia, Antonioni não é um moralista, e seu filme não é um panfleto sobre ou contra a América; mas a tela de fundo da estória – a sociedade Americana – é tão forte e tão determinante que termina por tomar o lugar do herói (...)” (10)

A primeira coisa que salta aos olhos de alguém que conhece os filmes de Antonioni é a presença constante de uma trilha sonora musical. Um excesso absoluto de melodias típicas daquela época e lugar, levando-se em consideração que Antonioni renegava completamente o uso de trilhas sonoras para fazer clima... Talvez isso tenha relação com as mudanças de humor que o cineasta disse que experimentou em sua visita aos Estados Unidos. Pelo menos a parte da trilha sonora fruto do grupo inglês Pink Floyd encaixa bem na alucinação da seqüência da explosão. (a banda comeu e bebeu em Roma as custas de Antonioni e no fim parte do trabalho não era mais que regravação de material já existente)

Ou talvez a música seja invenção dos produtores – que interferiram no projeto de Antonioni (11), o que deveria ser levado em consideração quando se questiona o trabalho do cineasta neste filme. Em toda a literatura crítica que pude consultar, com exceção do comentário de Peter Bondanella, nada se diz a respeito desta interferência ou sobre sua extensão. É de Bondanella também a sugestão de que os objetos que vemos explodindo e flutuando na alucinação final de Daria deveriam ser tomados apenas como objetos estéticos, não deveriam ser interpretados em função de sua ligação com o sistema econômico que ela despreza. Enfim, para acabar com todas as dúvidas, eis que o Antonioni disse a respeito da cena final:


“(...) Agora, vamos tomar como exemplo a cena final, que provocou muitas reações contrastantes. Bem, nesta cena eu visualizei o desejo de uma mulher cujo [namorado] acabou de ser morto de forma anônima, e por nenhuma razão aparente. É sua reação mental que estou mostrando, e penso que é perfeitamente compreensível que ela poderia querer que a casa explodisse, fosse pelos ares” (...) “Talvez os americanos simplesmente não tenham vontade de aceitar uma visão crítica de seu país por alguém que não é americano. Talvez Zabriskie Point tenha tido esse efeito, mesmo se, pessoalmente, eu lamente que o filme tenha sido pelo menos parcialmente mal interpretado. Mesmo assim, quando voltei aos Estados Unidos [em 1986], notei que o filme novamente estava sendo exibido em vários cinemas. Quero dizer, parece um sinal encorajador, talvez o público americano esteja mudando sua opinião em relação ao meu filme (12)

Notas:

1. TASSONE, Aldo. Antonioni. Paris: Flammarion, 2007. P. 291.
2. MORAVIA, Alberto. The American Desert. Entrevista de Antonioni em agosto de 1968 in ANTONIONI, Michelangelo. Architecture of Vision. Writings and Interviews on Cinema. USA: University of Chicago Press, 1996. P. 299.
3. KINDER, Marsha. Zabriskie Point, Sight & Sound, 1968-9 in ANTONIONI, Michelangelo. Op. Cit., p. 308.
4. TASSONE, Aldo. Op. Cit. 2007, p. 287.
5. KINDER, Marsha. Op. Cit., p. 306.
6. BRUNETTE, Peter. The Films of Antonioni. New York: Cambridge University Press, 1998. P. 23.
7. TASSONE, Aldo. The History of Cinema is Made on Film. Entrevista publicada em 1979 in ANTONIONI, Michelangelo. Op. Cit., p.216.
8. TASSONE, Aldo. OP. Cit., 2007, 291.
9. Idem, p. 51.
10. Ibidem, p. 290.
11. BONDANELLA, Peter. Italian Cinema. From Neorealism to the Present. New York/London: Continuum, 3ª ed, 2008 [1983]. P. 228.
12. RUBEO, Ugo. A Constant Renewal. Entrevista de Antonioni em 1987 in ANTONIONI, Michelangelo. Op. Cit., p. 322.


10 de out. de 2009

Antonioni na Babilônia (II)

“Se  tivesse  que
resumir    as    minhas
impressões    sobre    a
América,  listaria essas: 
desperdício, inocência, 
vastidão, pobreza”
 

Michelangelo Antonioni (1)

Evidentemente, a Mediocridade Venceu

“Meu estilo de trabalho é o exato oposto dessa enorme máquina burocrática: Hollywood. É claro, eu não estou falando apenas sobre métodos opostos, mas de uma maneira oposta de lidar com a própria vida, uma recusa em aceitar idéias embalsamadas e clichês, ou afetação e imitação. Além disso, como poderia trabalhar com as mãos atadas por um roteiro rígido quando a América, a locação de meu filme, estava continuamente mudando e se transformando, até mesmo fisicamente, e, portanto, exigindo continua mudança?” (2)

A partir desta declaração, Antonioni deixa claro que está totalmente em casa quando se fala de um método de trabalho que não é avesso à improvisação. Compreende-se, portanto, as dificuldades operacionais que deve ter enfrentado, para além do fato de que a abordagem que seu filme em relação aos Estados Unidos poderia ser tudo, menos banal e coisa de puxa saco. Supondo que fosse possível, um filme que deseja falar sobre o desperdício, a inocência, a vastidão e a pobreza de um país, deveria ser capaz de “preparar” esse público para ouvir/ver tudo que características tão contraditórias possam suscitar.


“Eu estou disposto
 a  morrer  também. 
Mas não de  tédio”

Mark questiona o discurso
supostamente revolucionário
de um grupo de estudantes que
está defendendo um confronto
armado com a polícia


Evidentemente, Antonioni teria que esperar por um milagre para que a população de uma potência mundial, em plena Guerra Fria e cercada de todo um aparato midiático de autopromoção do próprio estilo de vida, esteja disposta a admitir não saber o que está fazendo! Antonioni insistiu em afirmar (talvez em vão) que o público norte-americano não pareceu perceber uma crucial justaposição e interseção entre o real e o imaginário em Zabriskie Point (1970).

Contraditório e Interessante

“Fazer  um filme  na América
traz  consigo  um único risco:
o risco de tornar-se objeto de

uma discussão de alcance tão
grande  que  a  qualidade   do
filme  em  si  é  esquecida  (...)
 

Antonioni (3)

Antonioni queria ver os Estados Unidos não como um viajante, mas como um autor. Ele dizia que aquele país é contraditório e justamente por isso muito interessante. Não se pode dizer, afirmou Antonioni, que Zabriskie Point seja um filme revolucionário. Ou melhor, ao mostrar debates entre os estudantes norte-americanos em 1968, os protestos e confrontos com a polícia, não havia por trás o interesse de desestabilizar o “sistema”. De resto, concluímos que não se pode induzir alguém a fazer algo que essa pessoa já está fazendo! Antonioni esclarece:

“Se eu tivesse desejado fazer um filme sobre discórdia estudantil, teria continuado a direção que tomei na abertura [de Zabriskie Point,] com a seqüência do encontro estudantil. Se chegar o dia quando os jovens radicais norte-americanos concretizarem suas esperanças de mudar as estruturas da sociedade, eles virão desse tipo de pano de fundo e terão rostos como aqueles. Porém eu os deixei lá e segui meu protagonista num itinerário completamente diferente. O itinerário vai por um pedaço da América do Norte, mas quase sem tocá-lo, não apenas porque o jovem voa sobre ele, mas porque, desde o momento que rouba o avião, a América para ele coincide com ‘a terra’, da qual, precisamente, ‘ele precisa sair [do chão]’”(4)

“Por que os
americanos viram Zabriskie Point como
um  filme  contra  seu
país é um mistério
para mim
(...)(5)

Antonioni se ressente de que chegaram a dizer que devolveriam o desprezo que o cineasta demonstrou por eles. Antonioni não vê absolutamente desprezo algum destilado naquele filme. Confessou grande simpatia em relação aos jovens combativos que viu agindo nas ruas do país do Tio Sam. Sentiu uma aliança natural com eles e acreditava que sabiam mais do que os adultos que os estavam espancando. A visão adulta do mundo, Antonioni admitiu, só produziu monstros. Essas experiências, disse ainda, fizeram emergir certos símbolos no filme. Por que depois de cada filme que dirige, Antonioni pergunta, sempre querem saber o que os símbolos significam e não como tomaram forma ou a inspiração que os germinou? (6)


(...) Estou procurando (talvez
em cada filme [meu]) por traços
de    sentimento    no    homem   e,
é    claro,     na    mulher    também.
Em      um    mundo     onde    esses
traços    foram    enterrados    para
dar    lugar    a    sentimentos   de
conveniência e aparência
(...) (7)



Notas:

1. ANTONIONI, Michelangelo. What This Land Says to Me in ANTONIONI, Michelangelo. Architecture of Vision. Writings and Interviews on Cinema. USA: University of Chicago Press, 1996. P. 92.
2. Idem.
3. Ibidem, p. 95.
4. ANTONIONI, Michelangelo. Let’s Talk About Zabriskie Point in ANTONIONI, Michelangelo. Op. Cit., p. 95.
5. Idem, p 96.
6. Ibidem, p. 97.
7. Ibidem, p. 99. 


9 de out. de 2009

Antonioni na Babilônia (I)


“(...) O eixo mais
importante do filme
é sua justaposição
entre realidade e imaginação
(...)”

Michelangelo Antonioni
sobre Zabriskie Point (1)


A Narrativa

Mark acompanha as discussões de uma reunião de universitários revolucionários norte-americanos em 1968. A certa altura, o grupo chega a conclusão que todos devem levar seus atos políticos as últimas conseqüências. Todos então ficam esperando que o outro assuma os riscos. Mark se levanta e acaba indo embora, fazendo comentários desdenhosos sobre gente que fica teorizando. Tempos depois, durante uma manifestação, Mark vê um policial matar um estudante negro e saca seu revolver. No mesmo instante, o policial leva um tiro disparado por outro. Mark foge e é acusado da morte do policial. Ele rouba um avião voa para o deserto. Descendo a estrada está Daria, seguindo para a mansão de seu patrão no deserto. Ele é empreendedor imobiliário e planeja construir um grande balneário. Mark fica sem gasolina e Daria se dispõe a ajudá-lo. Acabam transando no deserto, numa região chamada Zabriskie Point - ponto mais baixo dos Estados Unidos e se localiza no Vale da Morte, num deserto na Califórnia. Ele resolve devolver o avião (imagem acima). Ao chegar, é morto por um policial. Daria escuta a notícia pelo rádio do carro. Ela chega à casa do patrão, mas não consegue ficar, está abalada com a morte de Mark. Na cena final, imagina explodindo. Quando volta do sonho acordada, sorri, entra no carro e vai embora.

Que Lugar é Esse?

Zabriskie Point é um filme sobre a América.
A América é o verdadeiro protagonista do filme.
Os personagens são
apenas um pretexto” (2)

Michelangelo
Antonioni


A história de Zabriskie Point (1970) começa em 1967, quando o famoso produtor Carlo Ponti pergunta a Michelangelo Antonioni por que não vai rodar um filme no Japão, onde ele era então o mais conhecido dos cineastas ocidentais. Na viagem, Antonioni passou pelos Estados Unidos, que lhe casou uma impressão mais profunda do que o país do sol nascente. Viajou por lá e conheceu o país, no que chamou de “experiência muito enriquecedora”. Afirmou inclusive que naquela época era o país mais interessante para se conhecer.

(...) Um lugar onde
se podem isolar em
estado puro algumas
das verdades essenciais
sobre as contradições
de nosso tempo (...) (3)

Antonioni sobre
os Estados Unidos

Antonioni já havia estado lá em 1961, quando foi para a estréia de A Aventura (L’avventura, 1960) naquele país. Disse que gostou do sentimento de liberdade por lá, até mesmo no sentido físico do termo – comentário compreensível para um italiano que passou tempo demais sufocando sob as botas de Mussolini. Ou seja, não houve choque nenhum da parte dele. De sua visita em 1967, Antonioni fez algumas notas que levou quando voltou para os Estados Unidos com a intenção de fazer um filme. Era um roteiro bastante diferente de Zabriskie Point, mas então algo aconteceu.

Antonioni estava em Chicago no verão de 1968 quando presenciou a Guarda Nacional agredindo alguns jovens que estavam se manifestando em frente ao prédio onde se realizava a Convenção do Partido Democrático. Tudo mudou radicalmente na cabeça de Antonioni, que entrou em contato com essa juventude e reescreveu o roteiro até que o resultado final era totalmente diferente da idéia original. Ele admitiu que tivesse reservas em relação a essa mudança, mas não podia deixar de fazer um filme por questões práticas (4).

A estória de Zabriskie Point se cristaliza em função de outro episódio envolvendo a juventude. No deserto do Estado do Arizona um hippie alugou um pequeno avião e pintou com flores e slogans sobre o amor, a morte e a paz e depois desapareceu com ele (5). Antonioni escolhe dois atores não-profissionais para os papéis principais – talvez porque eram genuínos representantes daquele mundo, ou talvez pelas raízes neo-realistas de Antonioni, ou mesmo pelos dois motivos. Perguntado pelos produtores porque o filme estava ficando tão caro, Antonioni devolve a pergunta e faz um comentário sobre o excesso de tudo como um traço da sociedade norte-americana (6).

Zabriskie Point representará
para mim um engajamento moral e
político mais evidente que o de meus filmes anteriores. Quero dizer que não deixarei o público livre para tirar suas conclusões, mas que procurarei comunicar-lhe as minhas. Acredito
que o momento chegou para dizer
abertamente as coisas” (7)

Apesar da simpatia de Antonioni em relação aos jovens radicais californianos, sua recepção foi difícil entre eles. Afinal de contas, Antonioni era contratado da Metro-Goldwyn-Mayer (MGM), então ele representava o as instituições contra as quais eles lutavam. Com esforços e através de muitas reuniões, Antonioni foi aceito pelos Estudantes para uma Sociedade Democrática. As cenas iniciais de Zabriskie Point, filmadas no estilo documentário, procuravam dar conta desse clima de reivindicação entre os estudantes.

Comparando os movimentos de estudantes europeus e norte-americanos, Antonioni diz que os últimos eram diferentes porque são muitos grupos diferentes e eles estavam menos unidos. Eles ainda não conseguiam trabalhar juntos, afirmou o cineasta. Os Estados Unidos é muito grande e muito contraditório para que eles conseguissem se unir, Antonioni insiste. Ele explicou que, quando algo acontecia em Paris, acontecia na França. Assim sucessivamente para Roma em relação a Itália, ou Berlim em relação a Alemanha. Quando algo acontecia em Los Angeles, não importava à Nova York. Isso foi o que os próprios estudantes admitiram para Antonioni (8).

Alberto Moravia perguntou certa vez qual a opinião de Antonioni a respeito da informação de que na América do norte, não existe classes, mas raças. Antonioni disse que lá tudo é dividido enquanto pode ser dividido: existem raças, sub-raças e assim por diante, classes, subclasses e assim por diante. Essa mania de desigualdade (ou diferença...), afirmou o cineasta, persiste numa democracia que deveria funcionar como um equalizador. “Por exemplo, existem essas recepções onde, por falta de outro critério, apenas pessoas como um rendimento maior que cem mil dólares são convidadas” (9).

Antonioni oscila entre
afirmar que o foco de seu
filme é aquele país, ou que
o filme é sobre o sentimento de dois jovens. Então admite que exista um contexto em torno dos personagens (10)

A Crítica

“Eu nunca
penso no
público
.
Eu penso
no filme”


Michelangelo
Antonioni (11)

Peter Brunette engrossa o coro dos que não gostaram do filme. Segundo seu ponto de vista, a coisa toda é “pouco aceitável”. O retrato da juventude é pouco crítico e a suposta inocência daqueles jovens é apresentada de forma ingênua. Sam Rohdie caracteriza a recepção da crítica norte-americana em relação à Zabriskie Point como adjetivos como: cruel, estúpida, incompreensível, insultante, vulgar. Seymor Chatman chegou a dizer que nenhum norte-americano verdadeiro gostaria do filme. O crítico italiano Goffredo Fofi chamou o filme de “megalomania” e disse que Antonioni sempre falha quando tenta uma “grande visão histórica-filosófica-sociológica” (12).

Antonioni não compreendeu porque o público norte-americano interpretou o filme como antiamericano. Ele disse que talvez a tradição de pensamento pragmático naquele país levou as pessoas a não perceber a diferença entre o que é ficcional e o que é verdade no filme. A parte o fato de que exista alguma ambigüidade, que Antonioni admite, entre esses dois pontos extremos, os norte-americanos não estariam tão abertos a perceber o entrelaçamento e interação entre os níveis imaginário e real.

De acordo com Marsha Kinder, Zabriskie Point dá a impressão de sugerir que o mundo da imaginação está em oposição e vence outro mundo, que é chato, trivial, vulgar, e uma realidade violenta. É claro que o público daquele país poderia não estar disposto a receber uma censura moral de um estrangeiro. Antonioni concorda, mas insiste que este é apenas um aspecto do filme. “o eixo mais importante do filme”, repete Antonioni, “é a justaposição da realidade e da imaginação” (13).


De modo geral, os comentários sobre a crítica a respeito de Zabriskie Point enfatizam o lado negativo. Mas Aldo Tassone sugere que não foi bem assim, algumas vozes se levantariam e admitiriam surpresa por um estrangeiro conseguir enxergar tantas contradições na sociedade norte-americana com apenas um golpe de vista (14). Não é difícil entender que os norte-americanos tenham denegrido um filme que os julgava. Seja como for, é muito fácil para qualquer um de nós apontarmos filmes norte-americanos que reproduzem imagens equivocadas e/ou estereotipadas de povos de todas as partes do mundo. É curioso que não haja um mea culpa deles em relação a isso. Na Itália, Alberto Moravia disse que...

“Nem Sem Destino [Easy Rider, direção de Dennis Hopper, 1969], nem nenhum filme europeu sobre os Estados Unidos, nunca tinha proposto a hipótese, nova e incômoda, de que um furação ‘moralista’ poderia um dia destruir essa soberba Babilônia dos tempos modernos que é os Estados Unidos. Zabriskie Point é afinal de contas uma profecia de tipo bíblico em forma de filme” (15)

“Existe uma tendência
ideológica (consciente ou inconsciente) na indústria
de cinema norte-americana?
Quero dizer: existe uma
barreira conformista?
Se existe? E Como!”



Michelangelo Antonioni
responde a pergunta de
Alberto Moravia em 1968 (16)

Notas:

1. RUBEO, Ugo. A Constant Renewal. Entrevista de Antonioni em 1987 in ANTONIONI, Michelangelo. Architecture of Vision. Writings and Interviews on Cinema. USA: University of Chicago Press, 1996. P. 321.
2. MORAVIA, Alberto. The American Desert. Entrevista de Antonioni em agosto de 1968 in ANTONIONI, Michelangelo. Architecture of Vision. Writings and Interviews on Cinema. USA: University of Chicago Press, 1996. P. 298.
3. TASSONE, Aldo. Antonioni. Paris: Flammarion, 2007. P. 49.
4. RUBEO, Ugo. OP. Cit., p. 320-1.
5. TASSONE, Aldo. Op. Cit., p. 50.
6. KINDER, Marsha. Zabriskie Point. Entrevista de Antonioni no verão 1968-9 para Sigh & Sound in Michelangelo. Architecture of Vision. Writings and Interviews on Cinema. USA: University of Chicago Press, 1996. Pp. 309-10.
7. Comentário de Antonioni em 1968 referindo-se a seu próximo filme in TASSONE, Aldo. Op. Cit., p. P. 284.
8. Idem, p. 305.
9. MORAVIA, Alberto. Op. Cit., p. 300.
10. KINDER, Marsha. OP. Cit., p. 305.
11. ANTONIONI, Michelangelo. Let’s Talk About Zabriskie Point. In ANTONIONI, Michelangelo. Architecture of Vision. Writings and Interviews on Cinema. USA: University of Chicago Press, 1996. P. 102.
12. BRUNETTE, Peter. The Films of Antonioni. New York: Cambridge University Press, 1998. Pp. 23 e 158n40.
13. KINDER, Marsha. OP. Cit., pp. 320-1.
14. TASSONE, Aldo. Op. Cit., pp. 50-1.
15. Idem, p. 51.
16. MORAVIA, Alberto. Op. Cit., p. 301.


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