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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

29 de set. de 2008

Milagre Econômico e Cinema na Itália

A Ultrapassagem


Sob a direção do cineasta Dino Risi, Aquele que Sabe Viver (Il Sorpasso, 1964) acompanha um dia na vida do quarentão Bruno, um italiano que se comporta como um adolescente. Com um pequeno carro conversível e veloz, ele voa pelas estradas em busca de alguma coisa que nunca chegamos a compreender - pois geralmente ele nunca vai até o fim daquilo que consegue. Está em companhia de seu jovem amigo Roberto, que apesar da pouca idade, se comporta como se fosse o único adulto entre eles.


O carro de Bruno possui uma buzina bastante barulhenta e original, não permitindo que o espectador fique indiferente ao distúrbio sonoro causado por ela – que não deixa de ser uma metáfora sonora da falta de concentração e foco que caracteriza Bruno. Assim como buzina compulsivamente, Bruno fuma sem parar, acendendo um cigarro no outro. Separado da mulher e metido a conquistador, irrita-se quando descobre que sua filha adolescente tem um namorado cinquentão e diz que vai casar com ele porque percebe que pode lhe dar um futuro seguro.


Entre uma aventura e outra, o caminho repleto de estradas recém asfaltadas e muitas curvas transforma-se em mais uma aventura na Itália de década de 60 do século 20. A não ser no final do filme, em pleno litoral da Riveira, quando Bruno derrapa numa curva tentando ultrapassar alguém com um carro mais potente. O carro capota montanha abaixo até quase cair no mar. Bruno se salva, mas Roberto, que finalmente estava se libertando de seu comportamento introspectivo e tímido, não consegue sair a tempo e morre.

A Nova Velha Itália

Analisando certos aspectos de Aquele que Sabe Viver, Angelo Restivo mostra como os anos do Milagre Econômico italiano marcaram uma guinada da comédia italiana de costumes na direção de uma abordagem mais complexa da sociedade. Aquele que Sabe Viver é um catálogo do estilo de vida emergente na “nova” Itália (1). O velho e o novo estão em choque permanente.


Esse choque, afirma Restivo, por vezes faz o filme voltar ao estereótipo, como na cena onde um grupo de padres católicos está com um problema no carro e pede ajuda aos dois amigos em latim (na imagem ao lado, o tradicionalismo Católico é ridicularizado). Embora neste filme a Igreja só apareça nesta cena, a problematização da herança católica parece ser uma constante nos filmes italianos do pós-guerra. Uma rápida comparação com outro filme ilustra esse fato. Trata-se de uma cena em A Doce Vida (1959), dirigido por Federico Fellini, onde ele mostra a comoção em torno de uma suposta aparição da Virgem para duas crianças na periferia de Roma.



Embora A Doce Vida não seja (apenas) uma comédia, seqüências como esta são carregadas com forte dose de ironia. Assistimos ao mesmo tempo o circo em que a mídia transforma o evento e o desdém com que um padre católico trata a suposta aparição. Mesmo que o padre estivesse criticando a postura da mídia e não a hipótese de que a Virgem “realmente” apareceu, podemos perceber que a Igreja Católica sempre está presente quando uma comédia italiana se refere ao velho, ao obsoleto.


Restivo chama atenção para a ironia da cena de abertura em Aquele que Sabe Viver. Bruno corre pela cidade com seu carro e sua buzina inconfundível em busca de um telefone público. Mas é feriado e, além disso, estamos olhando para uma sociedade com a velha tradição da parada para uma sesta no meio do dia (imagem ao lado, na seqüência inicial do filme vemos Bruno guiando em alta velocidade numa cidade deserta. Como numa cidade fantasma, ele entra e sai pela contramão sem encontrar resistência, apenas um eventual guarda de trânsito. Já aí podemos intuir o debate a respeito do choque entre as velhas tradições e os novos hábitos contemporâneos).


Bruno está como que fora de sintonia em relação a este mundo velho. Entretanto, o feriado vai fechar todo o país, permitindo que todos se conformem à nova sociedade do lazer. Bruno acaba utilizando o telefone de Roberto, que mora na periferia de Roma, uma região que cresceu rápido na década de 50 do século 20 para acompanhar o grande influxo de população vindo do interior e principalmente do sul. Bruno procura mostrar como a vida de Roberto gira em torno de fórmulas antigas. Bruno exibe os traços de um italiano de Roma, que vive uma vida improvisada, uma combinação de bravatas, sedução e esperteza (2).

O Novo Italiano, a Família e o Consumo

Aquele que Sabe Viver mostra uma Itália consumista e cheia de mobilidade. As máquinas estão sempre quebrando: uma máquina de cigarros, uma maçaneta de porta de banheiro e o próprio carro no final do filme. Angelo Restivo nos lembra que esta não é a Itália da permanência, mas da disponibilidade. Bruno leva Roberto num “giro” em busca de um bar aberto. Mas como é feriado, o passeio acumula muitos quilômetros, até que eles acabam em Viareggio, na Riviera, que mostra a Itália do começo dos anos 60 do século 20 – uma sociedade vestida com roupas de banho e dançando na praia. (imagens ao lado e abaixo)



Pelo menos num aspecto trágico tudo isso é muito parecido com a Itália de 1990, quando o número de acidentes com jovens bêbados ao volante subiu de forma alarmante – eles dirigiam centenas de quilômetros nas noites de sábado até encontrar a melhor discoteca (3). A semelhança com a realidade dos grandes centros brasileiros não parece ser mera coincidência - já que o lucro sádico dos empresários da vida noturna depende diretamente da irresponsabilidade e estupidez dos seus clientes. Apesar de tudo, poderíamos ressaltar que apesar de toda sua infantilidade e imprudência ao volante, Bruno não aparece dirigindo bêbado.


A trilha sonora do filme aponta também nesta direção da busca incessante de satisfação. Músicas pop como aquela que pergunta obsessivamente “Quando Quando Quando” (em complemento da frase, “Me diga quando irá me querer”), são perfeitas para emoldurar o presente perpétuo em que vive o consumidor. Fazendo dessa típica figura sulista (mais especificamente Romana) que é Bruno o protótipo do novo italiano, o filme parece sugerir que é a grande adaptabilidade do italiano, sua natureza camaleônica (traço central do estereótipo do italiano para os viajantes estrangeiros), que permite ao discurso do consumo remodelar facilmente o caráter italiano.


É neste sentido que Bruno é apresentado ao mesmo tempo como a Itália tradicional (porque ele é “mais velho”) e a nova, superficial e com sua mobilidade obsessiva (seu carro veloz que não pára nunca) (4). Em certo momento, Bruno explica para Roberto suas preferências musicais, sempre direcionadas para um estilo dançante e com letras adolescentes - diz que a poesia não o convence. Chega a dizer que encontra tudo nas músicas que gosta - como a questão da alienação presente nos filmes de Antonioni. Mas ironiza o cineasta, dizendo que tirou uma boa soneca no cinema quando foi assistir O Eclipse. Mesmo que alguma preferência musical de Bruno atravesse o território Antoniano, seus filmes certamente não lhe interessariam. São filmes longos e lentos, e a velocidade é tudo que caracteriza o universo de Bruno: talvez seja seu álibi para evitar vôos mais profundos.


Dois momentos alegóricos do filme são relacionados visitas de família, primeiro aos tios de Roberto e depois à esposa e filha de Bruno. Restivo classificou o primeiro caso de “gótico italiano” e o segundo de “moderno”. Os tios de Roberto são típicos burgueses morando numa villa no interior, com um empregado homossexual, uma filha ficando para tia e um camponês local que parece um Maciste. Bruno se insinua para a família de uma forma que deixa Roberto enciumado, além de fazê-lo duvidar de seu próprio passado em função das interpretações de Bruno em relação ao comportamento da família. (na imagem ao lado, Roberto se espanta com a informalidade de Bruno)


Em contraste, a família de Bruno é moderna: reduzida em pequenas partes, alienada, com grande mobilidade e hedonista. Bruno não vive com a esposa, pois naquela época o divórcio ainda não havia sido legalizado na Itália. De fato, o casal não se via há mais de um ano quando Bruno chega na casa da esposa com Roberto bêbado (ao lado, a família de Bruno. Sua esposa o evita. Sua filha, embora não procure homens iguais ao pai, confessa que prefere que ele não mude. Ela vai casar com um homem mais velho que o pai, mas empresário bem sucedido. Na imagem abaixo, a vemos flertando com Roberto, mas ele é tímido demais para tomar uma iniciativa)


Gianna, a esposa, responde ao comportamento machista de Bruno como se estivesse tratando com uma criança desobediente - ou, como ela comenta com Roberto, sua atitude com o marido é a mesma de uma mãe com um filho que não deu muito certo. Nesta seqüência temos um exemplo da crise sexual concomitante à modernização.


O cinema norte-americano da década de 50 do século 20 mostrou a crise da masculinidade que acompanha a modernização centrada no consumo, onde os homens norte-americanos como incapazes de abdicar do falocentrismo. Mas mostrou também que os melodramas acabavam jogando a culpa na “voracidade” feminina, culminando na caracterização da economia do consumo como algo feminino. Em Aquele que Sabe Viver, temos essa situação quando a busca de segurança marital pela mãe/esposa de Bruno e por sua filha as deixa impenetráveis em relação a um homem (Bruno) que não tem capacidade de prover essa segurança (5).



A Nova Itália Vai à Praia

Essa sociedade em roupas de banho é uma evidencia forte da mudança de uma sociedade basicamente campesina e agrária para uma sociedade baseada no entretenimento. O fato de ter havido um aumento brutal das auto-estradas e um incremento da produção de automóveis durante os anos do milagre econômico foi apenas um dos fatores que tornou tudo isso possível. Entretanto, não quer dizer que as praias abarrotadas de gente num país praticamente todo cercado pelo mar seja um fator totalmente negativo. (na imagem ao lado, preocupado em voltar para casa, vemos Roberto alheio ao burburinho da praia. Quando finalmente se solta, Bruno perde o controle do carro e ele morre)


Não foi apenas Dino Risi possibilitou a visualização de uma nova Itália que vai à praia nos feriados. Pier Paolo Pasolini também considerou o litoral como um ponto privilegiado de observação para aqueles que procuraram compreender a Itália da década de 60 do século 20. No documentário Comícios de Amor (Comizi d’Amore, 1963), Pasolini pretendia fazer uma pesquisa a respeito da sexualidade italiana - com perguntas sobre casamento, divórcio, família, prostituição, homossexualidade, erotismo e amor, dirigidas a centenas de italianos do interior e da cidade grande, de várias idades, sexo e classes sociais. (ao lado, Bruno e sua filha)



Pasolini procurava o “novo italiano” que, nas palavras de Angelo Restivo, se poderia vislumbrar na interseção entre aquilo que eles dizem (seu discurso) e aquilo que eles fazem (com e através de seus corpos). Significativamente, completa Restivo, essa busca de Pasolini pelo “novo italiano” o levou às praias durante um feriado nacional. Exatamente como Dino Risi procurou visualizar a totalidade social no final de Aquele que Sabe Viver. O próprio Pasolini afirma em seu documentário que quando ele vai para a praia ele está em busca dessa “nova Itália”. (a imagem ao lado nos dá uma idéia da importância da praia num país que está todo "dentro d'água")



A praia aparece nos dois filmes, é o lugar onde essa nova totalidade social é imaginada: como uma massa indiferenciada e móvel (motorizada) divertindo-se num ritual nacional de férias. Do ponto de vista cinematográfico, a praia evoca a imagem de uma “margem”, onde o país acaba: uma espécie de limite, um espaço paradoxal e sem significação que permite que todos os outros espaços formem seus sistemas de significados. Daí porque, afirma Restivo, nestes filmes, a praia no feriado dá uma sensação de que estamos nos defrontando com um espetáculo sem sentido. O humor irônico presente nos dois filmes seria fruto desta sensação (6).



Indo Depressa, Mas Para Onde?

Michael Hardt e Antonio Negri explicam a trajetória da economia italiana no pós-guerra. Depois da Segunda Grande Guerra, a Itália ainda era uma sociedade de base camponesa (com tudo que isso carrega daquilo que estamos caracterizando acima como “velha” Itália, com seus valores morais e economia pré-industrial praticamente feudal). Nos anos 50 e 60, o país mergulha num processo de modernização e industrialização, ainda que incompleto. Hardt e Negri caracterizam esta fase como um primeiro milagre econômico. (na imagem ao lado temos uma metáfora da nova Itália, com suas auto-estradas, seus caminhos incertos e seus motoristas imprudentes)



Nos anos 70 e 80, a Itália passa por um segundo milagre econômico, mesmo que a industrialização correspondente ao primeiro milagre ainda não estivesse completa. Hardt e Negri afirmam que o caso italiano (assim como o brasileiro e o indiano) demonstra que a ausência de uma progressão entre uma primeira e uma segunda fase não é uma falha. “A economia italiana não completou um estágio (o da industrialização) antes de passar para o outro (o da informatização)”. Os estágios econômicos se fundem numa economia híbrida (7). (na imagem ao lado, Bruno na estrada com seu característico bom humor, que acaba evidenciando sua infantilidade)



Na opinião de Restivo, com a morte de Roberto no final, Aquele que Sabe Viver sugere que não é possível resolver o que ele vê como um impasse: não dá para colocar numa mesma pessoa a mobilidade (que caracteriza a modernização italiana) do carro de Bruno e a ética protestante do trabalho. Segundo a interpretação de Restivo, o filme aponta ao mesmo tempo para algo novo na sociedade italiana, mas também para um “trauma do novo”, porque esta sociedade ainda não estava articulada com a cultura da época. (como na imagem acima à direita, aqui mais uma metáfora do dilema da nova Itália: os valores tradicionais da família x a modernidade)



Em 1964, teria ocorrido um “vazio no simbólico”, representado por essa nova subjetividade ao mesmo tempo móvel (o carro, as novas rodovias) e com oferta de empregos. Hoje, sabemos nomear essa subjetividade com sendo pós-moderna (especialmente no sentido do termo que se articula com uma cultura do dinheiro e do consumismo). Foi em torno disso que todos os discursos competiram para definir esse novo italiano (8).


Uma conclusão pessimista, embora realista, da mensagem de Aquele que Sabe Viver em relação à sociedade italiana: uma construção social cheia de ultrapassagens proibidas, imprudências e adultos infantilizados e individualistas que se atiram velozmente na contramão (a imagem abaixo, juntamente com a primeira imagem do artigo, serviria como metáfora visual disso). Tentemos novamente... Tentemos ser mais otimistas, utilizando uma linguagem mais neutra:


Aquele que Sabe Viver deixava transparecer esse “novo” italiano indefinido e o trauma dessa indefinição. Por conta disso, o filme mostra a redefinição da nacionalidade italiana numa articulação entre o discurso e o espaço (as práticas que ocorrem nesse espaço). O neo-capitalismo (o novo capitalismo) nos confronta com dois fenômenos inter-relacionados que podemos visualizar neste filme: 1) a transformação do espaço (a construção de uma rede de auto-estradas e locais de lazer como balneários e shoppings); 2) a transformação da subjetividade em relação ao espaço (o que muda na visão de mundo das pessoas que vivem nesse novo espaço).


Leia Também:


Notas:

1. RESTIVO, Angelo. The Cinema of Economic Miracles. Visuality and Modernization in the Italian Art Film. Durham & London: Duke University Press, 2002. P. 56.
2. Idem, p. 57.
3. Ibidem, p. 181n18.
4. Ibidem, p. 59.
5. Ibidem, pp. 59-60.
6. Ibidem, pp. 79, 81 e 84.
7. HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império. Tradução Berilo Vargas. Rio de Janeiro: Editora Record, 3ª ed, 2001. Pp. 309-10.
8. RESTIVO, Angelo. Op. Cit., pp. 60-61. 


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