Mais um filme
que dialoga com o
cinema e a política
da península
Sob a Cúpula de São Pedro
Estamos numa favela de Roma na década de 70 do século passado. Giacinto vive de pensão do Estado desde que um acidente de trabalho levou-lhe um olho. Mora com sua família mais alguns agregados, amontoados num casebre onde não existe a menor possibilidade de privacidade. Todos desejam se apossar do dinheiro de Giacinto, mas o patriarca vive trocando o dinheiro de lugar. Talvez o lugar mais seguro naquela favela seja a jaula onde são colocadas as crianças pequenas para brincar. Quando a velha mãe de Giacinto pega dinheiro da aposentadoria, todos pegam e dividem entre si sem a menor cerimônia. A vizinha exibe as fotografias que sua filha fez para uma revista erótica como se fosse uma obra de arte, para deleite e escárnio dos homens da vizinhança. Enquanto a “artista” desce as escadarias do morro, conversa com uma menina. A garota quer saber quanto ela ganha, “depende do que você mostrar”, respondeu a outra. A menina retrucou que na casa onde é empregada lhe pagam sem ela precisar tirar nada. Ao despedirem-se, a “artista” dá um conselho profissional: “Não se esqueça que é melhor tirar a roupa!”
O patriarca tem
um pesadelo com seus familiares consumistas.
Escuta uma voz dizendo “Compre! Compre!
Gaste e será feliz”
Enquanto isso, a velha assiste televisão. E a apresentadora enuncia uma frase que ecoou durante muito tempo durante desde o pós-guerra, especialmente entre a então Alemanha Ocidental e a Itália: “A única coisa de que temos que ter medo é o próprio medo”. Não existem respeito nem moral nas relações entre aquelas pessoas, mas a coisa piora muito quando Giacinto impõe a sua esposa que aceite dividir a cama com uma amante dele (que também é prostituta). A esposa agora quer a morte de Giacinto. No dia do batizado de um neto, servem um prato de macarrão envenenado. Ele quase morre, consegue fugir e vomita tudo. De volta, Giacinto coloca fogo em tudo e depois vende a casa, o que coloca a todos em guerra com os novos moradores. No final, nada muda e logo todos estão dividindo o mesmo espaço entupido de gente. De manhã cedo, como faz todos os dias, uma menina sai do casebre para encher baldes com água. Ela agora está (finalmente) grávida – quem sabe obra de Nando, o filho hetero-e-travesti de Giacinto? Como em outros passeios dela, se vê Roma lá embaixo do morro. Ela fita o horizonte por alguns segundos, na direção da cúpula da Catedral de São Pedro, no Vaticano. Logo a seguir, volta o rosto para frente na direção da bica de água e volta para seu mundo. (imagem acima, à esquerda, note-se a cúpula da Catedral de São Pedro na porta do casebre de Giacinto; à direita, ele conta seu dinheiro, note-se a cédula com efige de Giuseppe Verdi)
Consumidores e Consumidos
Feios, Sujos e Malvados (Brutti, Sporchi e Cattivi, 1976) é uma paródia daquela favela utópica de Milagre em Milão (Miracolo a Milano, 1951). Embora seja uma crítica, Peter Bondanella sustenta que é mais uma demonstração do apresso de Ettore Scola por Vittorio De Sica. Na favela romana de Scola, não existe a menor sombra dos pobres despreocupados que a fantasia de De Sica celebrava. Não existem traços nem mesmo dos elementos da cultura proletária romana que tanto fascinaram Pasolini, e que ele mostrou em Accattone. Desajuste Social (Accattone, 1961). De acordo com Bondanella, Scola desejava inserir no filme uma introdução com Pasolini, porém com a morte deste tudo mudou. Um ano antes, Pasolini havia dirigido Salò ou os 120 Dias de Sodoma (Salò o le 120 Giornate di Sodoma, 1975), um filme que marca, ainda mais do que Accattone. Desajuste Social, a distância que o separava de Scola. De acordo com o último, Giacinto, o pensionista de Feios, Sujos e Malvados, é um produto trágico de uma sociedade capitalista desumana que reduz os favelados a consumidores inconscientes, ladrões, prostitutas e assassinos. Já Pasolini, que acabou rejeitando o subproletariado em Salò, dizia que a corrupção nas favelas não era somente culpa da sociedade, mas dos próprios favelados (1). A propósito, o papel de um dos filhos de Giacinto é desempenhado por Ettore Garofolo, que atuou como filho de Mamma Roma no filme homônimo de Pasolini em 1962. No pesadelo do patriarca, esse filho aparece desfrutando de colchão e pijama novos. Se no filme de Pasolini Ettore morre nas mãos da polícia, no de Scola é o próprio pai que chega a dar um tiro (não fatal) nele por pensar que o rapaz roubou seu dinheiro.
Em sua cáustica acusação à sociedade italiana, Scola contraria cada aspecto favorável da sociedade da favela de Milagre em Milão. Ao invés de pobres pacientes e sofridos e injustiçados, Scola apresenta indivíduos perversos, brutais, mesquinhos e desagradáveis, cujos valores morais foram completamente destruídos pela penúria financeira. Um ciclo de desesperança e desespero, quebrando brevemente com relações sexuais desesperadas que apenas levam à gravidez indesejada. A cena final, tendo a cúpula da Catedral de São Pedro e o Vaticano ao fundo, duplica o final de Roma, Cidade Aberta (Roma Città Aperta, direção Roberto Rossellini, 1945) de uma forma bastante irônica. No caso de Rossellini, a visão de Roma a partir de suas colinas sugere um futuro melhor do que aquele do Fascismo e do Nazismo. Com suas panorâmicas de Roma e da cúpula de São Pedro aqui e ali durante todo o filme (a porta do casebre dá direto para a cúpula e, ao lado da porta, existe uma reprodução da catedral na parede), Scola nos oferece uma família enorme presa num inferno de ignorância e pobreza. Talvez a insistência com que uma vizinha mostra as fotografias de sua filha seminua numa revista erótica e insiste que se trata de arte, seja um eco da tentativa de uma indústria pornográfica nascente em sugerir que aquilo é a mesma coisa de um nu artístico nos moldes de uma seção de pintura como modelo vivo! Aliás, Pasolini já havia falado sobre essa falsa permissividade do poder. (imagem acima, à esquerda, a vizinha de Giacinto mostra o fruto do trabalho da filha "artista", à esquerda, a menina mostra o prédio onde será uma empregada, a "artista" diz que também trabalhou ali, mas seu conselho é que a menina tire a roupa)
Num país aonde até os
favelados cantam Verdi,
seria de se esperar que
fossem menos alienados
Por falar em poder, em pelo menos dois momentos Scola faz uma referência direta ao sonho de uma nação italiana unida e forte, um sentimento anterior aos desdobramentos da guerra fria na política italiana do pós-guerra. Primeiramente, Giacinto está na privada quando um menino vem pedir dinheiro. Enquanto ele conta o dinheiro, podemos perceber a figura de Giuseppe Verdi (1813-1901) numa das cédulas. A seguir, um grupo de moradores da favela ensaia no botequim um trecho do famoso coro nacionalista de Verdi... Va pensiero sul'ali dorate: “Vá pensamento com asas duradas. Vá e pouse nos morros, nas colinas onde exalam frescas, suaves as doces brisas do solo pátrio. As memórias reacende no peito. Nos fala do tempo que já foi. Que infunda virtude à dor. Ó minha pátria, tão bela e perdida”. Ao final deste trecho, que quase foi incorporado como hino da Itália, todos os participantes (de todas as faixas etárias do pós-guerra) voltam para a bebida... Trecho da ópera Nabucco, o libreto se referia à tirania de Nabucodonosor sobre os hebreus, o que levou o povo italiano a se identificar com os oprimidos – na época, a Itália ainda era apenas um monte de reinos independentes, a maioria sob o domínio austríaco ou francês. Curiosamente, durante a Segunda Guerra, nada fizeram os italianos para impedir a execução das leis anti-semitas que mandaram muitos judeus italianos para os fornos de Auschwitz. Assunto explorado inclusive pelos próprios De Sica, em O Jardim dos Finzi-Contini (Il Giardino dei Finzi-Contini, 1970) e Scola, que retomará o episódio em Concorrência Desleal (Concorrenza Sleale, 2001). A seguir reconhecemos um dos cantores quando volta para a casa de Giacinto se gabando de que agora eles têm de cantar no Festival da Leitoa de Ariccia, uma província de Roma. Coincidência ou não, o pai de Verdi fora dono de uma taverna. Sem dúvida, duras referências aos sonhos de uma nação que se queria dona de seu destino. (na favela de Giacinto, um morador questiona que a moradora negra não seja italiana, o que ela nega. Além disso, ela também é vítima de pelo menos um episódio explícito de preconceito racial; note-se, ao fundo, um caminhão despejando lixo entre as moradias; abaixo, na cena final a menina favelada, e finalmente grávida, olha na direção da cúpula da Catedral de São Pedro, o simbolismo da cena diz muito sobre a sociedade italiana - e sobre algumas sul-americanas...)
Certa unidimensionalidade dos protagonistas de filmes como Roma, Cidade Aberta, porém mais ainda em Ladrões de Bicicleta (Ladri di Biciclette, 1948) (curiosamente, quando a família tenta envenenar Giacinto, ele foge de bicicleta) e Milagre em Milão, poderiam encontrar uma justificativa na situação do pós-guerra: era preciso sugerir que os seres humanos são confiáveis, que tem futuro, que terão chance de construí-lo! E, especialmente, que se pode conseguir compreender os seres humanos! Entretanto em 1976, ano de lançamento de Feios, Sujos e Malvados, talvez não fosse mais aconselhável acreditar em seres abençoados como o protagonista angelical de Milagre em Milão, ou mesmo no padre católico incorruptível de Roma, Cidade Aberta. Na opinião de Bondanella, o humanismo cristão de Roberto Rossellini e a empatia um tanto paternalista de Vittorio De Sica não podem mais oferecer qualquer possibilidade de um futuro diferente. E as crianças, um símbolo tão forte para os mestres do Neo-Realismo, foram reduzidas a uma personificação concreta das barreiras econômicas que mantém os pobres para sempre condenados a repetir seu destino trágico.
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Nota:
1. BONDANELLA, Peter. Italian Cinema. From Neorealism to the Present. New York/London: Continuum, 3ª ed, 2008 [1983]. P. 373.
Nota:
1. BONDANELLA, Peter. Italian Cinema. From Neorealism to the Present. New York/London: Continuum, 3ª ed, 2008 [1983]. P. 373.