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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

30 de abr. de 2018

Misoginia Fascista e Cinema Italiano

A mulher que trabalha foi pouco
retratada  no  início   do   cinema
 italiano, a não ser nalguns filmes 
de Elvira Notari,  nos  anos  1910

A Vida Continua

Para sobreviver num Estado ditatorial aprendemos que as pessoas devem obedecer sem questionar as declarações do regime totalitário. Para Marga Cottino-Jones, isso também vale para os papéis de gênero que as ditaduras estabelecem como necessários ao bom funcionamento da sociedade. No caso da Itália durante o regime fascista de Benito Mussolini, dos homens era exigido que projetassem uma imagem viril de masculinidade e que respondessem corajosa e espontaneamente ao chamado dos militares, quando estes decidissem que aqueles teriam de ir morrer no campo de batalha das colônias italianas na África. Às mulheres, era pedido que cumprissem seu papel de reprodutoras-mães, para prover o regime com muitos soldados no futuro. De fato, um programa social de crescimento demográfico inclusive premiava financeiramente as famílias com mais filhos. Situação retratada em Um Dia Muito Especial (Una Giornata Particolare, direção Ettore Scola, 1977), onde Antonietta, moradora de conjunto habitacional, leva uma vida que se resume a cuidar dos vários filhos e da casa. Enquanto passa a vida vestida como uma empregada, seu marido fascistóide vai para a rua viver a vida. Prostitutas, este foi o outro papel que o regime fascista reservou às mulheres que não eram apenas empregadas de seus maridos. (imagem acima, capa misógina da revista semanal Gente Nostra, de junho de 1943, portanto durante a guerra, onde se vê soldados italianos feridos desprezando com o olhar à mulher que só se preocupa com sua aparência)

Mussolini se preocupava com a sexualidade da população masculina e financiava bordéis, onde as prostitutas recebiam tratamento médico gratuito. Mãe e prostituta, papéis que o Fascismo de Mussolini reservou às mulheres italianas entre as décadas de 1920 e 1940 – num registro talvez mais próximo da comédia, os bordéis estão em Amor e Anarquia (Film d'Amore e d'Anarchia, Ovvero 'stamattina alle 10 in Via dei Fiori nella Nota Casa di Tolleranza...', direção Lina Wertmüller, 1973) (1). 

“(...) Os filmes norte-americanos eram essenciais para a vitalidade econômica do setor de exibição da indústria [italiana] do cinema até uma fase adiantada do período [fascista]. Os filmes norte-americanos forneceram ao regime um mapa fictício da decadência urbana contida nas fronteiras estadunidenses. [Muito embora,] mais importante, os sistemas de representação do filme clássico de Hollywood não fosse fundamentalmente transgressoras em relação a uma ordem social fascista imaginada. [...] Por outro lado, Hollywood representa uma ameaça em vários outros níveis. O domínio do produto norte-americano, dada a ausência de medidas protecionistas por parte dos italianos, significava que o cinema nacional não tinha oportunidade de se integrar verticalmente. A gama indiscutivelmente mais rica de representações de mulheres por Hollywood, assim como seu retrato mais moderno da sexualidade, eram uma grande preocupação do regime. Caso isso não fosse modificado, as plateias italianas poderiam desejar e abraçar modelos  manifestamente não fascistas. Numa palavra, o regime temia que essa imagens exóticas pudessem se popularizar e satisfizessem mais aos espectadores do que seu próprio cinema nacional. Portanto, no contexto de sua política industrial decididamente confusa, Estado e cinema competiam tanto econômica e intertextualmente com Hollywood enquanto um outro amigável” (2) (imagem abaixo, Gli Uomini, che Mascalzoni..., 1932)


 A gama indiscutivelmente  bem  mais  rica  de  representações  de 
mulheres  por  Hollywood,  assim  como  seu  retrato  mais  moderno
da sexualidade, eram uma grande preocupação do regime fascista

Lá pela década de 1930, quando os fascistas descobriram que o cinema poderia ser uma arma de propaganda bastante eficaz, inicialmente os documentários de curta-metragem foram o tipo de filme mais produzido. Mussolini gostava bastante deste tipo de cinema, quem além de dar publicidade ao Estado demonstrava visualmente os papéis prescritos pelo regime para os cidadãos. Enquanto o documentário Madri d’Italia (Mães da Itália, 1934) delineava o papel exclusivo que os fascistas projetavam para as mulheres, Figli d’Italia: Caduti in Africa (Filhos da Itália: Caídos na África, 19??) fazia o mesmo pelos homens. Partindo dessa representação documental supostamente fiel da realidade, o governo demandou a ficcionalização da história através de longas-metragens que deveriam forjar uma ligação direta entre o passado histórico glorioso da Antiga Roma (ou a renascença italiana) e o presente fascista. Em especial, os cineastas deveriam apresentar heróis nos quais a plateia pudesse reconhecer Mussolini – ele próprio gostava de se deixar fotografar em diferentes poses que pudessem retratá-lo como um herói popular dos tempos modernos, gostava também especialmente de ser comparado a Maciste, herói do ainda mudo Cabiria (direção Giovanni Pastrone, 1914). Cottino-Jones destaca deste período Cipião, o Africano (Scipione l’Africano, direção Carmine Gallone, 1937), para a Roma Antiga, e Ettore Fieramosca (direção Alessandro Blasetti, 1938), para a Renascença. A comédia leve também começa a ser utilizada para entreter (ridicularizando homens e mulheres que não se enquadram no padrão ditado pelo Estado). Ainda distante da commedia alla italiana, o humor coletivo dos anos 1950, também conhecido como “comédia coral” (onde valores burgueses são encarnados pela coletividade), mostra que a mulher ainda terá de lutar muito.

“Juntamente com a predominância do humor coletivo, a apreensão patriarcal convencional em relação à sexualidade das mulheres e sua promoção social esteve evidentemente cada vez mais e mais presente nas comédias italianas. Vence o Amor (Totó, Peppino e la... Malafemmina), de Camillo Mastrocinque; A Sorte de Ser Mulher (La Fortuna di Essere Donna, 1956), de Alessandro Blasetti; Arrivano i Dolari (1957), de Mario Costa; Costa Azul, a Praia dos Amantes (Costa Azzurra, 1959), de Vittorio Sala; Gli Innamorati (1956), de Mario Bolognini; Um Moralista em Apuros (Il Moralista, 1959), de Giorgio Bianchi; O Ouro de Nápoles (L’oro di Napoli, 1954), de Vittorio De Sica e O Solteirão (Lo Scapolo, 1955), de Antonio Pietrangeli, são apenas alguns exemplos da representação da sexualidade feminina ainda em luta para abrir novos caminhos em termos de identidade e representação, ainda distante daquilo que será alcançado menos de uma década depois. Esta característica é ainda mais pertinente uma vez que a masculinidade também foi associada à infância. Como [descreveu Maggie Günsberg]: ‘A associação cômica da masculinidade com a infância em algumas comédias, especialmente sua propensão para brincar ao invés de trabalhar, e no seu divertimento com o consumismo, pode ser tomado como uma indicação de que a Itália não estava preparada para lidar com a rápida disseminação da cultura do consumo’” (3) (imagem abaixo, Sofonisba em Cipião, o Africano, 1937)

Parábola Fascista da Boa Mulher 

Em Cipião, 
o Africano, a 
companheira 
do  herói é um 
ideal de mulher 
fascista:   esposa 
(de  um  homem 
viril) e mãe (dos 
filhos dele)  - e
Sofonisba é
o oposto

Na opinião de Cottino-Jones, embora Cipião, o Africano represente a mesma situação histórica de Cabiria (guerra entre Cartago e Roma pelo domínio das rotas do Mar Mediterrâneo), lida com seus protagonistas de forma bem distinta - para então realçar a ideologia de gênero do regime fascista. Em Cipião, o herói é apresentado com as características positivas que um romano ou líder fascista deveriam possuir (ousadia, popularidade, sentir orgulho nacionalista, compromisso militar e demonstrar muita habilidade estratégica no planejamento de batalha). Além disso, é dotado com o tipo promovido de masculinidade (tópico ignorado em Cabiria), já que deve ter filhos, é uma característica exigida de todos os homens pelo regime fascista. Como o próprio Mussolini dizia: “um homem não é um homem se também não é marido e pai”. Logo, concluiu Cottino-Jones, revela-se a importância que o Fascismo dava à virilidade do homem e a seu papel reprodutivo no interior da família. Cipião aparece no ambiente da família no começo e no final do filme, onde será acolhido pela devotada esposa com um bebe nos braços e um filho pequeno que brinca de soldado com ele. O personagem da esposa/mãe foi introduzido para representar a “boa” mulher, segundo a ideologia fascista. Além de Claretta Petacci, Mussolini tinha várias outras amantes, mas se deixava fotografar com seus filhos e esposa. A esposa de Cipião projeta aquilo que se espera de uma “boa” mulher (fascista) na vida real: esposa de um homem que a protegerá enquanto soldado e que também fará dela uma mãe. De fato, conclui Cottino-Jones, este é o único papel aceitável na vida que uma mulher “boa” poderia aspirar na Itália fascista (4). Para Patrizia Carrano, a coisa até piora nas telas italianas dos anos 1960 e 1970:

“(...) A dialética homem/mulher é resolvida ao som de risadas: nosso cinema relata com solidariedade masculina o direito dos maridos de espancar suas próprias esposas ou companheiras quando estas resiste obstinadamente, estimulando assim o riso gordo e sádico dos espectadores. Monica Vitti foi mandada para o hospital por [Alberto] Sordi em Amor, Ajuda-me (Amore mio Aiutami, direção do próprio Sordi, 1969); Mariangela Melato leva uma surra de Giancarlo Gianini em Por um Destino Insólito (Travolti da un Insolito Destino nell'Azzurro Mare d'Agosto, direção Lina Wertmüller, 1974); sempre Gianini enche Vitti de bofetões (os parceiros se entendem, mas as surras continuam) em À Meia-Noite, a Ronda do Prazer (A Mezzanotte va la Ronda del Piacere, direção Marcello Fondato, 1975); [Sophia] Loren é surrada por [Marcello] Mastroianni como se fosse um saco de pancadas em A Garota do Gangster (Pupa del Gangster, direção Giorgio Capitani, 1975); [Giovanna] Ralli esbofeteada com gosto por [Gigi] Proietti em Languidi Baci... Perfide Carezze (direção Alfredo Angeli, 1976). As surras que os homens aplicam e as mulheres recebem não são consideradas violência, mas direito (...)” (5) (imagem abaixo, Sofonisba em Cabiria, 1914)


Em Cabiria e Cipião, o Africano, Sofonisba é o modelo da mulher
antifascista: aquela que sabe usar sua sedução para conseguir poder. 
  O Fascismo  nunca  realmente  aprovou  a  mulher  independente  

Em Cabiria, as duas mulheres protagonistas são a própria Cabiria (garotinha que precisa da ajuda de um herói ousado, que no final se transforma num belo e virtuoso e jovem noivo) e Sofonisba, retratada como uma mulher sexy e perigosa. Em Cipião, também encontramos Sofonisba, mas Cabiria é substituída por Velia, que tem um papel diferente embora também seja uma escrava cheia de virtude e bondade. Bela e jovem mulher romana em idade de casamento, Velia foi prometida para Urunte, valoroso soldado romano. Contudo, Aníbal invade a aldeia de Velia e escraviza todo mundo. Ele se interessa por ela e a toma para si, mas não deseja criar uma família, apenas transar com ela e a humilhar, já que Velia questiona suas ordens. A função de Velia na narrativa é enfatizar a inadequação de Aníbal enquanto homem (desejo sexual sem paternidade) e enquanto herói (vaidade e exploração de poder). Por outro lado, a virtude e a fidelidade de Velia em relação à Urunte fazem dela outro modelo para as mulheres italianas, sublinhando a importância para uma mulher de ser virtuosa e renunciar à sedução e poder pessoal de maneira a ser fiel a “seu” homem. Tanto em Cabiria quanto em Cipião, Sofonisba desempenha o papel de uma mulher perigosa para os homens, uma vez que sabe utilizar a sedução para aumentar seu poder. Se no primeiro filme, ela é uma personagem complexa que combina elementos heroicos e qualidades perigosas, em Cipião seu papel é reduzido ao de uma mulher “má”. Ela seduz e controla Siface e Massinissa, apenas Cipião, com sua virtude e autoridade, consegue dominá-la. Para Cottino-Jones, Sofonisba reflete a visão negativa do Fascismo em relação à mulher independente e controladora, daí a “necessidade” de que elas devessem necessariamente ser controladas pelos homens. 


Em Ettore Fieramosca, o herói ajuda a defender o castelo de uma
mulher independente e forte contra o inimigo. Como recompensa,
ela  se deixa transformar em esposa dedicada e mãe de seus filhos

Ettore Fieramosca realiza idêntica torção ideológica, só que desta vez durante a Renascença italiana, quando os exércitos da Espanha e da França pretendiam invadir e conquistar a península italiana. Havia uma fortaleza estratégica governada por uma mulher, Giovanna Monreale. Logo de saída, sugere Cottino-Jones, percebe-se que a narrativa é organizada em termos de sexo e poder: conquistar a fortaleza equivale a conquistar a mulher no controle. Giovanna está impressionada com o heroísmo de Ettore Fieramosca na defesa do castelo – ele é apenas um guerreiro local que se ofereceu para protegê-la. Asti, cavaleiro que gostaria de se casar com Giovanna, não hesita em fingir que são seus feitos heroicos na verdade realizados por Fieramosca. Assim que Asti conquista Giovanna com esta enganação, conquista também a fortaleza para os franceses. Até aqui, Giovanna é apresentada como uma mulher virtuosa, sempre vestida de branco e no interior do castelo. Ela descobre o ardil e demonstra admiração por Fieramosca, recompensando sua bravura e o protegendo de inimigos. Giovanna já não é mostrada pela câmera como alguém isolada no poder, agora ela está mais sociável. Para Cottino-Jones, é como se fosse necessário mostrar que um governante deve ser capaz de viver entre seu povo, governar com eles e não acima deles. Ele a ama, e, embora tenha seus objetivos nacionalistas (proteger a fortaleza e Giovanna contra franceses e Espanhóis), pensa em começar uma família (que reinará para sempre em sua terra). Temos então o interesse fascista na difusão da ideia nacionalista, assim como no herói como um homem viril que gostaria de formar uma família. Giovanna, por outro lado, se no início do filme era uma líder autossuficiente, agora assume o papel de esposa do herói e futura mãe de seus filhos. (imagem abaixo, La Segretaria Privata, 1931)

Ridicularizar é Preciso


Os filmes  que ainda durante o Fascismo por acaso  falassem  sobre
a mulher independente, sugeriam que a sociedade deveria rir delas

Desde seus primórdios em 1904, o cinema italiano pouco havia retratado o fenômeno da mulher trabalhadora, a não ser em alguns filmes de Elvira Notari, como Carmela, la Sartina di Montesanto (1916) e Chiarina, la Modista (1919). Durante a década de 1930, enredos em torno de mulheres que trabalham fora se tornam bastante comuns. Seja no espaço do escritório, mais do que no interior da família, como em La Segretaria Privata (direção Goffredo Alessandrini, 1931), ou em hotéis, lojinhas ou grandes lojas de departamentos, como em Gli Uomini, che Mascalzoni... (1932), Os Apuros do Senhor Max (Il Signor Max, 1937) e I Grandi Magazzini (1939) – os três dirigidos por Mario Camerini. Contudo, Cottino-Jones adverte que esta nova imagem da mulher foi veiculada através da comédia, utilizada na literatura e no teatro por séculos para entreter o público com personagens e situações que leitores e espectadores considerariam inferiores a si mesmos e sua condição social, tornando-se objetos fáceis de riso e ridículo. Os filmes cômicos dessa época na Itália, conclui Cottino-Jones, perseguiam o mesmo objetivo. Em La Segretaria Privata, acompanhamos o final feliz da história de Elsa, a garota do interior que vai para Roma atrás de emprego e marido, conquistando a todos com seu otimismo e visão positiva da vida. Cottino-Jones sugere que o fato de Elsa não ser particularmente bela ou sedutora sugere que o filme aponta o potencial da mulher para além da aparência física. Embora Elsa também esteja procurando marido, maternidade e autossacrifício não é seu objetivo principal. Estabilidade econômica e ascensão social é o que ela espera da vida. Para Cottino-Jones, tais interesses representam bem as expectativas da classe média que começa a chegar ao poder na Itália durante nessa época (6).

 Em Gli Uomini, che Mascalzoni...
   Mariuccia   é   mulher  romântica, 
  mas  trabalha fora  e  pretende ser
  respeitada  por  isso. Contudo, ela
  se encaixa  no  grupo de mulheres
  que ainda  acha necessário contar
 com  a  proteção  de  um  homem

Os filmes de Camerini caminham na mesma direção, apesar do sentimentalismo que substitui os relacionamentos mais sérios encarados pela nova mulher trabalhadora. Mariuccia é vendedora numa perfumaria de Milão em Gli Uomini, che Mascalzoni..., seu dia-a-dia é corrido, bem no estilo da representação desse novo tipo de mulher – seu personagem combina traços tradicionais e modernos. Aldo surge interessado nela, a ponto de seguir com uma bicicleta o bonde onde ela está. Mariuccia reage de maneira contraditória, parece gostar do assédio desse fã, mas também demonstra certo receio da ousadia dele. Quando uma amiga a convida para trabalhar numa grande feira comercial, ela inicialmente aceita, mas então recusa ao perceber as intenções sexuais do amigo do patrão, dando preferência à ajuda de Aldo. Neste sentido, explica Cottino-Jones, Mariuccia reconhece seu direito de ser respeitada enquanto trabalhadora e recusa a vitimização, ao mesmo tempo em que reconhece os perigos a que uma mulher está exposta no mundo dos homens, não hesitando em pedir a proteção daquele em quem confia. Esse pedido de proteção satisfaz os interesses da ideologia fascista, sem esquecer que Mariuccia aparece como uma mulher romântica, que prefere se relacionar com um homem por amor, ao invés de por oportunismo financeiro. A mesma tendência transparece em Os Apuros do Senhor Max, onde tanto o homem quanto a mulher optam por uma vida modesta de amor e respeito, ao invés de aventuras no planeta da alta sociedade.

Em Os  Apuros  do  Senhor  Max, 
é  Lauretta  que toma a iniciativa
de  demonstrar seus sentimentos
 por   Gianni.  De  classe   inferior, 
frequentavam  a  alta  para tentar
subir   na   vida,  mas   concluirão
 que  o  melhor  é  ficar onde  está 

O jornaleiro pobre Gianni é convidado por seu amigo rico Max para tomar seu lugar num cruzeiro marítimo caro – os dois são muito parecidos. Paola, uma viúva rica, se interessa por ele. Lauretta, funcionária da viúva, é a única trabalhadora naquele grupo de ricaços. Gianni se envolve com ela, que o reconhece como uma alma gêmea e comenta com ele os problemas que está enfrentando em seu novo emprego como babá – ela cuida da irmãzinha de Paola. Lauretta percebeu que fez um péssimo negócio ao trocar seu emprego modesto de secretária por essa oportunidade de viajar junto com a alta sociedade. Seu excelente salário não compensa os constantes insultos da menina de doze anos de idade, protegida pela irmã mais velha, que não demonstra nenhuma paciência com Lauretta. Ela percebe que somente será feliz vivendo o tipo de vida onde é respeitada e consegue se respeitar. Influenciado pela família, que também gosta de Lauretta, Gianni se apaixona por ela, que acaba alegremente aceitando o papel constantemente aspirado pelas mulheres: o casamento. 

“(...) A contrário das relações tradicionais de gênero, seu caso de amor com Gianni foi iniciado por ela. Apesar de mostrar abertamente seu interesse sexual por Gianni, Lauretta também é a dona do ponto de vista, uma vez que é ela quem constantemente procura por ele e o segue com seu olhar, e não o contrário, como fomos acostumados a esperar nos relacionamentos tradicionais homem-mulher. Mesmo que o clima do filme seja cômico, a independente e ativa mulher dos tempos modernos parece ter nascido aqui, com a Lauretta de Camerini. Obviamente, de maneira a ser capaz de veicular um ponto de vista não tradicional assim naquele tempo fascista, todos esses filmes devem propor isso em termos cômicos – ou seja, risíveis, projeções ridículas, para não serem, levados a sério. Vai demorar muito tempo antes que sejamos capazes de ver os gostos de Lauretta levados a sério no cinema italiano” (7)

Apesar da recorrência do emprego
da  comédia  ao  mostrar  mulheres
ativas  e  independentes,  o  cinema
fascista   deixava   passar   algumas
coisas. O problema era o  contraste
 mulheres  fortes  /  homens  fracos, 
como    em   I   Grandi   Magazzini

Em I Grandi Magazzini, Bruno e Lauretta trabalham na mesma loja de departamentos. Eles estão juntos, mas Bruno não hesita em procurar a companhia de outras mulheres. Comportamento que em parte será responsável pelo fato de Lauretta se considerada uma ladra por seu chefe inescrupuloso. Sempre numa veia cômica, ainda que o filme apresente Lauretta como uma mulher forte, inteligente e autoconfiante, no final a ênfase recairá no interessa dela em conseguir a proteção masculina através do casamento - apresentado como um final feliz. Diferentemente de Os Apuros do Senhor Max, aqui não há conflito de classe, pois todos pertencem à classe média baixa. De fato, dentre todos os filmes de Camerini, neste tudo gira em torno de explicitar a diferença no tratamento de homens e mulheres no ambiente de trabalho – elas são muitas vezes vítimas de patrões patologicamente instáveis. Ao contrário dos outros dois filmes, onde a mulher pode confiar e contar com a assistência dos homens que as amam, Lauretta não conta com esta possibilidade, já que não pode esperar de Bruno nenhum comprometimento. Logo, ela tem de se virar como uma mulher forte faria. Contudo, lembra Cottino-Jones, como que para testar a capacidade dela, essa fortaleza é apresentada num clima de comédia. Cottino-Jones conclui que nestes filmes da década de 1930, as mulheres tem de pagar caro por suas primeiras tentativas de emancipação. Apesar da questão da comédia, Cottino-Jones acredita que aqui elas conseguem provar seu valor, além de relegar os homens a uma posição de passividade e submissão nada aceitável no cinema italiano tradicional. Não é difícil entender porque, mesmo ridicularizando a mulher, a ideologia fascista não aceitava a representação de machos fracos e mulheres fortes.

“Todos esses filmes se encaixam no gênero cômico, e isto pode explicar a passagem dos heróis masculinos para fracos e desprovidos de poder. Tal mudança promove o clima cômico, normalmente desencadeado pelo inesperado e pelo processo de desmistificação típico do carnavalesco. Neste processo, como observado por Bakthin, os personagens normalmente tidos como heróis e superiores ao público são desmistificados e reduzidos a um nível inferior ao que é esperado. Então, os heróis masculinos, que são apresentados como fracos e incapazes de enfrentar uma protagonista mulher, criam uma situação inesperada e consequentemente tornam-se objeto de ridículo e motivo de riso. Neste sentido, é útil mencionar uma citação de Ruby Rich a respeito do poder da comédia, que ‘possui um potencial revolucionário com limitador da ordem patriarcal e extraordinário nivelador e reinventor da estrutura dramática’. Iremos encontrar situação similar posteriormente em filmes pertencentes ao gênero comédia- estilo-italiano dos anos 1960 e 1970, que propõem combinação similar de personagens masculinos inesperadamente fracos e protagonistas femininas fortes” (8)

Independência ou Morte

“O dilema moral que uma  mulher
deve   encarar  em  uma  sociedade
injusta  retornará em vários filmes
de  Rossellini e de outros diretores
neorrealistas  do  período com seus
resultados  distintos, em função do
tipo  de  indivíduos   retratados” (9)

Com o Neorrealismo no pós-guerra, filmes que representam a mulher de maneira mais positiva começam a surgir nas telas. Contudo, Cottino-Jones lembra que mesmo durante o regime fascista alguns filmes já tentavam escapar da representação tradicional, como é o caso de A Culpa dos Pais (I Bambini ci Guardano, direção Vittorio De Sica, 1944) e Obsessão (Obsessione, direção Luchino Visconti, 1943). De Sica, que posteriormente irá se tornar um dos expoentes do Neorrealismo no cinema italiano, se junta a Cesare Zavattini (um dos teóricos do movimento) para realizar A Culpa dos Pais, que aborda a obsessão fascista com a maternidade e o patriarcalismo reinante. Nina é uma mãe italiana que abandona o marido e o filho pequeno para viver com o amante. Com pouca consideração em relação aos motivos dela, o filme foca em suas ações e nos efeitos em sua família. Sabemos que se um homem agisse desta forma a sociedade não diria nada, mas a opção de Nina é desaprovada seja por seus parentes, seus conhecidos e até por estranhos. A mensagem do filme e da sociedade italiana é que a mulher deve abraçar aqueles papeis exclusivamente reservados para ela: negar sua sexualidade e incorporar as personas de esposa fiel e mãe abnegada. De fato, ela nunca disse o motivo que a levou a fazer essa opção, ao mesmo tempo em que fica repetindo para o filho que ela o ama e que gostaria de ficar com a família. Logo, seu comportamento é contraditório. Na opinião de Cottino-Jones, ao não dar voz a Nina para que explique seus sentimentos e motivações, o filme apresenta a situação dela em termos puramente econômicos, através dos olhos dos outros personagens, que a veem como uma mulher que joga pela janela a sorte que teve na vida (arrumar um marido rico da alta classe) (10).

A Culpa dos Pais se desvia
claramente   do   código   de
 gênero    estabelecido    pelo
 regime  fascista  durante  os
 anos    1930   e   1940    para
 regular os  relacionamentos
 entre   homem   e   mulher”

Não é difícil de concluir, continua Cottino-Jones, porque os espectadores também não desenvolveram nenhuma simpatia por Nina, reproduzindo o antagonismo em relação à “mulher rebelde”, disseminado na sociedade italiana. Por outro lado, em A Culpa dos Pais o personagem do marido desvia radicalmente da representação ditada pela ideologia patriarcal fascista. Se por um lado ele demonstra uma necessidade patriarcal de exercer o controle sobre a esposa e disciplinar a ela e ao filho, por outro lado muitas vezes também deixa transparecer um lado mais suave e fraco que contradiz o modelo fascista. Esse marido parece incapaz de tomar decisões em relação à mulher e ao filho, demonstrando, especialmente no final do filme, a mesma incapacidade de lidar com as demandas da família patriarcal. Ao ser abandonado por Nina, as únicas atitudes que consegue tomar são deixar seu filho numa instituição educacional militar e se suicidar. Para Cottino-Jones, esta dificilmente seria a decisão esperada de um pai responsável num sistema patriarcal. Enquanto em A Culpa dos Pais o marido se mata ao ser abandonado pela mulher, em Obsessão a esposa pede ajudar do amante para matar o marido de uma maneira que não perca o acesso à segurança econômica que o detestado cônjuge possibilitava a ela – Giovanna só se casou com esse homem que detestava para escapar da pobreza extrema em que vivia. O remorso de Gino, o amante, cria problemas para Giovanna, que o acalma ao dizer que está grávida dele. Contudo, a seguir ela e o bebê morrem num acidente de carro, e Gino será acusado de um crime que não cometeu.


Obsessão foi recebido como provocação por censores e figuras
do governo. Mussolini o examinou e saiu da projeção chocado sem
nada  dizer,  isso  permitiu  que  fosse  liberado, já que il Duce nada falou. Mas Vittorio, seu filho, exclamou: “Isso não é a Itália!” (11)

Para muitos espectadores, e para os fascistas italianos da época em particular, Giovanna não passa de uma assassina, que só poderia terminar assim em função de haver renegado todas as diretivas fascistas daquilo que seria uma “boa” mulher. Entretanto, para outros, Giovanna está mais para uma sobrevivente. De acordo com o ponto de vista feminista de Cottino-Jones, a vida de privações de Giovanna (antes do casamento) permitiu a ela desenvolver a capacidade de discernir os direitos da mulher à satisfação sexual e estabilidade econômica, além de uma capacidade racional de compreender e controlar situações e pessoas. De qualquer forma, a biografia desta personagem é de uma complexidade raramente alcançada nos filmes fascistas. A morte de Giovanna e seu bebê no final, juntamente com o desespero de Gino, produzem um desfecho melodramático típico da tradição dos primórdios do cinema italiano, ao passo que o restante de Obsessão aponta para o ponto de vista neorrealista que emergirá em pouco tempo. Para Cottino-Jones, futuros filmes de Roberto Rossellini como Nono Mandamento (Desiderio, Roberto Rossellini, 1946), A Voz Humana e O Milagre (na coletânea O Amor, l’Amore, 1948) evidenciam esta mistura entre certo melodrama e certo realismo. 

Leia Também:


Notas:

1. COTTINO-JONES, Marga. Women, Desire, and Power in Italian Cinema. New York: Palgrave MacMillan, 2010. Pp. 37-8, 232n5.
2. RICCI, Steven. Cinema & Fascism. Italian Film and Society, 1922-1943. Berkeley: University of California Press, 2008. Pp. 158-9.
3. LANZONI, Rémi Fournier. Comedy Italian Style. The Golden Age of Italian Film Comedies. New York/London: Continuum, 2008. P. 24.
4. COTTINO-JONES, M. Op. Cit., pp. 39-42.
5. CARRANO, Patrizia. Malafemmina. La Donna nel Cinema Italiano. Firenze: Guaraldi Editore S.p.A., 1977. P. 76.
6. I COTTINO-JONES, M. Op. Cit., pp. 42-7.
7. Idem, p. 45.
8. Ibidem, pp. 46-7.
9. Ibidem, p. 51.
10. Ibidem, pp. 47-51.
11. RICCI, S. Op. Cit., pp. 131.

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