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Roberto Acioli de Oliveira

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18 de mai. de 2008

As Mulheres de Pier Paolo Pasolini (III)

Teorema (Epílogo)


O Sexo Liberta

Neste filme, Pasolini monta sua hipótese em torno da idéia de relação sexual. Através do sexo, cada membro da família conhecerá uma nova realidade, perceberá uma nova e mais autêntica noção de individualidade. Entretanto, é preciso compreender que em Teorema (1968) não é o sexo explícito com corpos belos o que interessa, mas a proposta de abraçar e incorporar o Outro (1).


Apesar da dessacralização geral que teve lugar na cultura ocidental na década de 60 do século 20, Pasolini acreditava que ainda pudesse existir gente humilde ligada ao potencial mágico de pequenos acontecimentos cotidianos. O cineasta percebeu uma descrença na sociedade italiana em relação aos milagres. Ele focava principalmente nos pequenos fazendeiros e/ou grupos marginais do sul do país, cuja relação com o sagrado, no entendimento do cineasta, ainda era intensa. Daí a opção por uma mulher pobre para o personagem da santa em Teorema. Emília é a empregada da rica família de Milão.


Antes mesmo dos anfitriões, foi a primeira a fazer sexo com o misterioso convidado. Ao contrário dos outros membros da família, ela não entra em crise, assimila a essência do convidado e até se torna uma entidade espiritual. Na função subalterna que desempenha está sua conexão com o sagrado e a alteridade (otherness) espiritual: é ao atender a porta que ela recebe do carteiro Angelino, o anjo, um telegrama. Através da empregada, o carteiro (como um “anjo do Senhor”) traz notícias divinas para a família “escolhida”.

Emília

Emília tem uma relação instintiva com o convidado. No jardim, enquanto varre as folhas secas, olha para ele e entre as pernas dele enquanto o convidado lê as obras completas de Rimbaud. Quando a cinza do cigarro cai na perna do convidado, Emília corre para limpar (imagem abaixo). Então ela corre para seu quarto, se olha no espelho, tira os brincos, toca as imagens de alguns santos e volta para ele. Mas Emília não toma atitude nenhuma e volta correndo para a cozinha. Tenta o suicídio inalando gás. O convidado vem correndo e salva Emília. Deitada, ela levanta a saia e oferece seu sexo para ele. Ele aceita.

O fato de Emília ter sido a primeira a transar com o convidado revela uma consciência mais intensa em relação ao sagrado. Ela se mantém em silêncio, não parece precisar falar de suas descobertas. Ao contrário dos membros da família burguesa, que verbalizam sua mudança. Do ponto de vista de Pasolini, o silêncio é autenticidade, enquanto a palavra não. Após descobrir que o convidado vai embora, cada familiar faz um monólogo para o convidado – como uma confissão. No caso de Emília, não existe monólogo, mas na versão impressa de Teorema sim, só que nesse caso é o convidado que fala por ela.


Em sua fala, intitulada “Cumplicidade entre o subproletariado e Deus”, é o próprio convidado que deixa claro que Emília é diferente dos outros. Que ela e ele compartilham um laço que não requer palavras. Da mesma forma que o mundo burguês rejeita seu status humilde, a realidade dela rejeita a retórica e a tagarelice que aqueles familiares utilizam para se definir. Então, as palavras do convidado...


“Depois de tudo,
nós falamos alguma vez? Nunca
trocamos palavras, como se os outros
tivessem uma consciência e você não.
Em vez disso, evidentemente, mesmo você,
pobre Emília, garota barata,
excluída e rejeitada pelo mundo,
você possui uma consciência.
Uma consciência sem palavras.
E uma, consequentemente, sem tagarelice.” (2)


Como no caso de Lúcia, a esposa do industrial burguês, e Odetta, a filha do casal, aqui Ryan-Scheutz também vai buscar na versão impressa de Teorema o complemento para informar a interpretação do filme. Embora o livro não possa responder pelo filme, afirma a autora, às vezes o texto escrito lança uma luz sobre o filme. Já que Pasolini não tinha um roteiro, utilizando os monólogos e algumas idéias para movimentos, locações e relacionamentos. Talvez, completa a autora, Pasolini tenha com isso procurado comunicar o poder do silêncio para alcançar o autoconhecimento (3).

O mundo de Emília é mudo, sinalizando uma vida mais pura e profunda do que aquela dos membros da família. A função de Emília agora não é mais servir a um único senhor (o industrial e sua família rica e privilegiada), mas as pessoas comuns (que estão caindo vítima das transformações culturais no mundo ocidental). É por esta razão que ela se enterra no final do filme. Emília é uma semente plantada no mesmo lugar onde a exploração capitalista se estabeleceu para construir um conjunto habitacional.


Com a utilização da montagem cinematográfica Pasolini confronta os feitos miraculosos de Emília com o destino traumático dos membros da família burguesa. Entre as imagens que mostram as tentativas frustradas de Pietro em vasculhar dentro de si em busca da melhor representação de seu encontro com o convidado, podemos ver o cabelo de Emília tornar-se verde pelas urtigas que ela decidiu passar a comer. Entre as imagens de Odetta catatônica podemos ver Emília curar a pele cheia de perebas de uma criança na frente de todos. Entre as imagens de Paolo se encaminhando para a estação ferroviária de Milão, despindo-se e passando a vagar pelo deserto, podemos ver Emília levitando (imagem no início do artigo) e depois sendo enterrada viva (acima).

O nome da empregada lembra o nome da região onde Pasolini nasceu: Emilia Romagna. Nesta cena (ao lado), no momento em que Emília pára no meio da estrada, podemos ver o símbolo comunista da foice e do martelo numa parede à direita da imagem (4). Ryan-Scheutz sugere que nesta caminhada Emília reforça a solidariedade entre o subproletariado e o sagrado. Enterrada, apenas seus olhos podem ser vistos. Deles saem as lágrimas que irão nutrir a terra. Na versão impressa, Pasolini apresenta outro milagre de Emília. Percebendo esta pequena fonte de água, um grupo de trabalhadores a utiliza para lavar o ferimento ensangüentado de um companheiro.

Possuindo a capacidade de perceber o sagrado mesmo nesse ambiente industrial, eles se colocam de pé em profundo silêncio antes de cantar louvores. Sua existência não-verbal lembra a de Emília, que alimenta o povo com suas lágrimas (5). Existe um alinhamento aqui entre Emília e a capacidade de visão assim como o específico ato de olhar dos santos e santas. A versão impressa mostra outra fala do convidado remetendo a este ponto:




“Você será a única a saber, quando eu partir, que não voltarei mais, e me procurará onde deveria me procurar: você não irá olhar na rua por onde eu irei e desaparecerei, e que todos os outros, por outro lado, verão, estupefatos, como se pela primeira vez, cheios de um novo sentido, em toda sua riqueza e feiúra, emergir em suas consciências”. (6)



O Final de Teorema

Talvez não seja por acaso que Pasolini justapôs Emília e Paolo nas cenas finais de Teorema. Ela representando uma conexão autêntica com o sagrado. Ele representando a quintessência do estilo de vida burguês que nega a vida. Mas talvez ele tenha uma chance, caso consiga despir-se das mentiras que aceitou e reproduziu. Afinal talvez Pasolini aposte algumas fichas também no homem como parte efetiva na procriação, ou afirmação, de uma vida mais autêntica.

Nas muitas brigas que o jovem Pasolini presenciara entre seus pais, ele sempre ficava do lado da mãe. Acabou por identificar a figura paterna com uma mistura de arrogância e ignorância. Sendo sua mãe de origem humilde e o fato de que o pai de Pasolini fosse de origem nobre, embora já estivesse falido quando se casou com sua mãe, talvez tenha algo a ver com isso também. O próprio Pasolini admitiu que essa rejeição que desenvolveu em relação ao pai tinha relação com a dependência que desenvolveu em relação à mãe. Entretanto, apenas após a morte do pai Pasolini foi capaz de refletir a esse respeito (7).

* * *

Enquanto Emília vai sendo enterrada por uma ajudante (que é interpretada pela mãe de Pasolini), o cineasta corta a imagem para Paolo nu. Ele renuncia a sua identidade logocêntrica (paterfamilias) e vai para o deserto até abrir os braços e gritar. Então o filme acaba. Experimentamos uma sensação estranha no fim, pois o grito continua invadindo uma tela preta. Seria essa tela, apesar de preta, um espelho apontado em nossa direção?

Na opinião de Ryan-Scheutz, essa volta às origens, ao ponto de não-codificação, é o equivalente de uma morte metafórica – sensação aumentada pela trilha sonora com o Réquiem de Mozart. Ryan-Scheutz propõe duas interpretações para esse final, um final fechado e outro aberto. No final fechado, o pai é uma criatura vazia. Não tem nada para dar ou receber no terreno árido que representa sua existência. Ele é como uma pequena mancha numa grande terra desolada e está destinado a ser consumido e morrer. No final aberto, que constitui também uma visão mais positiva, a nudez de Paolo e seu grito gutural sugerem um retorno à infância – ou pelo menos a um ponto na vida onde ainda existia esperança e possibilidades. A atitude final de Paolo representaria o sentimento de solidão nos tempos modernos para aqueles que optam por uma existência autêntica. (imagem abaixo)

“Consequentemente, de todos os membros da família, a reação de Paolo a seu encontro com o convidado – sua despedida da civilização e perda de suas funções – quase reflete o gesto de sacrifício do santo. Isto é, mergulhando nas origens espirituais da humanidade, despido dos códigos que o definiam previamente, ele experimentou a solidão de uma existência autêntica no mundo moderno”. (8)

Notas:

Leia Também:

Ettore Scola e o Milagre em Roma
Ettore Scola e o Filme Dentro do Filme
Mussolini e a Sombra de Auschwitz

1. RYAN-SCHEUTZ, Colleen. Sex, the Self, and the Sacred. Women in the Cinema of Pier Paolo Pasolini. Toronto: University of Toronto Press, 2007. P. 152.
2. Idem. Pp. 153-4. A ênfase no texto foi adicionada por Collen Ryan-Scheutz.
3. Ibidem, p. 154.
4. Aqui Collen Ryan-Scheutz comete um deslize. Segundo ela, a marca comunista está pintada no trator (que ela chama de “máquina”, o que já demonstra desconhecimento do conteúdo da imagem) que está ao lado de um buraco já existente onde Emília pretende que sua acompanhante a enterre. Entretanto, quem tiver acesso ao filme perceberá que este símbolo está pintado em preto numa parede, como já expliquei. Infelizmente, não é incomum encontrar erros dessa natureza nos livros (muito caros) que analisam filmes. Em minha opinião, erros como este podem colocar em dúvida todo o trabalho desse livro, já que sugerem que a autora simplesmente NÃO VIU O FILME! Ou talvez estivesse preocupada demais com a pipoca e deixou a cargo de alguma companhia, entediada demais para prestar atenção na imagem, que lhe dissesse o que aconteceu. Quem sabe uma criança, que desconheceria que aquela “máquina” tem um nome. Ou talvez rex, o cachorro. Ou mimi, a gata. A outra hipótese é que a cópia em dvd que eu assisti esteja adulterada. Neste caso, resta saber se a responsável é a distribuidora no Brasil, ou se a imagem já teria sido censurada no lançamento original estrangeiro que a distribuidora brasileira copiou.
5. RYAN-SCHEUTZ, Collen. Op. Cit., p. 257n52.
6. Ibidem, p. 156. A ênfase no texto foi adicionada por Collen Ryan-Scheutz.
7. Ibidem, p.232n9.
8. Ibidem, p. 157.

15 de mai. de 2008

As Mulheres de Pier Paolo Pasolini (II)

Teorema (II)


A Burguesia e o Autoconhecimento

Em Teorema (1968) (1), Pasolini focaliza uma família burguesa italiana em 1968. Neste ano, a juventude européia estava nas ruas protestando contra o sistema. Entretanto, como nota Colleen Ryan-Scheutz, os dois filhos do casal não participam dos protestos. Sua turbulência é interna. A partir da visita de um misterioso convidado, Pietro (abaixo, à direita) e Odetta (ao lado) tomam diferentes caminhos para o autoconhecimento. Ele, obediente, procura expressar-se através da arte. Ela, rebelde, gradualmente retira-se para dentro de si mesma.


Eles pertencem a uma rica família vivendo na cidade italiana de Milão. Paolo (o pai), Lúcia (a mãe), Pietro (o irmão) e Emília (a empregada) são os outros habitantes dessa mansão. Odetta nutre uma idolatria pelo pai. Os cinco membros da família nunca se dirigem uns para os outros. Todos se relacionam com o convidado. O que aconteceria se um convidado com uma natureza divina entrasse em suas vidas, fizesse sexo com cada um separadamente, e desaparecesse dois ou três dias depois? Na opinião de Pasolini, cada um deles experimentaria uma crise profundamente destrutiva, mas também compensatória até certo ponto (2).

A empregada torna-se uma santa de cidade pequena. A mãe, um autômato sexual. O filho, um pintor frustrado. O pai, um filantropo nômade. A filha, um peso morto. Odetta entra num estado catatônico, renunciando ao mundo.

Odetta

Comparada com a imagem de sua mãe, sempre bem vestida e penteada, Odetta mostra a criança que ainda é. Sem maquiagem, rabo de cavalo no cabelo, uniforme escolar (no começo do filme) ou um vestido muito discreto, Odetta é a imagem da criança despojada e sem preocupações estéticas. Com olhos grandes e penetrantes, corre aos trotes quando está ansiosa por chegar.

Como no início do filme, quando é importunada por um admirador que tenta puxar os livros que ela traz apertado em seu peito. Com uma frase típica de colegial inexperiente, ela responde ao rapaz com um “eu não gosto de garotos”. Podemos ver que é um álbum que ela guarda com tanto zelo, lá dentro uma grande fotografia de seu pai. Outras vezes, podemos ver Odetta sentada no chão de seu quarto remexendo num baú cheio de brinquedos como se fosse um tesouro enterrado.

O jeito de menina ingênua de Odetta sugere que ela seria capaz de uma existência autêntica em alguma medida, mas sua relação com a autenticidade (no sentido pasoliniano) se mantém indireta e profundamente problemática por conta da influência opressiva de sua família e de sua classe social. Pasolini mostra esse estado de coisas através do jeito preocupado que ela esboça o tempo todo. Como ele escreve no texto de Teorema que serviu de base para o filme: “Ela é extremamente doce e preocupada, pobre Odetta, com uma testa que parece uma caixa cheia de inteligência dolorosa, ou particularmente, conhecimento” (3).










Odetta seria vítima do Complexo de Eletra (4). Presa no papel de “boa filha”, a “menina” de Lúcia e Paolo não possui uma imagem própria, senão aquela informada pelo olhar de um macho (o pai) (acima, à esquerda), que informa sua relação com o mundo a partir de um discurso patriarcal. A autoridade masculina e os códigos burgueses restringem a existência de Odetta, que não tem voz ou personalidade. O vazio de Odetta é informado pela falta de uma imagem materna, já que Lúcia é vítima do mesmo estado patriarcal e burguês. Como é evidente na maioria dos casos, a presença física dos membros dessa família sob o mesmo teto não supre a ausência de uns na vida dos outros. Lúcia vive seu próprio dilema espiritual, o que torna sua presença simbólica fraca diante de Odetta, tornando a filha mais dependente do pai.

Pasolini cria um triângulo entre Odetta, o convidado (que também preenche o vácuo deixado pela ausência Lúcia) e o pai. Odetta começa a tornar-se consciente de sua personalidade. Quando Paolo cai doente, o triângulo se solidifica. Através dessa divindade esotérica e mística que é o convidado, Odetta começa a perceber tanto seu interesse nele quanto as dimensões míticas que ela atribui ao pai até esse instante. Paolo fica doente e o convidado cuida dele sob o olhar dela. A devoção cega de Odetta pelo pai muda. Ela abandona sua adoração por ele e passa a estudá-lo, tornando-se consciente das fraquezas e mortalidade de Paolo. Enquanto seu pai está convalescente no jardim em companhia do convidado, Odetta fotografa os dois. Antes ela fotografava apenas o pai, mas agora ela descobre o corpo do convidado.

Essa de a nova realidade que o convidado representa. Odetta tira o convidado de perto de seu pai, puxando-o para o quarto dela. Sentada no chão, entre as pernas scoberta faz com que ela perca o controle ao abrir-se para receberdele, que está logo acima dela, sentado na cama. Odetta mostra seu álbum de família (comparando o passado e o futuro). De repente ela olha para cima na direção do rosto dele. Ela consente o sexo.

Para Pasolini, o sexo constitui uma das formas mais genuínas de auto-expressão e interação humana. Instintivo, ele transcende o poder da autoridade moral e dos códigos sociais. A união sexual de Odetta com o convidado levou a uma maior consciência dela e aceitação de uma personalidade mais autêntica.

O mesmo sentimento sensual que subjugou os outros membros da família captura Odetta também. Isso é evidente na forma como ela fotografou e analisou as imagens do pai e do convidado (depois que já havia transado com ele). No caso pai ela só olha. No caso do convidado, Odetta observa demoradamente o rosto, seus ombros, seu tórax e sua pélvis (5).

Como no caso dos outros habitantes daquela família, ao saber que o convidado vai embora Odetta faz o seu monólogo para ele. Ela explica como veio a conhecer uma essência pura e sagrada em sua vida. Afirma que através do contato físico com ele encontrou a solução para seu dilema. Odetta livrou-se de seu medo de infância em relação aos homens, assim como de perder seu pai. Ryan-Scheutz nos mostra algo da fala de Odetta como Pasolini escreveu no livro: “Você me ajudou a encontrar a solução correta, a abençoada solução para minha alma e minha sexualidade”.(...)”A miraculosa presença de seu corpo (que contém um espírito tão grandioso) de jovem macho e pai, liberou meu selvagem e perigoso medo de menina”. Agora o monólogo completo de Odetta no filme:

“Nosso encontro fez de mim uma garota normal. Finalmente, encontrei uma solução para a minha vida. Antes, eu não conhecia os homens. Tinha medo deles. Só amava meu pai. Mas agora, partindo, não só me atira para frente, mas me faz seguir adiante. Era isto que queria? Agora a dor de perder você provocará em mim uma nova queda mais perigosa do que o mal que havia dentro de mim antes da minha breve cura devido à sua presença. Eu nunca havia conhecido esse mal, mas agora sim. Através do bem que você me fez, me conscientizei do meu mal. Como poderei substituir você? Talvez exista alguém. Acho que não poderei mais viver”. (6)

Tendo como opção sua realidade burguesa, Odetta gradualmente se retira de sua função de filha. Depois que o convidado vai embora, ela revisita os lugares da casa onde ele esteve e pensa sobre sua ausência (ela chega a medir as distancias com uma régua). Odetta olha para a rua pela grade do portão. No roteiro Pasolini descreve a rua como o vazio mais doloroso e ofensivo, embora ainda assim uma realidade mais normal que nunca. Agora Odetta sabe que uma ausência indica uma presença. Ela percebe que o vazio aponta para a realização de algo que o preencha, e que a identidade profana da família burguesa sinaliza as possibilidades autênticas que se encontram para além dessa família (7).

Odetta volta para o quarto e pega o álbum de fotografias em seu baú de brinquedos de infância. Agora, além das fotos de seu pai, temos as fotos do convidado que ela tirou no jardim quando ele estava junto de seu pai convalescente. Ela toca o corpo dele nas imagens com o dedo. Quando ela chega à pélvis dele (em seu sexo), Odetta fecha o punho, deita-se na cama e não levanta mais. Ela escolhe uma identidade de ausência do mundo burguês de forma a existir como indivíduo. Ryan-Scheutz cita Maurizio Viano, outro conhecedor do trabalho de Pasolini:

“Após seu encontro com a paixão, Odetta encontra sua força de vontade, a força de vontade para rejeitar o texto que não permite que ela tenha uma imagem própria. Portanto Odetta não cai passivamente presa de um ataque catatônico. Ela escolhe o departamento psiquiátrico, porque ela agora prefere incorporar a loucura a ser um apêndice do Pai. Por conseguinte, ela se faz ausente, recusando emprestar seu corpo novamente para um texto que não possui um lugar real para ela”. (8)

A jornada de Odetta ao autoconhecimento através do encontro com o convidado combina o sexual e o espiritual, o instintivo e o intelectual. Sexo, em Teorema, é a última esperança da humanidade por autenticidade. Através do convidado, afirma Pasolini, cada um passou a conhecer alternativas à tendência predominante. De fato, lembra Ryan-Scheutz, essa passagem do indivíduo para fora é o elo perdido no teorema de Pasolini.

“No caso específico da família burguesa, cada membro é muito fraco ou inseguro para verdadeiramente agarrar a diversidade e o não conformismo, conectando-os enquanto uma força central em suas vidas. Apenas a empregada, Emília, que vem da camada trabalhadora mais humilde, tem capacidade de transformar seu encontro num evento comunal e unificador. Ao contrário, após a partida do convidado, a unidade familiar se desintegra na disfunção e alienação. Um depois do outro, cada membro da família trilha um caminho solitário em direção ao fim”. (9)


Como Odetta, talvez Paolo, o pai, também tenha optado por um afastamento radical em relação à família. Enquanto ela tirou sua máscara, ele tirou suas roupas. Inicialmente, como fez Lúcia, Paolo também vai procurar um substituto para o convidado que se foi. É o início da cena final do filme quando ele procura um garoto de programa na estação de trem de Milão. Neste momento, uma criança muito nova esbarra nele. Isso o faz mudar de rumo em direção a uma profunda mudança. De repente deixa cair sua identidade literalmente tirando a roupa no meio da estação. Ele se retira da sociedade e caminha para o deserto nu (ao lado, abaixo).



“Paolo se despe e abandona a sociedade para vagar no deserto, símbolo de uma sociedade árida e de um vazio espiritual. Alternativamente, a mãe ficará na sociedade, como o filho, Pietro, apesar de suas similaridades com Odetta. Pietro não consegue internalizar, e na possui uma visão clara do convidado ou da personalidade [do seu eu]. É por essa razão que ele não consegue reproduzi-los na tela e nem mesmo em sua mente o suficiente para imaginá-los. A experiência o confundiu, enquanto clarificou as coisas para a menina, sua irmã. A empregada, Emília, não apenas fica em sociedade, mas literalmente se enterra nela, desejando regenerar raízes puras, simples e autênticas no meio da Milão industrial”. (10)

É como se através da filha o pai que inibia o nascimento dela renascesse para si mesmo. Pasolini sugere que a determinação pessoal da filha permitiu que ela resistisse à opressão cultural. Apesar de parecer que a catatonia significa que Odetta não consegue se libertar, paradoxalmente sua liberdade consiste em fechar-se para o mundo profanado em torno de si: a “saída” de Odetta mostra que a revolução deve enraizar-se no indivíduo antes que possa tomar forma na sociedade. Ao contrário de concluir que seu olhar fixado no teto do quarto e seu punho cerrado significam que ela não conseguiu captar sua essência, essa paralisia prova que ela a percebe profundamente. Inclusive que, apesar do preço de perder seu lugar na sociedade, ela resolveu não deixar essa essência escapar. Odetta se torna um Outro como o convidado – uma desviante sem lugar na sociedade.


“No final, Odetta desaparece da sociedade tão misteriosamente quanto o convidado, provando a inabilidade da sociedade burguesa em aceitar ou receber, de uma forma durável ou significante, a ‘diversidade encarnada’. No nível cívico, a partida de Odetta tem ramificações lúcidas se interpretada como a morte de uma nova e esperançosa dimensão familiar. Contudo, se sua morte simbólica leva a uma nova vida no pai, há esperança de que a sociedade mais ampla possa se restaurar com maior consciência do (e contato nu com o) sagrado”. (11)


Notas:

Leia Também:

Ettore Scola e o Milagre em Roma
Ettore Scola e o Filme Dentro do Filme
Mussolini e a Sombra de Auschwitz

1. Lançado em dvd no Brasil pela Versátil Home Vídeo em 2003.
2. RYAN-SCHEUTZ, Colleen. Sex, the Self, and the Sacred. Women in the Cinema of Pier Paolo Pasolini. Toronto: University of Toronto Press, 2007. Pp. 107-8.
3. Idem, p. 248n13.
4. Ibidem, p. 109. O equivalente feminino do Complexo de Édipo é o Complexo de Eletra. Freud afirmava que as crianças são sujeitas ao desejo sexual e que o objeto desse desejo freqüentemente são os próprios pais. Além do complexo de Édipo, em que o filho deseja sexualmente a mãe (Na tragédia grega desse nome, Édipo se casa com sua mãe, sem o saber), Freud admitiu também o Complexo de Eletra, como a inveja que a menina tem do pênis do menino, e chamou a criança de um "perverso polimorfo". Assim, no complexo de Édipo temos o apego erótico do filho pela mãe, com o desenvolvimento paralelo de ódio pelo pai. Enquanto no complexo de Eletra, a filha encontra na mãe uma rival que compete com ela na disputa das simpatias do pai. A lenda grega onde Freud se baseou é a de Eletra e seu irmão Orestes, filhos de Agamêmnon e Clitemnestra. Eletra ajudou o irmão a matar sua mãe e o amante dela, um tema da tragédia grega abordado, como pequenas variações, por Sófocles, Eurípedes e Ésquilo.
5. Ibidem, pp. 110-1.
6. Retirado do dvd de Teorema (ver nota 1).
7. RYAN-SCHEUTZ, Colleen. Op. Cit., p. 112.
8. VIANO, Maurizio. A Certain Realism: Making Use of Pasolini’s Theory and Practice (1993) IN RYAN-SCHEUTZ, Colleen. Op. Cit., p. 113.
9. RYAN-SCHEUTZ, Colleen. Op. Cit., p. 114.
10. Idem, p. 249n27.
11. Ibidem, p. 115.

7 de mai. de 2008

As Mulheres de Pier Paolo Pasolini (I)

Teorema (I)


“Eu sei muito bem
o quanto contraditório
alguém tem de ser para
ser verdadeiramente
consistente”


Pier Paolo Pasolini



Um Filme Onde a Burguesia Não Tem Chance

Foi em Teorema (1968)(1) a primeira vez que Pasolini apresentou uma personagem feminina que faz sexo fora do casamento por razões outras que não a prostituição. Foi também a primeira vez que Pasolini filmou a tão detestada burguesia: “Até o momento, eu nunca tinha feito isso, porque de fato não suportaria ter de conviver com essas pessoas por meses a fio”. O cineasta desenvolve a noção das virtudes secretas de uma mulher através de algumas ações simbólicas que giram em torno do sexo. Lúcia rejeita seu papel como esposa dócil recusando o sexo conjugal e afirmando seu ego através de casos extraconjugais – primeiramente com o convidado da família, depois com substitutos que encontra pela rua.

O enredo do filme gira em torno de um misterioso jovem de extraordinária beleza que é o convidado de uma família rica italiana por um breve período – segundo alguns interpretes, ele seria Deus, para outros, um anjo (imagem acima). Terence Stamp, convidado para fazer o papel, chegou a ficar confuso com as explicações de Pasolini sobre seu personagem. Disse que ele não era Cristo, era um visitante do Velho Testamento e não do Novo. Stamp ignorava o que Pasolini queria dizer. Pediu ajuda a Silvana Mangano, a atriz italiana que faria o papel de Lúcia, a esposa do industrial (ao lado). Ela explicou que ele seria um rapaz com uma natureza divina (2).

Ele semeia tal confusão que todos os membros da família, incluindo a empregada, têm suas vidas completamente questionadas. Depois ele vai embora. Segundo Pasolini, e também segundo Paolo (o esposo de Lúcia), ele “veio para destruir”. Entretanto, o marido, que também caiu nas graças do convidado, refere-se aqui à capacidade do forasteiro de destruir os valores falsos que faziam de sua vida uma mentira. O convidado tira as pessoas de suas órbitas costumeiras, despertando energias e emoções que eles não suspeitavam existir.

O filme de Pasolini examina a influência do sagrado no cotidiano da burguesia (3). O sagrado ou, mais exatamente, a falta dele no mundo burguês focado na cultura do dinheiro. Encontramos também o tema dos pais contra os filhos, recorrente em toda sua obra (4). A intenção era mostrar que a sociedade industrial formou-se em oposição total aos camponeses. Burguesia que se articulava com uma Igreja que institucionalizou o sagrado, o qual também foi profanado pelo poder e substituído pela ideologia materialista do bem-estar. A dimensão do sagrado que ainda não tinha sido corrompida, afirmava Pasolini, encontrava seu campo fértil entre os mesmos camponeses que aos poucos estavam sendo transformados em burgueses (5). Talvez não seja por acaso que a única personagem que parece estar em sintonia com a presença do estranho convidado é Emília, a empregada. Na concepção de Pasolini, apenas essas pessoas simples seriam capazes de perceber a vida para além do poder e do dinheiro.

“Assim, em Teorema a aparição de Deus provoca nos burgueses casos de consciência enquanto que na empregada de origem camponesa, a epifania produzia um caso miraculoso. Para o mundo burguês – capitalista ou comunista – que substituíra a alma pela consciência, Pasolini não via salvação. O filme termina com o grito primal do industrial [Paolo] no deserto, imagem evocadora, na visão de um desiludido marxista, do impasse atual do neocapitalismo”. (6)

Não podemos esquecer também de lembrar que Teorema foi um desses filmes em que Pasolini fez questão de não tornar mais fácil a interpretação do espectador. Sua intenção seria distanciar-se dos produtos da sociedade do espetáculo, reconhecíveis pelo caráter pouco profundo ou de compreensão instantânea (7). Produtos que não respeitam a capacidade do pensamento, tornando as pessoas intelectualmente indolentes, com preguiça de pensar ou elaborar um raciocínio mais complexo que não tema confrontar-se com abstrações.

Lúcia

“(...) Sexo em Teorema significa a última esperança
da humanidade por autenticidade”

Coleen Ryan-Scheutz

Lúcia é uma típica mulher da burguesia italiana. Bem de vida, casada com um industrial, dois filhos e uma casa grande e bem servida. Representante da mulher moderna de seu tempo, mas reprimida e enfraquecida por uma falta de autoconsciência e liberdade social. Não aparenta ter uma ocupação formal e está sempre bem vestida, maquiada e com corte elegante no cabelo.

Violando os códigos morais do casamento, Lúcia consegue alcançar uma compreensão maior a respeito de si e seu papel na sociedade. Ela desafia as diretivas prescritas por esta sociedade direcionando sua busca a partir de um comportamento sexual transgressor. Primeiro ela lê o livro do convidado, depois analisa a roupa dele, e então oferece seu próprio corpo.


Quando a câmera olha para ele, do ponto de vista de Lúcia, como ela vemos uma luz do sol vindo por traz como uma aura (imagem acima). Tempos depois, quando ele diz que vai embora, a família toda entra em crise. Com a perspectiva de voltar a sua vida vazia, Lúcia fala da falta de interesses e desejos reais num monólogo (imagem abaixo, à direita):

“Percebo agora que nunca tive qualquer interesse real em nada. Não quero dizer grandes interesses, mas até pequenos interesses naturais como o que meu marido tem por sua fábrica, de meu filho por seu trabalho escolar, ou de [minha filha] Odetta pela família. Eu nada (8). E não sei como entender como pude viver nesse vazio; apesar disso eu vivi. Se alguma vez eu tive um pouco de amor instintivo pela vida, ele secou... como um jardim... que ninguém visita. Na realidade, esse vazio estava cheio de valores pobres e falsos, originados de uma horrenda acumulação de idéias erradas. Agora eu vejo isso. Você preencheu minha vida com um interesse real e total. De modo que partindo você não está destruindo nada que fosse parte de mim antes, a não ser a reputação de ser uma burguesa casta... quem se importa! Contudo, partindo você destrói na verdade tudo que deu para mim, amor dentro do vazio de minha vida”. (9)

Lúcia vê a si mesma como um nada: “eu nada” (io nulla). Collen Ryan-Scheutz nota, entretanto, como essa afirmação pode conter um efeito contraditório. Quando ela diz “Eu nada”, ela está afirmando um “Eu”. Se ela diz “eu”, ela existe como enquanto sujeito. Ao mesmo tempo, se dizer “eu” significa “adotar uma posição sexualizada” e “identificar-se com os atributos socialmente designados como apropriados para as mulheres”, então sua existência, sugere Pasolini, é uma não-existência (10). Em algum nível, entretanto, Lúcia parece aliviada por perceber esse vácuo e finalmente enxergar a verdade. É como se, ao reduzir-se a nada, ela pudesse identificar a semente genuína de sua individualidade. A partir de dentro desse vazio ou estado de não-ser, talvez ela possa recuperar uma dimensão genuína de sua vida. O convidado será aquele que incitará em Lúcia essa auto-reflexão e fará com que ela perceba seu primeiro interesse real: o Outro, o misterioso, o sagrado. Para Pasolini, essa nova consciência é mais poderosa que todos os interesses do resto da família juntos. O desafio de Lúcia será preservar este novo estado depois que o convidado se for.

Finalmente Lúcia se vê não apenas em função de sua família, mas também em relação à sociedade como um todo. Sua fala anterior mostra que ela percebe que seu status como “burguesa casta”, construído sobre uma “horrenda acumulação de idéias erradas” lhe é imposto pela sociedade, que condicionava sua noção de individualidade. Mas como poderia, nos perguntamos com Ryan-Scheutz, esse potencial recém nascido sobreviver num mundo que impõe falsos valores? O monólogo de Lúcia é maior na versão impressa do texto de Teorema. No filme, Pasolini deixa que os rostos dos personagens e as vizinhanças expressem uma tese “horrenda”. No trecho que segue, e que não aparece no filme, ela utiliza muitas vezes o adjetivo “horrendo” para designar seu dilema espiritual: é como se em seu vazio Lúcia personificasse os falsos valores da cultura dominante. Então, ela diz:

“Todas as crenças erradas com que uma mulher burguesa vive: As horrendas convenções, o horrendo senso de humor, os horrendos princípios, as horrendas obrigações, as horrendas graças, a horrenda democracia, o horrendo anticomunismo, o horrendo fascismo, a horrenda objetividade, o horrendo sorriso. Ah, como eu me conheço bem, você dirá. É uma consciência que eu adquiri magicamente – e minha fala é como o monólogo de um personagem numa tragédia!“.(11)

Esse “universo horrendo” seria uma metáfora para “sociedades neo-capitalistas”, cujo materialismo e hegemonia retiraram da humanidade suas características genuínas, belezas e prazeres. De acordo com o crítico Giancarlo Ferreti, essa visão de um mundo natural e imóvel é típica da burguesia industrial enquanto um grupo de pessoas doentes que corrompe toda civilização antiga e contamina seus oponentes até que todo o mundo seja igual a ela, exceto alguns bolsões precários e transitórios que são mais inertes do que resistentes (12).

As escapadas sexuais de Lúcia expõem uma mulher solitária que com este ato resiste contra seu eu casto e burguês. Como sua filha Odetta, que renuncia a seu falso eu e passa a um estado de catatonia, o monólogo de Lúcia marca o esvaziamento de seu eu para resistir à codificação pelo “universo horrendo”. Contudo, Lúcia não consegue encontrar um substituto para a presença do convidado que não está mais lá. Suas aventuras sexuais com rapazes jovens não a levam a encontrar alguém cujo mundo ainda não esteja condicionado e adulterado. Ela começa a desmoronar. Física e emocionalmente perdida, seu estado é claramente traduzido quando ela pergunta a um desses garotos: “Como eu volto para Milão?” Sugestiva para um debate a respeito das críticas de Pasolini à política italiana é a resposta de um deles: "À esquerda e depois à direita".

Mas antes de voltar, Lúcia havia ido com ele e seu amigo até um campo próximo à estrada. Lá se aproximaram de uma velha igreja. Ela transa num buraco na terra do lado de fora do prédio sagrado. É curioso notar que no final do filme, Emília, a empregada que virou santa, também procura um buraco na terra para enterrar-se. Esse buraco não fica próximo de uma igreja, mas havia lá uma parede ostentando o símbolo comunista da foice cruzada com o martelo. Emília não pretendia se enterrar para morrer, mas para chorar. De suas lágrimas brotaria uma fonte de água. Aparentemente, o buraco que Lúcia encontrou não a levou à redenção. Na volta para Milão, retorna à mesma igreja. Quando entra, um raio de luz surge por trás como quando fez sexo com o convidado (imagem acima, à esquerda).

Na verdade, conclui Ryan-Scheutz, Lúcia caminhando dentro da igreja vai em direção ao seu eu da única forma possível na ausência da presença física do convidado. Se esse for o caso, aquele lugar de orações faz o papel de um útero escuro, fechado, onde ela pode se refugiar e se proteger das influências exteriores que a tornam vazia – um lugar onde ela pode começar a encontrar seu eu e preenchê-lo (13).

Como o peregrino de Dante, que desceu ao inferno antes de encontrar o caminho da redenção, Lúcia chega ao ponto mais baixo de sua existência através de atos casuais e aleatórios de sexo e um desorientado nível de rebelião. Procurando duplicar a realidade “pura” e instintiva que encontrou com o convidado, Lúcia só encontra o “estado horrendo” de sua existência. Por esta razão, afirma Ryan-Scheutz, seu pecado da carne é autêntico, constituindo um importante precursor, dentro do contexto do cinema de Pasolini, às falas e atos sexuais que iremos encontrar nos filmes que compõem a futura Trilogia da Vida (14).

Notas:

Leia também:

As Mulheres de Luis Buñuel
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Ettore Scola e o Filme Dentro do Filme
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1. Lançado em dvd no Brasil pela Versátil Home Vídeo em 2003.
2. NAZÁRIO, Luiz. Todos os Corpos de Pasolini. São Paulo: Perspectiva, 2007. Pp. 63-4.
3. SCHWENK, Bernhart; SEMFF, Michael (eds.). P.P.P. - Pier Paolo Pasolini and Death. Ostfildern-Ruit, Germany: Hatje Cantz Verlag, 2005. P. 195. Catálogo de exposição.
4. AMOROSO, Maria Betânia. Pier Paolo Pasolini. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. P. 78.
5. NAZÁRIO, Luiz. Op. Cit., p. 63.
6. Idem, p. 65.
7. AMOROSO, Maria Betânia. Op. Cit.
8. No filme de Pasolini, escutamos ela dizer: Io nulla. Na legenda do dvd lemos: “Eu? Nada”. No livro de Collen Ryan-Scheutz (ver nota seguinte), o texto nos dá a frase: “Eu nunca tive nada”. Como em sua fala no filme Lúcia não parece utilizar a entonação de uma pergunta, conclui que a tradução mais exata é simplesmente: “Eu nada”.
9. RYAN-SCHEUTZ, Colleen. Sex, the Self, and the Sacred. Women in the Cinema of Pier Paolo Pasolini. Toronto: University of Toronto Press, 2007. P. 168.
10. Idem, p. 169.
11. Ibidem, p. 170.
12. Ibidem.
13. Ibidem, p. 172.
14. Ibidem.

3 de mai. de 2008

As Mulheres de Federico Fellini (I)


“A vida é sonho”


Muitas são as mães, as prostitutas, as esposas, as freiras, as tias, as irmãs e as primas - por vezes muito reais, por vezes caricatas demais. A “mulher italiana” de Fellini é a mulher que vive em seus sonhos. Assistindo aos filmes que Fellini dirigiu, alguns se perguntam se ele compreendeu as mulheres. Resta perceber se ele só conseguia percebê-las a partir de estereótipos, ou se ele não conseguiu ultrapassar uma cortina de fumaça de estereótipos atrás dos quais elas se escondem. Na dúvida, resta falar sobre elas, labirintos do homem.

“A vida é sonho”, diz para Wanda a autora de O Xeique Branco, fotonovela em torno da qual gira Abismo de um Sonho (Lo Sceicco Bianco, 1952) – filme em que Fellini fez uma crítica ao mundo do entretenimento. Wanda e seu marido Ivan vão à Roma para passar a lua-de-mel e conhecer o Papa. Secretamente, Wanda sai em busca do único capaz de preencher o vazio de sua vida: é o Sheik Branco, personagem de uma fotonovela. Sua busca é um desastre e Wanda acaba tentando suicídio. O marido, se sentido traído e abandonado, procura sua esposa por toda a cidade. À noite, acaba topando com Cabíria, a prostituta que retornará em outro filme de Fellini – As Noites de Cabíria.

“Cabíria reage à dor de Ivan, chamando sua atenção para o engolidor de fogo. Essa capacidade de renascer das próprias cinzas, de encarar o futuro com uma esperança que é imorredoura, é o forte da personagem. Em As Noites de Cabíria, lançada ao solo, ela toca a terra para renascer. Em Abismo de um Sonho, Ivã não olha para o chão, mas para o céu estrelado, em busca de redenção.”(…)”A caminho da audiência com o papa, Wanda diz a Ivã que ele é o seu sheik branco . Uma nuvem passa no olhar do ator Leopoldo Trieste. Satisfazer à necessidade de sonho de Wanda talvez seja a maldição desse pequeno burguês um pouco ridículo”. (1)

A Estrada da Vida (La Strada, 1954) apresenta Gelsomina, uma mulher introvertida e carente, que não larga um homem grosseiro e insensível. Em As Noites de Cabíria (Le Notti di Cabiria, 1957), a prostituta Cabíria é uma solitária que acredita no amor e sempre se arrepende quando se deixa seduzir – todos os homens a decepcionam. É como se Fellini estivesse sugerindo que não existe possibilidade de outro comportamento entre homem e mulher que não seja aquele da desconfiança mútua: faça com ele antes que façam com você. Caso um dos dois acredite nas palavras do outro, caso seja compreensivo (a) ou afetivo (a), tudo que receberá é um chute no estômago – e no coração. (abaixo: à esquerda Gelsomina; à direita A Doce Vida)


 

Em filmes como Julieta dos Espíritos (Giuletta Degli Spirit, 1965), temos dois pontos extremos. Susy é liberada sexualmente e expansiva, uma projeção viva da libido reprimida de Julieta, que é contida e reprimida sexualmente . Julieta é tão reprimida que só consegue ouvir os outros quando são vozes (supostamente espíritos, supostamente seu inconsciente) que ela não pode evitar. Julieta vive um casamento de aparências. De fato, ela até toma a iniciativa de procurar um detetive para descobrir sobre a amante do marido, o que mostra que ela não estaria totalmente desconectada do mundo real. Mas o que a reprime realmente é seu medo de ser feliz.

Cabíria sempre tenta ser feliz, mas é punida pela realidade de seu azar. Julieta não consegue ser feliz consigo mesma. No final de Noites de Cabíria, a protagonista emerge de mais uma desilusão para continuar tentando. Na cena final, Cabíria caminha pela estrada, que também é a estrada de sua vida. Um grupo de jovens muito alegres passa por ela, que está com lágrimas nos olhos. Cabíria olha para eles e depois para a câmera, direcionando seu olhar para nós os espectadores. Sorri e nos cumprimenta. No final de Julieta dos Espíritos, a mulher consegue se libertar de seu medo de ser feliz. Caminha em direção ao portão de sua casa e sai, como se estivesse saindo de uma prisão. Uma casa-prisão que não é senão uma metáfora da prisão interior que impôs a si mesma.

Grande coleção de memórias da infância, em Amarcord (1973) as mulheres se destacam (imagem no início do artigo). Gradisca é mais conhecida por seus seios e nádegas e Volpina é uma ninfomaníaca. Sem esquecer a cena em que a gorda vendedora da mercearia mostra seus grandes seios e quase sufoca o garoto entre eles para então, no minuto seguinte, agir como se nada tivesse acontecido. Um comportamento sexual mais relacionado à imagem-clichê do macho viril que só está interessado na satisfação de seus desejos animais, sem considerar elementos de ordem afetiva que eventualmente poderiam estar ligados ao ato.




Sylvia é uma atriz famosa e fisicamente portentosa em A Doce Vida (La Dolce Vita, 1959). Em As Tentações do Doutor Antônio (Le Tentazioni del Dottor Antonio, 1962), Anita Ekberg, a Sylvia, é a mulher de um cartaz de outdoor que ganha vida na mente sexualmente reprimida do moralista Dr. Antônio – filme que já criticava a superexposição do corpo feminino nas bancas de jornais. O cartaz é sobre o hábito de beber leite e a mulher tem grandes seios. (acima)

Em Fellini 8 ½ (Otto e Mezzo, 1963) (abaixo), temos um homem e suas três mulheres, a esposa, a amante casada e a mulher ideal, além de um harém onde as mulheres se revoltam contra seu senhor. Um homem chega à Cidade das Mulheres (La Città Delle donne, 1980), uma cidade só de mulheres, onde é desejado e julgado ao mesmo tempo – curiosamente é a postura usual dos homens em relação às mulheres no ocidente. Nesta cidade um homem, como em Fellini 8 ½, faz auto-análise a partir das mulheres de sua vida.


“Embora Fellini tivesse sido realizador durante 30 anos, o público ainda questionava até que ponto ele compreendia as mulheres. De certa forma, Fellini salvaguarda-se em Cidade das Mulheres, aproveitando um gênero cômico e uma estrutura de sonho. O filme pode ser considerado apenas uma comédia ou uma fantasia, mais do que um exame da mulher moderna e das relações sexuais contemporâneas”. (2) Giulietta Masina, esposa de Fellini na vida real, estrelou muitos de seus filmes. Baixinha, magrinha, sem grandes seios e nádegas, contou que se sentia muito insegura porque não tinha o corpo exuberante que estava na moda naquela época. Fellini fez alguns comentários sobre Giulietta… “Todos os meus filmes giram em torno desta idéia. Há um esforço de mostrar um mundo sem amor, personagens egoístas, pessoas explorando pessoas, e, no meio de tudo isso, há sempre – e especialmente nos filmes com Giulietta – uma criaturinha que quer dar amor e que viver para o amor”. “Giulietta tem a leveza de um fantasma, um sonho, uma idéia. Ela possui os movimentos, a perícia mímica de um palhaço”. (3)


Leia também: 

As Mulheres de Federico Fellini (II)
Federico Fellini e sua Biografia: Mitos e Verdades
As Mulheres de Pier Paolo Pasolini (I)

As Mulheres de Luis Buñuel
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Ettore Scola e o Filme Dentro do Filme
Mussolini e a Sombra de Auschwitz
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Notas:


1. Luiz Carlos Merten - 24/08/2001 – Disponível em: http://www.italiaoggi.com.br/not08/ital_not20010824b.htm Acessado em: 03/05/2008
2. WIEGAND, Chris. Federico Fellini. A Filmografia Completa. Köln: Taschen, 2003. P. 163.
3. Ibidem, pp. 43 e 47. 


Sugestão de Leitura

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