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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

25 de out. de 2008

Fellini e a Psicanálise II (final)





"O dinheiro está em
todo  lugar
,  mas  a
 poesia  também 
(...)"

Federico Fellini (1)





Meus Labirintos, Minha Vida

Muitas seriam as vielas e esquinas do labirinto felliniano. Modestamente, seguiremos aqui alguns poucos corredores só para aguçar nossa atenção antes de saber por que Fellini enveredou pela psicanálise. Jean-Max Méjean nos faz notar uma ligação curiosa entre as cenas iniciais de A Doce Vida (La Doce Vita, 1959) e Fellini 8 ½ (Otto e Mezzo, 1963). No primeiro caso temos uma estátua de Cristo pendurada em um helicóptero. No segundo caso, temos Guido flutuando no ar como uma pipa ou um balão, amarrando pela perna a uma corda que desce até o chão (2). O sagrado e o profano, a estátua de Cristo sobrevoa Roma e seus pobres e mortais habitantes.


O balão-Guido, como o balão-mulher dos sonhos de Snàporaz em Cidade das Mulheres (La Città Delle Donne, 1980) não aponta para um ser salvador. Guido está em plena crise, talvez flutuar seja a única forma de fugir das dúvidas que o sufocam. Mas não adianta, pois algo ainda lhe puxa para baixo. O balão-mulher também não é um porto seguro. Lá dentro está Snàporaz, flutuando no colo de sua mulher ideal gigante. Mas no mesmo instante, lá do chão, a mesma mulher que dá um rosto ao balão derruba-o com rajadas de metralhadora. (com excessão da ilustração ao final, todas as imagens deste artigo mostram Fellini durante seu trabalho de cineasta)


Homens que tentam voar para longe de seus problemas, homens meio aéreos... Mas também temos em Fellini muitos filmes onde aparece o cinema, o teatro, entrevistas e até um filme que se tenta realizar (3). A sala de cinema é o espaço de um claro-escuro, lugar de romance, mais também de silêncio. Em filmes como Os Palhaços (I Clows, 1970) temos uma espécie de enquete sobre a morte do circo e seus palhaços. Em Entrevista (Intervista, 1987), acompanhamos Fellini e Mastroianni em uma visita a Anita Ekberg, estrela de A Doce Vida. Ela agora está mais velha, seu corpo não é mais aquele, mas ela ainda está lá, lá dentro dele. O cineasta e seu ator-alter ego também estão envelhecidos, mas ainda estão lá. É como se Fellini estivesse tentando negar a morte.


Em Fellini 8 ½ assistimos à estória, supostamente baseada em uma história, sobre um diretor de cinema que não sabe mais sobre o que era seu filme, e que consequentemente não consegue realizá-lo. Fellini, que já se auto-intitulou um grande mentiroso, afirmou certa vez que a dúvida aconteceu com ele mesmo. Até que certo dia teve a idéia que resolveria seus problemas, faria um filme a respeito de um diretor que não sabe mais que tipo de filme quer fazer (4). Foi somente depois disso que Fellini inseriu os elementos provenientes de suas leituras psicanalíticas.

Mas as semelhanças com vida de Fellini param por aí - é no que acreditamos. Pelo menos no que diz respeito às mulheres do filme. Guido tem uma esposa e uma amante. Durante o filme ele delira sobre um harém que reuniria todas as mulheres de sua vida. Lá, o papel de faxineira e cozinheira servil e agradecida é de sua esposa. Antes disso, Guido delira sobre a hipótese de um encontro entre sua esposa e sua amante onde elas se tornariam imediatamente grandes amigas. É Méjean que nos lembra que elas sabem que irão perder esse homem, uma porque é sua esposa, a outra porque gostaria de ser (5). Mas Fellini, na vida real, jurava amor incondicional a sua esposa, Giulietta Masina. Consta que, quando ele morreu, em 1993, ela faleceu poucos meses mais tarde de solidão.

Nas palavras do próprio Fellini...

“Está claro que um artista tira sua inspiração diretamente de seus próprios traumas, das feridas e cicatrizes de sua experiência psíquica. Várias formas de neurose têm uma função providencial para o indivíduo criativo... Eu poderia dizer que a neurose possui uma natureza providencial porque ela constitui um depósito, um armazém, ou uma antecâmara de tesouros de onde um artista pode extrair algo a partir de todas as estórias já imaginadas. Como naqueles contos de fadas que descrevem um fabuloso tesouro enterrado no fundo do mar ou escondido em uma caverna guardada por monstros, por dragões, que o herói antes terá que derrotar se merece a riqueza que está lá dentro. Em geral, a pessoa criativa tem que arrastar para a luz algumas dessas jóias, um pedaço desse tesouro, a coisa que está escondida. Naturalmente, ela terá que se expor aos perigos impostos pelos guardiões infernais, os satânicos. É precisamente esse perigo que o artista identifica como o aspecto neurótico e psicótico de seu esforço artístico, como encontramos na grande tradição de artistas malditos como Baudelaire, van Gogh, [Edgar Allan] Poe, e todos aqueles que pagaram um preço muito alto por ter chegado perto demais de certas verdades sem ter o conhecimento, a proteção, da psicanálise. Eles não tinham o que é necessário para fazer uma roupa à prova de fogo que poderia protegê-los dessa dimensão magnética inflamável. Não, pessoalmente, eu penso que tive muita sorte: exceto por vários episódios de depressão indispensáveis e educativos, eu não tenho nenhum estigma para mostrar a você!” (6)

Freud e Jung

“Todo mundo sabe que
o tempo é a Morte, que a
Morte se esconde em relógios. Contudo, impondo outro tempo, movido pelo Relógio
da Imaginação, pode-se
recusar essa lei (...)

Federico Fellini (7)



Em certo momento de Ensaio de Orquestra (Prova d’Orchestra, 1978), filme que poderia ser tomado como uma seção coletiva de psicanálise nacional da nação italiana, enquanto os músicos estão se colocando em seus lugares, a câmera de uma estação de tv passeia entre eles para fazer um documentário sobre a orquestra (o próprio Fellini desempenhará o papel de entrevistador). Nesse passeio, a câmera surpreende uma pergunta que um músico faz para outro. Ele quer saber se Fellini 8 ½ é um filme psicanalítico. Com este comentário 15 anos após Fellini 8 ½, os mais pessimistas diriam que Fellini está apenas recriando uma expectativa em torno de um filme antigo por questões financeiras. Entretanto, como somos otimistas, preferimos acreditar que este comentário apenas dá o tom da polêmica em torno daquele filme confuso sobre um personagem confuso. (imagem acima, com Fellini sentado ao centro e Giulietta Masina em seu colo, relaxam durante as filmagens de Noites de Cabíria, 1957)


A partir de 1961, pelas mãos do psicoterapeuta alemão professor Bernhard, Fellini é apresentado aos livros de Carl Jung, discípulo de Sigmund Freud. Fellini não sabe dizer que essas leituras influenciaram seus filmes a partir de Fellini 8 ½, mas acredita que esses livros sem dúvida favoreceram um contato seu com zonas mais profundas estimuladas por sua imaginação. Até então, o cineasta confessa, ele não tinha capacidade de definir suas preferências, gostos, nem conseguia forma idéias gerais a respeito de nada. Ele sentia como se lhe faltasse alguma coisa. Com a leitura de Jung, ele consegue se libertar do sentimento de culpa e do complexo de inferioridade que a constatação dessas coisas (que ele via como limitações) lhe causava (8).


Fellini afirmou que a psicanálise deveria ser ensinada nas escolas. Para o cineasta, apesar de todos os riscos de certas buscas, nada seria mais heróico do que um mergulho em nossas dimensões interiores, em uma exploração dessa parte desconhecida de nós mesmos. Entre Freud e Jung, entretanto, Fellini prefere o segundo. Não que ele tenha lido as obras de Freud, mas o texto de Jung acabou por se tornar um companheiro de viagem: “Freud quer nos explicar o que nós somos, Jung nos acompanha até o limiar do desconhecido e nos deixa ver e compreender sozinhos” (9). Segundo Fellini, Jung é mais modesto em relação aos mistérios da vida, e seus escritos não teriam a pretensão de tornar-se uma doutrina, procurando apenas sugerir um novo ponto de vista. Essa postura nos levaria a desenvolver um comportamento mais consciente, mais aberto, reconciliando-nos com as partes deslocadas, frustradas, mortificadas e doentes de nós mesmos. (abaixo, "Eu adoro entrevistas!". Um auto-retrato de Fellini durante entrevistas filmadas)


Fellini acredita também que Jung tem mais a dizer que Freud em relação àqueles que crêem que tem mais a realizar no sentido de uma imaginação criadora. Freud nos obriga a pensar, enquanto Jung nos permitiria sonhar, imaginar. Na opinião de Fellini, Jung percebe mais claramente o labirinto de nosso ser. Entre Freud e Jung, lembra o cineasta italiano, existe uma diferença de percepção em relação ao fenômeno do simbolismo. Isso interessou Fellini porque, enquanto realizador de filmes, ele está acostumado a empregar imagens simbólicas. Para Jung, o símbolo pode exprimir uma intuição para a qual não encontramos uma forma mais clara de expressão - o símbolo seria uma forma de exprimir o inexprimível, ainda que de maneira ambígua. Já para Freud, explica Fellini, o símbolo é empregado para substituir alguma coisa impossível de se exprimir e que por conseqüência é necessário esquecer - o símbolo seria uma forma de esconder aquilo que não se pode mostrar.




Resumidamente, Fellini acha que a pergunta que os dois mestres fazem é a mesma: o que é a alma humana? Do ponto de vista do cineasta, a resposta de Jung foi mais fascinante (10).


Leia Também:

Fellini e a Psicanálise I
Ettore Scola e o Milagre em Roma
Ettore Scola e o Filme Dentro do Filme
Mussolini e a Sombra de Auschwitz

Notas:

1. PETTIGREW, Damian. I’m A Born Liar. A Fellini Lexicon. New York: Harry Abrams Inc., 2003. P. 124.
2. MÉJEAN, Jean-Max. Fellini, un Rêve, une Vie. Paris: Éditions du Cerf, 1997. P. 140.
3. Idem, p. 153.
4. GRAZZINI, Giovanni. Fellini par Fellini. Entretiens Avec Giovanni Grazzini. Paris: Flammarion, 1984. P. 132.
5. MÉJEAN, Jean-Max. Op. Cit., p. 20.
6. PETTIGREW, Damian. Op. Cit., p. 127.
7. Idem, p. 52.
8. GRAZZINI, Giovanni. Op. Cit., P. 132.
9. Idem, p. 134.
10. Ibidem. 


24 de out. de 2008

Fellini e a Psicanálise I






Nada é mais honesto
do que um sonho

 
Federico Fellini (1)







Sonhar é Preciso (Mesmo que Seja um Pesadelo)

O mundo reflexivo de Fellini 8 ½ (Otto e Mezzo, 1963) deve muito ao encontro de Fellini com a psicanálise junguiana. Somando seu interesse pelo irracional, sua tendência a sonhar muito e o hábito de registrar seus sonhos, Fellini estabelece sua autobiografia como uma fonte inusitada de inspiração. O cineasta preferia Carl Jung a Sigmund Freud, porque o primeiro não definia o sonho como sintoma de uma doença, mas como uma ligação a imagens arquetípicas compartilhadas por toda a humanidade.


“O aspecto mais interessante das anotações de sonhos de Fellini é que elas estão claramente em dívida com o estilo das primeiras histórias em quadrinhos norte-americanas, com um toque das pinturas metafísicas de praças italianas de De Chirico do período art deco, além das caricaturas de Nino Za que Fellini admirava na juventude e imitou quando jovem. [Essas coisas] não somente se relacionavam com os temas óbvios que alguém poderia esperar encontrar na psicanálise (a sexualidade e a função da mulher na fantasia de Fellini) mas também enfatizavam problemas de ansiedade a respeito da criatividade artística”(2)

Entre as características do estado de sonho estão a pouca relação causa/efeito, poucas conexões lógicas e, em casos como o de Fellini, cores vivas. Com a influência de Jung, Fellini se debruçou mais e mais sobre a irracionalidade em suas fantasias e imagens inspiradas em seus sonhos. Ele se descrevia como um convidado ou visitante nesse reino dos sonhos. Um visitante sempre é tomado por um sentimento de surpresa ao penetrar o reino dos sonhos – mesmo que sejam seus próprios sonhos. Nas palavras de Fellini, “nada é mais honesto do que um sonho”. (imagem acima, sentado, Guido está fisica e visualmente sufocado pelas críticas de Daumier à seu roteiro de filme. Curiosamente, Daumier está de branco, cor com que todos os personagens da vida de Guido apareceram no final do filme de Fellini; abaixo, à esquerda, na estação de trem, Guido recebe Carla, sua amante)


Atraído por seus sonhos a partir de 1961, As Tentações do Dr. Antônio (Le Tentazioni del Dottor Antonio, 1962) é o primeiro resultado. Como uma resposta bem humorada aos ataques que A Doce Vida (La Doce Vita, 1959) havia sofrido, o filme mostra a sexualidade reprimida de um puritano e sua obsessão por um outdoor que associa o hábito de beber leite aos seios de uma loura gigante que sai do cartaz e passa a persegui-lo. Se Fellini havia acabado de dirigir seu primeiro filme colorido, Fellini 8 ½ volta ao preto e branco. O filme mostra uma luz expressionista que consegue captar a essência da qualidade irracional do estado de sonho (3).

Alguns elementos de As Tentações do Doutor Antônio ressurgem em Fellini 8 ½. Doutor Antônio dá lugar a Guido Anselmi, e o tom satírico do personagem anterior dá lugar à fantasia de um diretor que está no meio de uma crise de inspiração e criatividade – não muito diferente daquela que o próprio Fellini experimentou no início dos trabalhos com o filme. Fellini 8 ½ conta a estória de Guido, um diretor que não sabia mais que filme ele queria fazer. A sexualidade também tem um papel decisivo neste filme, embora com outro enfoque. O estado de sonho presente em As Tentações do Doutor Antônio também está em Fellini 8 ½. Entretanto, isso não quer dizer que esse filme é sério, enquanto o anterior era cômico. Fellini 8 ½ segue um estilo cômico também, sendo conhecida a observação que Fellini escreveu em uma fita adesiva colocada em uma câmera: “lembre-se que este é um filme cômico”.


Combinando muitos episódios particulares no interior de uma narrativa, Fellini foge completamente do modelo hollywoodiano de contar estórias. As cenas são articuladas por seqüências de sonho e fantasia. Fellini pula do mundo real às fantasias utilizando um estilo cômico que mostra sua recusa em reduzir um trabalho de arte a uma mera mensagem com conteúdo ideológico. “Para Fellini, o cinema é primeiramente um meio visual cujo poder emotivo se dá através da luz, não das palavras” (4). (imagem ao lado, entre os muitos delírios de Guido que Fellini nos mostra, um deles é um encontro entre sua esposa e sua amante, que se tornam amigas)

Fantasia e Criatividade




“Existem   alguns   truques,   mas
 há também algo de verdadeiro.
Eu não sei como acontece,
mas acontece” (5)


O telepata Maurice explica a
Guido como faz  sua  mágica




A narrativa de Fellini 8 ½ envolve a visualização do próprio processo de criação. Mas Fellini não analisa teórica ou ideologicamente esse processo. Ele está interessado em mostrar imagens do processo e as poderosas emoções de sua comunicação bem sucedida com a platéia. Como ele mesmo declarou: “eu não quero demonstrar nada; eu quero mostrar”. Tudo, na vida profissional e afetiva de Guido, mostra a atuação do irracional na criatividade artística. A edição do filme é feita de forma que não consigamos estabelecer um sentido de espaço e tempo. A câmera sempre mantém Guido dentro do quadro, enquanto os outros personagens movem-se livremente para dentro e para fora dele. Grande parte dos personagens possui os próprios nomes dos atores que os interpretam, o que explode novamente a linha entre ficção e realidade (6). (imagem acima, à esquerda, Guido e Maurice o telepata; abaixo, Cláudia, a inalcançável mulher ideal de Guido)


Na seqüência do cemitério, enquanto é repreendido por seu pai, Guido é beijado por sua mãe – que se transforma em sua esposa Luisa. Temos então o complexo de Édipo indicando a complexidade de sua relação com as mulheres. Noutra seqüência de sonho, Guido está em sua infância, onde ele é cuidado por um grupo de mulheres. A frase que Guido repete, asa nisi masa, remeteria a anima - conceito que Jung havia definido em seu trabalho de 1926, “casamento enquanto relacionamento psicológico”. Jung argumenta que a maior parte do que o homem sabe em relação à mulher é distorcido e derivado das projeções da sua própria alma (7).

Guido nos apresenta Saraghina, uma prostituta que vive na praia. Em sua infância, Guido e seus amigos pagavam para que ela dançasse. Os padres do colégio onde estudava descobrem essa aventura e incutem em Guido uma conexão entre mulher, sexualidade, vergonha e culpa. A partir daí, Guido divide as mulheres em virgens e prostitutas. Já adulto, casa-se com o primeiro tipo (Luisa), mas toma o segundo tipo como amante (Carla). Ele vê o sexo como uma transgressão, não como uma relação entre iguais. A Igreja, encarnada na pessoa de um cardeal, é a instituição que projeta essa visão a partir da educação católica. Noutro de seus passeios pelo subconsciente, Guido imagina um encontro cordial e feliz entre sua esposa e sua amante. Em seguida, caímos noutro de seus delírios, a famosa seqüência do harém. (imagem abaixo, a Igreja é uma constante em Fellini)


Como um rebanho, as mulheres de sua vida lhe dão um senso de superioridade ao servi-lo. Mesmo a rebelião delas, todas as noites, permite que Guido re-assegure sua dominação. Fellini mostra as fantasias de Guido como visualizações das fontes de toda criatividade artística. Sempre fontes da infância. Primariamente imagens visuais e não idéias articuladas por livre associação no presente, essas imagens entram no fluxo de consciência desordenadamente. Fellini 8 ½ mostraria como essas imagens se misturam em nossas vidas. Um pensamento crítico, de tipo NÃO acadêmico, é o que é preciso para ordenar esse material (8).

Fellini cria o personagem de Daumier, um crítico francês que destrói todas as intenções do roteiro do filme de Guido porque a coisa toda não está articulada com lógica. Na seqüência final, Guido se liberta de Daumier ao ser chamado por Maurice, o telepata. Guido retoma a ligação com sua arte através de suas emoções, não de seu intelecto. Ele aceitará a si mesmo com todos os defeitos: “Eu como sou... e não como gostaria de ser. E isso não... me assusta mais”. Fellini deseja mostrar que a criatividade artística surge de emoções e não dos elementos filosóficos ou ideológicos propostos por Daumier. (imagem abaixo, à direita, na seqüência final vemos Guido ordenando os personagens de sua vida de mãos dadas em torno de um picadeiro. Nesta cena, vemos que ele escolhe a esposa e não a amante para levar a seu lado na procissão ao som de música de circo. Na imagem em seguida, vemos Guido quando criança, último a deixar o picadeiro no final do filme)


Todas as críticas que (na vida real de Fellini) se faziam às temáticas fellinianas estão no discurso de Daumier. Quando Maurice anuncia que estão todos prontos para começar, estamos falando do filme de Fellini e não do de Guido. Se antes Fellini mostra a incapacidade de Guido realizar um filme, agora dramatiza a descoberta de Guido de que a aceitação de si mesmo representa a chave de seus problemas psicológicos, assim como o segredo da criatividade artística. Na cena final, quando todos os personagens do filme de Guido e a equipe de Fellini desceram a escada da torre e dançam em torno do picadeiro é Luisa, sua esposa, que está a seu lado.

Apenas duas ausências, Daumier e Cláudia, a mulher ideal de Guido. Muitos estão vestidos de branco (os parentes de Guido, sua amante Carla, Saraghina, entre outros), significando que foram purificados na mente de Guido através de sua auto-aceitação. No final do final, à noite, Guido aparece como o garoto de escola de padres que foi um dia, quando pagava para ver Saraghina dançar. Naquela época, seu uniforme era preto, agora ele está de branco – como uma memória do passado que se purificou (9). Guido retorna a sua infância, a fonte de sua inspiração artística. Enfim, Fellini coloca o foco da criatividade no indivíduo e suas fantasias:



“Eu acredito – por favor, note, eu estou apenas supondo – que o que me importa mais é a liberdade do homem. A libertação do homem individual em relação à rede de convenções morais e sociais nas quais ele acredita, ou nas quais ele pensa que acredita, e que o confinam e o limitam e o fazem parecer mais limitado, menor, às vezes até pior do que ele realmente é. Se você realmente deseja que eu seja um professor, então condense isso nestas palavras: seja aquilo que você é, quer dizer, descubra-se, de forma a amar a vida”. (10)





Leia Também:

Fellini e a Psicanálise (final)
Ettore Scola e o Milagre em Roma

Notas:

1. BONDANELLA, Peter. The Films of Federico Fellini. UK/US: Cambridge University Press, 2002. P. 96.
2. Idem, P. 94.
3. Ibidem, p. 97.
4. Ibidem, pp. 98-100.
5. Ibidem, p. 115.
6. Ibidem, p. 102.
7. Ibidem, p. 103-4.
8. Ibidem, p. 105.
9. Ibidem, pp. 110-11.
10. Ibidem, p. 119. 


7 de out. de 2008

Fellini e a Orquestra Itália



“Creio que seria uma boa idéia
os críticos
assistirem filmes como se
fossem espectadores normais”


Federico Fellini




Eu Não Gosto de Música

Ensaio de Orquestra (Prova d’Orchestra, 1979) é mais uma comédia de Federico Fellini. O cineasta italiano dizia que não conhecia nada sobre música, mas seu filme radicaliza, pois não é nem teatro filmado, nem documentário, nem um elogio a uma música em particular. Entretanto, a musicalidade está no ar. Muitos se entediaram com um filme que parece nunca começar de verdade. Vemos e ouvimos explicações sobre cada instrumento, mas poucas vezes chegamos a ouvir uma música fruto da reunião dos sons deles. Alguns disseram que sua intenção era política. Para Luiz Renato Martins, se fosse apenas isso a interpretação dos sentidos do filme seria empobrecida (1).

Ao contrário do que imaginam alguns, Fellini não tinha grande familiaridade com música (2). Afirmou que sua relação com a música era defensiva, que ele se protegia dela. Nunca assistia óperas e não tinha nenhuma cultura musical. Entretanto, Fellini admite que a música seja algo importante demais para ser tomado como elemento secundário. Mais especificamente, o cineasta achava que como a música tem o poder de promover condicionamentos subliminares, ele preferia evitá-la caso não estivesse escutando conscientemente.

Esse seria o caso quando está trabalhando em seus filmes. Embora não tenha deixado claro se aqui ele se refere às trilhas musicais de seus filmes ou ao ato de ouvir música enquanto está filmando ou escrevendo um roteiro. A música é muito importante para ser relegada a ruído de fundo, dizia Fellini. A música em elevadores, banheiros, telefones, está se transformando numa poluição (3).

Fellini dizia não se interessar por política. Ele nunca é colocado nas listas dos cineastas do chamado cinema político italiano. Entretanto, se levamos em conta o poder da metáfora no caso deste filme, a falta de cultura musical de Fellini é compensada pela importância que dá à música - sua força simbólica, mas, especialmente, a necessidade de acordo coletivo que ela impõe.

Um Povo, Muitas Vozes


"(...) É possível também que a escola
me tenha ensinado que existe toda espécie
de italianos,  e  muitos  pedaços  de  Itália,
cada  um  diferente  dos  outros"

Federico Fellini
Fellini par Fellini
(1983, p. 27)




Durante os créditos iniciais ouvimos a cacofonia do tráfego de Roma, onde os mais atentos conseguem perceber a inconfundível buzina imortalizada em Aquele que Sabe Viver (Il Sorpasso, 1964), filme dirigido por Dino Risi. Ensaio de Orquestra começa quando passamos para o interior de uma capela. O velho copista, vestido como se fosse de outro tempo (imagem abaixo), distribui as partituras e nos conta que essa capela é do século 13 e ali estão enterrados 3 Papas e 7 Bispos.


Mas como tem ótima acústica, foi transformada em local de ensaio de orquestras. Em Roma, completa Fellini, onde tudo é velho, isto não é incomum (4). Nesse sacrossanto local, muitos músicos estão vestidos como se fossem assistir a uma partida de futebol. Um deles até trouxe um pequeno rádio para acompanhar um jogo. Nem todos, conta Fellini, são tão insensíveis, o copista e um professor de música com 93 anos lembram da época quando os músicos levavam o trabalho a sério, e consequentemente tocavam melhor.



Fellini, de quem só ouvimos a voz, interpreta o papel de um entrevistador fazendo uma reportagem para a televisão. Os músicos falam sobre seus instrumentos. O fagotista odeia o fagote. A harpista, não tem amigos além de sua harpa. Ela é gorda e o pessoal dos sopros toca a música de O Gordo e o Magro quando ela passa. Fellini se identifica mais com o personagem da harpista. Ela come muito, ama seu trabalho e não admite mudar para satisfazer aos outros. Já a flautista, quer tanto agradar que dá uma cambalhota.



Fellini teve o cuidado de colocar na boca dos músicos alguns dos dialetos falados na Itália. Não esqueceu nem do italiano com sotaque falado por estrangeiros como o maestro - que é alemão e, quando fica muito irritado, acaba falando apenas em seu próprio idioma. Fellini traduziu bem a mistura italiana, pois esta variedade de dialetos foi vista por muito tempo como entrave ao desenvolvimento de uma Itália unificada. Mussolini, o ditador fascista, havia proibido a utilização de dialetos e palavras estrangeiras.



Algo parecido como no Brasil, onde temos várias palavras francesas ou inglesas para designar objetos como abajur (do francês abat-jour), shopping center (centro de compras em inglês). Lembramos da crítica feita por Pier Paolo Pasolini à imposição desse idioma italiano homogêneo, que seria a ferramenta do que ele chamava de “novo homem italiano”. Destruindo os dialetos, ele afirmava, matamos a verdadeira Itália. (ao lado, o fagotista que não gosta do fagote, seu instrumento, que mais parece um grande falo)



Em Um Dia Muito Especial (Una Giornata Particolare, direção de Ettore Scola, 1977), uma voz que procura evitar os dialetos faz a locução de rádio durante uma visita de Hitler a Roma em 1938. Enquanto isso, dois vizinhos se conhecem. A personagem de Sofia Loren, uma dona-de-casa com sotaque romano-napolitano (desprezada por seu marido fascista), conversa com o personagem de Marcello Mastroiani, um intelectual e homossexual com sotaque do sul (região que se costuma chamar de Setentrional).



Ele utiliza muito o pronome “Lei” (senhora, senhor), abominado pelo regime fascista italiano por ser considerado ambíguo, servil e de origem espanhola (5). O Neo-Realismo também soube captar este problema da sociedade italiana, em filmes como A Terra Treme (La Terra Trema: Episodio Del Mare, 1948) e Rocco e Seus Irmãos (Rocco e Suoi Fratelli, 1960), ambos dirigidos por Luchino Visconti. No segundo caso, encontramos uma família siciliana vivendo em Milão, ao norte do país.



“A experiência mais extrema no emprego do dialeto no cinema do após-guerra foi levada a cabo por Visconti em [A Terra Treme]. Na abertura do filme, um letreiro avisa: ‘Eles não conhecem outra língua senão o siciliano para expressar rebeliões, dores, esperanças. A língua italiana não é na Sicília a língua dos pobres’. O dialeto dos habitantes de Acitrezza resultou, porém, tão incompreensível como uma língua estrangeira e no circuito comercial [...] acabou [...] dublado em italiano”. (6)



Sempre Foi Assim...

"Eu   não   sou  absolutamente  um
homo politicus
,  jamais  fui.  A p
olítica
e o esporte me deixam completamente
indiferente, sem reação, inerte (...)"


Federico Fellini
Fellini par Fellini (1983, p 18)



O ensaio da orquestra é confuso como o tráfego de Roma. Os músicos querem acabar logo, para eles é apenas mais um emprego. Fazem piadas de músico uns com os outros, ficam ligados na partida de futebol transmitida pelo rádio, perseguem um rato, tem uma discussão sindical. Também se distraem facilmente, como o músico que transa com a pianista embaixo do piano durante a greve da orquestra. A pianista, que não pára de comer um sanduíche, demonstra indiferença tanto pela conquista quanto pela arte.


O que podemos depreender dessa situação, se levamos a metáfora ao extremo, é que essa orquestra (a Itália) toca com extremo desinteresse (sem união). O maestro (Um presidente? Um Primeiro Ministro? Um governado provincial? Um prefeito?), não suportando essa falta de respeito generalizada, provoca a disputa sindical. Segue-se uma revolta dos músicos (O povo? Os Italianos? Os comunistas? Os fascistas?), que jogam merda nos quadros com imagens de famosos compositores alemães.



Depõem o maestro e colocam em seu lugar um grande metrônomo (um instrumento que marcará o tempo e o ritmo da música automaticamente, com precisão e sem variações de temperamento), apenas para em seguida retirá-lo também do poder. O caos é interrompido por uma grande bola de ferro utilizada em demolições que derruba uma das paredes da velha capela. Nessa demolição, morre Clara, a harpista. De acordo com o próprio Fellini, esta bola é uma metáfora do inimigo dos valores humanos.



Como prefere acreditar Fellini, a ordem irá ressurgir do caos. Entretanto, como em toda revolta, algo precioso é perdido e a música continuará sem a harpa, talvez para sempre (7). A bola de ferro é impiedosa, mercenária. Como quem a controla ela também não tem coração. Mas para Fellini, a verdadeira tragédia é que os danos serão logo esquecidos. O mundo, empobrecido por mais uma perda, em pouco tempo se acomoda e aceita que "sempre foi assim". O inimaginável é aceito como verdadeiro (8).



Um mundo que desaba, diria Jean-Max Méjean sobre Ensaio de Orquestra. O maestro é como o pai, que através de sua batuta (sua vara, seu falo), dirigirá esse mundo à deriva que Fellini, bem lá no fundo, gostaria que fosse harmonioso e pacífico. Mas esse mundo é ameaçado do exterior, como a imensa bola de ferro da demolição (9). Se para Méjean o mal vem do exterior, veremos que Fellini tem dúvidas quanto ao poder do “cérebro civilizado” de reprimir seus próprios pensamentos primitivos.



Chris Wiegland sugere um subtítulo para o filme: O Declínio do Ocidente em Dó # Maior. Wiegland enfatiza o tom ditatorial do maestro. Lembra ainda um duplo sentido na palavra “maestro”, já que Fellini era afetuosamente chamado desta forma na vida real. Wiegland conclui que o filme é uma alegoria ou ensaio irônico e imparcial acerca dos males do totalitarismo. O sucesso de público na Itália é atribuído a essa interpretação por parte dos espectadores (10). Temos ainda a conclusão de Peter Bondanella...



“Ao menos parcialmente inspirado por acontecimentos políticos (o assassinato do Primeiro Ministro Aldo Moro pelas Brigadas Vermelhas), [Ensaio de Orquestra] apresenta a Itália como uma orquestra fora de sincronia, não apenas com a música que está tocando, mas com seu maestro também”. (11)


Considerações Políticas

"Eu   reconheço   que   minha
atitude  talvez  seja  neurótica,  uma
recusa  de  crescer,  determinada, em parte,
digamos, pelo fato de que eu fui educado durante
o   fascismo.   Portanto,   de   ter   ignorado   toda
espécie de participação direta na política na
primeira pessoa, salvo em manifestações
exteriores do gênero dos cortejos"

Federico Fellini, Fellini par Fellini (1983, p. 19)


No final do filme, os músicos concluem que precisam de um líder e o maestro retorna. Recomeça o ensaio e o maestro volta a reclamar. Até que a tela escurece enquanto ouvimos o maestro gritar em alemão, ao estilo dos discursos de Hitler. Quanto mais as coisas mudam, mais elas continuam as mesmas, é a natureza humana (12). Entretanto, é o próprio Fellini que esclarece, a explosão do maestro não seria nada além de uma demonstração de frustração, como o próprio cineasta sentia às vezes. Na cena em que o personagem de Fellini entrevista o maestro para o documentário da televisão, ele diz, “nós tocamos juntos, mas unidos apenas por um ódio comum, como uma família destruída”. Às vezes, confessa Fellini, ele sentia o mesmo em seu trabalho.


“Como uma família destruída”, poderíamos descrever a situação da Itália do pós-guerra com as mesmas palavras? Como sair de 20 anos de Fascismo e evitar uma guerra civil fratricida? Lembremos que o país saiu da guerra oficialmente em 1943, mas alemães e forças aliadas ainda lutariam em solo italiano por mais dois anos. Além do mais, apanhada na Guerra Fria que se sucedeu a seu próprio cataclismo interno, a Itália era forçada a escolher entre a União Soviética e os Estados Unidos.



“Como uma família destruída”, talvez essas também sejam as palavras certas para traduzir a situação política dos italianos após a queda do muro de Berlin em 1989. Com o fim da União Soviética, muitos mitos comunistas caíram por terra. Um deles diz respeito ao papel da resistência armada ao regime fascista. Em 25 de abril de 1945, dia em que oficialmente terminaram os combates da Segunda Guerra Mundial na Itália, os membros da Resistência tomaram o controle de muitas cidades do norte do país.



Entretanto, já se assistia entre 1943 (ano da invasão pelos exércitos aliados e da rendição do país) e 1945 a uma disputa entre as facções comunista e não-comunista dessa Resistência pelo controle da Itália. Em 25 de abril, com a vitória definitiva dos aliados sobre os nazistas, os comunistas realizaram uma chacina sem precedentes que chegou a 19,000 mortes. Quem apoiou Mussolini seria morto, mas também seus parentes (mesmo que não fossem fascistas), ou qualquer um que não fosse comunista.



Giampaolo Pansa, um homem da esquerda, mostra como o que ocorreu de fato foi uma guerra civil. Além disso, derruba o mito de que apenas os fascistas cometeram atrocidades. Naturalmente, a esquerda o acusa de revisionismo. Seja como for, os ex-guerrilheiros comunistas sempre foram contra a intenção dos governos italianos (de direita) em transformar a comemoração anual que reafirma os feitos da Resistência durante a guerra numa espécie de dia nacional contra os regimes totalitários (13).



Com o fascismo latente da sociedade italiana de um lado e a grande aceitação de um ideário comunista mitificado de outro, o país era mais um candidato natural ao caos institucional - que vem florescendo novamente. No final (da década de 40), o capitalismo venceu, e o italiano se tornou um comportado consumidor - do tipo que confunde acúmulo de bens materiais com bem estar social. Pasolini tratou muitas vezes desse tema do consumismo irracional, a ponto de ser odiado pela sociedade italiana.



Situação mostrada na comédia O Frango Caseiro (Il Pollo Ruspante, direção de Ugo Gregoretti, parte da coletânea Rogopag, 1963), onde uma família se vê totalmente mergulhada na febre consumista, enquanto Pasolini é retratado como um inimigo público. Por outro lado, se o vencedor fosse a União Soviética, provavelmente não teríamos o italiano transformado em consumidor boçal (pelo menos de bens materiais). Mas há poucas dúvidas de que se tornaria, assim como no capitalismo, um ser passivo, sem idéias próprias.

Qual Era Seu Objetivo Afinal? 


"Na  pequena fábula oriental do aprendiz
de feiticeiro, o livro da sabedoria, ao qual
se  chega ao final de uma longa ascese,  é
formado  por  páginas  que  são  espelhos:
quer  dizer   que   a   única   possibilidade
 
de   conhecer  consiste  em  conhecer -se"

Federico Fellini
Fellini par Fellini (1983, p.21)




Fellini se surpreende com os significados que as pessoas encontram em seus filmes. Para ele, nenhum drama se completa enquanto não for testemunhado por uma platéia. No caso do cinema, a platéia é o único personagem que pode variar sua função de uma atuação à outra. Certa vez, alguém abordou o cineasta e disse sobre Ensaio de Orquestra: “você está absolutamente certo. Nós precisamos de Tio Adolf novamente”. “Tio Adolf” se refere a Adolf Hitler. Fellini saiu o mais rápido que pode (14).


Fellini lembra de quando prometeu a Alessandro Pertini mostrar o filme numa seção privada. Infelizmente, comentou o cineasta, quando isso aconteceu Pertini já havia sido eleito presidente da Itália. Portanto, a seção ocorreu no palácio presidencial, juntamente com uma platéia de políticos. O presidente defendeu Fellini, mas os políticos tomaram o filme como um ataque pessoal, ou pelo menos político. Todas as interpretações negativas que puderam ser imputadas ao filme foram feitas.



Por exemplo, o líder do Partido Comunista estava certo de estar sendo ridicularizado, pois o personagem que fazia o sindicalista tinha um sotaque da Sardenha. A verdade é que o ator que fazia esse personagem era da Sardenha. Segundo Fellini, uma coincidência (15).


Como já mostramos, o sucesso de público que o filme alcançou na Itália foi atribuído a essa interpretação política. Como em outros de seus filmes, Fellini foi severamente criticado, pois muitos consideraram que a volta do maestro fosse uma apologia ao Fascismo. Outros insistiram que foi uma abordagem política ingênua. Outros o consideraram reacionário, conservador, ou uma bagunça de tiradas místicas de uma alegoria política. Então, de uma vez por todas, nas palavras do próprio Fellini:



Ensaio de Orquestra não é nada disso: é um apólogo ético que tira seu exemplo de ‘O Maestro da Orquestra’ [contido em] Massa e Poder [1960], [escrito por] Elias Canetti, uma reflexão monumental sobre a natureza da violência, um [livro] clássico que meu sábio amigo Brunello Rondi sugeriu que eu lesse [durante as filmagens de] Casanova [1976]: ‘Deste modo, para a orquestra, o maestro incorpora literalmente a obra que estão tocando, a simultaneidade dos sons, assim como sua seqüência. Por causa disso, durante a performance, nada existe além dessa obra, por isso o maestro é quem governa o mundo’. De fato, eu me diverti com a idéia de usar essa citação nos créditos iniciais [do filme], mas pensei melhor. Não é meu estilo”. (16)


Ao mesmo tempo aconteceu o seqüestro e morte do Primeiro Ministro italiano Aldo Moro pelas Brigadas Vermelhas. O que gerou a interpretação de que Ensaio de Orquestra estivesse ilustrando metaforicamente o episódio. Fellini admite apenas uma breve cena. Durante a greve da orquestra, um músico pergunta ao maestro como (a greve) aconteceu. Não há resposta. Entretanto, provavelmente comentando a partir do roteiro, Fellini diz que o maestro respondeu: "quando não estávamos prestando atenção".



Portanto, ainda que o filme possa servir como um comentário sobre o ocorrido, não foi inspirado especificamente nele. Ensaio de Orquestra não é sobre o ensaio de uma orquestra, mas sobre um grupo que se reúne com um objetivo comum (tocar uma música ou fazer um país). A questão é como se dá a relação entre as diferentes identidades dentro do grupo. Na opinião de Fellini, as coisas que os críticos (ou estudiosos do cinema) vêem em seus filmes são diferentes daquelas que ele vê (17).



Fellini imagina a situação de trabalhadores quebrando uma calçada e encontrando embaixo do pavimento da civilização exatamente o mesmo solo da selva. O cineasta se pergunta se a camada de nossa civilização é tão fina assim. Indo mais além, Fellini se pergunta se nossos pensamentos primitivos espreitam abaixo da superfície de nosso “cérebro civilizado”, possibilitando à humanidade voltar a eles a qualquer momento. Estes pensamentos vinham à Fellini enquanto ele planejava Ensaio de Orquestra (18).



Os músicos não chegam ao ensaio apenas com seus instrumentos. Trazem também alegria, problemas, temperamentos e ansiedades. Fellini não acreditava que aquela massa de pessoas e instrumentos pudesse se unir na essência da música. Ficou muito comovido ao ver uma harmonia surgindo a partir do caos e percebeu que era a metáfora da sociedade humana. Fellini queria dar aos espectadores a impressão reconfortante de que é possível criar alguma coisa junto com outras pessoas (19).


Leia Também:


Notas:

1. MARTINS, Luiz Renato. Conflito e Interpretação em Fellini. São Paulo: Edusp, 1993. Capítulo 3.
2. É o caso da contracapa do dvd do filme, lançado no Brasil pela distribuidora Versátil Home Vídeo.
3. CHANDLER, Charlotte. I, Fellini. New York: Random House, 1995. Pp. 193-4.
4. Idem, p. 198.
5. FABRIS, Mariarosaria. O Neo-Realismo Cinematográfico Italiano. São Paulo: Edusp, 1996. P. 98, n. 30. O grifo é meu.
6. Idem, p. 99n 33.
7. CHANDLER, Charlotte. Op. Cit., p. 199.
8. Idem, p. 201.
9. MÉJEAN, Jean-Max. Fellini, Un Rêve, Un Vie. Paris: Éditions du Cerf, 1997. P. 146.
10. WIEGAND, Chris. Federico Fellini. A Filmografia Completa. Köln: Taschen, 2003. P. 158.
11. BONDANELLA, Peter. The Films of Federico Fellini. USA/UK: Cambridge University Press, 2002. P. 31.
12. CHANDLER, Charlotte. Op. Cit., p. 201.
13. O tema é tratado nos livros da trilogia: I Sangue Dei Vinti (2003), Sconosciuto 1945 (2005), La Grande Bugia (2006). Editora Sperling & Kupfer, Milão. Ver também I Sangue Dei Vinti. Disponível em: http://it.wikipedia.org/wiki/Il_sangue_dei_vinti Acessado em 07/10/2008; Giampaolo Pansa: The Big Lie. Disponível em: http://www.abc.net.au/rn/bookshow/stories/2007/1893235.htm Acessado em: 07/10/2008.
14. CHANDLER, Charlotte. Op. Cit., p. 202.
15. Idem, p. 203.
16. PETTIGREW, Damian. I’m A Born Liar. A Fellini Lexicon. New York: Harry Abrams Inc., 2003. P. 115.
17. CHANDLER, Charlotte. Op. Cit., pp. 192 e 197.
18. Idem, p. 197.
19. Ibidem, p. 192.
 

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