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Roberto Acioli de Oliveira

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30 de abr. de 2017

Cinema e Identidade Nacional na Itália Fascista


“Poucos são os filmes do período de transição que contém
representações  explícitas  [...]  do  regime  fascista  (...)  (1)

Ventennio Nero

Durante os vinte anos de domínio do Fascismo na Itália (de 1922 a 1943), os espectadores de cinema assistiam essencialmente a uma combinação entre o cinema convencional (mainstream), seja italiano ou norte-americano, e os cinejornais do Instituto Luce patrocinados pelo regime. Contudo, nota-se uma mudança de abordagem quando comparamos as duas décadas, refletindo a evolução da economia fascista. Durante os primeiros nove anos, o Estado não monopolizou a indústria cinematográfica e nem mesmo estabeleceu um sistema hierárquico unificado sobre a produção. A única iniciativa naquele momento foi a inauguração do Instituto Luce, em 1925. Entre 1922 e 1931, enquanto o regime estava concentrado em resolver suas contradições internas e consolidar seu controle sobre o governo, pouco fez (e apenas pelo setor de exibição) para modificar a estrutura das instituições ligadas ao cinema herdadas do governo do Primeiro-Ministro Giovanni Giolitti (1842-1928) - que governou o país, com algumas interrupções, entre 1892 e 1921. (imagem acima, no entreposto de pesca, o único comprador da aldeia e explorador dos pescadores, comemora ter conseguido destruir o ímpeto libertário do líder deles, A Terra Treme, 1948. Na parede, parte de um dos muitos slogans de Mussolini: Decisamente verso il popolo [decididamente em direção ao povo])

Nessa primeira década, apesar da demora na execução de uma política cultura envolvendo o cinema, ele era um entretenimento popular e contribuiu no estabelecimento de uma concepção fascista de identidade nacional – através, por exemplo, da contratação de luminares da literatura para produção de roteiros e da evocação da história do país, especialmente forçando uma relação deste com o longínquo Império Romano. Quando Benito Mussolini, il Duce, marchou sobre Roma em 1922, a queda de produtividade do cinema local já estava acontecendo, assim como a perda de mercado no exterior (2).

“Representações e reapropriações do Histórico foram muito comuns durante toda a história do cinema italiano. Desde o início, filmes como A Captura de Roma (La Presa di Roma La Presa di Roma (20 Settembre 1870), 1905), de [Filoteu] Alberini, La Caduta di Troia (1910), [de Giovanni Pastrone], Quo Vadis? (1913), de Enrico Guazzoni, Gli Ultimi Giorni di Pompei (1913), de Mario Caserini e Eleuterio Rodolfi, e Cabiria (1914), de Giovanni Pastrone, servem como pontos de referência na evolução da linguagem cinematográfica na Itália. De fato, o ciclo do homem forte Maciste-Sansão-Hércules muitas vezes selecionam cenários históricos para sua estrutura narrativa e foi o único grupo de filmes italianos de sucesso desde os anos 1910 até o completo declínio da indústria nos anos 1920. [...] O ciclo surgiu em 1914 com a atuação de Bartolomeo Pagano como Maciste em Cabiria. Alguns de seus filmes que empregam panos de fundo históricos incluem La Trilogia di Maciste (direção Carlo Campogalliani, 1920), Il Ponte dei Sospiri (direção Domenico Gaido, 1921), Ursus (direção Pio Vanzi, o protagonista talvez seja Bruno Castellani, 1922), e Maciste Imperatore (direção Guido Brignone, 1924). A evocação explícita da História continuou ao longo do período de Fascismo, ainda que alguns filmes estejam incluídos numa reevocação e revisão ideológica da história clássica de Roma. O filme do homem-músculo experimentou uma reaparição no início dos anos 1960, com Steve Reeves assumindo o manto de Bartolomeo Pagano. A insistente reconstrução de cenários clássicos até encontraram seu caminho para dentro dos comerciais de televisão, com hino de Sergio Leone para um [automóvel] Renault acorrentado ao chão do Coliseu” (3) (imagem abaixo, Gina Lollobrigida é a aldeã ingênua, dona do corpo mais perfeito da pequena cidade, no clássico do Neorrealismo rosa Pão, Amor e Fantasia, 1953)


Na década de 1950, o chamado Neorrealismo rosa fabricou
  para o público uma espécie  de  “final feliz”  em  estilo  italiano; 
 o exemplo de Hollywood combinado à tradição nacional (4)

Na segunda década, com o maior domínio da sociedade civil pelos fascistas, aumentou a regulação do cinema e o Estado delineou uma série de reformas institucionais visando à construção de uma cultura fascista de cinema. Em 1931, a redução da taxação das receitas da bilheteria, assim como uma série de prêmios para os filmes que o governo considerava verdadeiramente italianos, ajudaria a revitalizar a produção – de uma dúzia de títulos em 1931, para 119 em 1942. No espaço de poucos anos brotaram quatro iniciativas dentre as quais pelo menos três são conhecidas e comemoradas até hoje. Em 1934, o governo criou uma agencia estatal que cuidaria ao mesmo tempo da regulamentação da distribuição, dublagem e censura, Direzione Generale per la Cinematografia (DGC) – dirigido por Luigi Freddi, ex-chefe do escritório de propaganda do Partido Fascista, foi colocado sob controle administrativo do Ministério para Imprensa e Propaganda (Ministero per La Stampa e Propaganda), que mais tarde se tornaria o Ministério da Cultura Popular (Ministero della Cultura Popolare). O DGC cria o Festival de Veneza em 1934 (filmes haviam sido introduzidos numa mostra de cinema na Bienal de Veneza dois anos antes), uma escola nacional de cinema (Centro Sperimentale di Cinematografie) em 1935, e se inaugura a maior instalação de produção na Europa, a Cinecittà, em 1937. No ano seguinte, as leis de projeção de Alfieri (que aumentaram o subsídio estatal de 10 para 12% e deram ao Estado o monopólio de importação e distribuição de filmes) minaram a antes irrestrita distribuição de filmes de Hollywood no mercado italiano. O caráter complexo da censura na Itália fascista, que vai além do padrão básico de repressão, fica evidente nas palavras de Freddi para o genro de Mussolini:

“É oportuno acima de tudo esclarecer que as comissões [de censura] não carecem limitarem-se exclusivamente às funções de repressão. De fato, deveriam tornar-se um instrumento através do qual o Estado possa aplicar novos padrões estéticos e morais ao cinema. Enquanto tal, nesse esforço as comissões poderiam colaborar, buscando desacelerar a importação da produção estrangeira moral e artisticamente danosa. Mas, particularmente, de forma a alcançar um aperfeiçoamento geral na qualidade de nossa produção cinematográfica nacional, permitindo não apenas capacitá-la para manter-se na concorrência com as produções estrangeiras em nosso próprio mercado nacional, como também encontrar uma entrada nos mercados internacionais. E, acima de tudo contribuir, através de seus poderosos meios de sugestão, com os objetivos do Estado” (5) (imagem abaixo, louvação à Mussolini; Fellini apresentou o cotidiano da Itália durante o Fascismo em Amarcord, 1973)


Na Itália, entre 1922 e 1943, o mundo que emana da tela do cinema
e o  mundo  real  da  vida  cotidiana estão ligados ao regime fascista

De acordo com Steven Ricci, de longe a medida institucional mais significativa foi a implantação de práticas de dublagem. Embora até 1938 o Estado tivesse feito pouco para diminuir a dependência do setor de exibição em relação aos filmes estrangeiros, desde 1933 todos os títulos importados deveriam ser dublados em italiano. Esta exigência garantiu ao Estado um mecanismo efetivo na moldagem das principais características do conteúdo no cinema. Mais do que neutralizar os valores culturais norte-americanos disseminados por seus filmes, o interesse maior era neutralizar os vários dialetos ainda em uso na Itália, e assim também as identidades culturais regionais – o discurso oficial dizia que assim o Estado conseguiria “proteger” um hipotético idioma italiano, que os fascistas consideravam “padrão”, das contaminações por palavras derivadas de outros idiomas. A política de dublagem, mais relevante para os fascistas do que os métodos tradicionais de censura, era fruto do impulso purista praticado pelo Instituto Nacional de Cultura Fascista, comandado por Giovanni Gentile (1875-1944), autoproclamado filósofo do Fascismo. Contudo, Ricci explique que o Estado fascista nunca conseguiu resolver as contradições filosóficas entre as correntes de pensamento no tocante ao papel ideal de uma cultura fascista, deixadas em grande parte sem solução: a) as tensões entre cultura como entretenimento e a utilização didática da produção cultural à serviço da propaganda do Estado; b) entre o modernismo e as práticas culturais tradicionais; c) entre uma cultura de massa pluralista e o vanguardismo inspirado pelo Estado. Ainda de acordo Ricci, a mais visível dessas tensões era a disparidade entre a autarquia cultural fascista e a presença dominante de filmes norte-americanos. (imagem abaixo, o padre católico em sua tarefa cotidiana de frequentar o cinema da cidade para em sessões privadas decidir quais cenas seriam cortadas dos filmes que a Igreja permitia que fossem projetados, Cinema Paradiso, 1988)


No pós-guerra, o empenho em confinar a mulher ao espaço
doméstico,  maternidade e submissão ao marido, era um interesse
da censura católica no cinema que em nada diferia, seja da Legião
 da Decência nos Estados Unidos ou da ideologia fascista  (6)

Embora o Estado fascista tenha durante bom tempo se beneficiado da bilheteria das produções de Hollywood, além de identificar fenômenos distópicos na sociedade norte-americana, a representação da mulher e da sexualidade nesses filmes era uma grande preocupação para o regime - receio de que a plateia italiana aderisse a modelos não fascistas. Havia o esforço sistemático de contato cotidiano da população com símbolos da governança fascista (por exemplo, taxação de homens não casados entre 25 e 65 anos, ou leis pró-natalistas que premiavam mulheres-esposas com muitos filhos), que pudessem induzir determinada leitura dos filmes. Contudo, sustenta Ricci, nem mesmo um Estado totalitário pode ter por garantido que todos os espectadores compreenderão sua propaganda da mesma maneira. Na opinião de Ricci, a experiência do cinema na Itália durante a era fascista pode ser caracterizada por pelo menos quatro elementos sobrepostos que ocorrem na interseção entre as aparições do Estado na esfera pública e as posições de leitura cinematográfica: 1) A ordem social da vida nacional italiana é sempre apenas uma ordem fascista (o público deve saber que o Fascismo está tanto no mundo que emana da tela quanto naquele do lado de fora do cinema); 2) O passado italiano é o Império Romano, o presente e o futuro são fascistas (a apresentação ficcional da história contemporânea deve ser lida como emanando de um passado clássico); 3) Os programas culturais fascistas imaginam uma geografia que naturaliza as contradições entre o urbano e o rural (busca do equilíbrio entre o conservadorismo rural e as visões futuristas da vida metropolitana); 4) O Fascismo italiano vê seu público/audiência como um corpo nacional indiferenciado (apagamento das diferenças regionais). (imagem abaixo, Fellini nos leva a um passeio por Cinecittà, em Entrevista, 1987)


Até 1947, a Cinecittà continuava desmantelada,  seu terreno
sendo  utilizado  pelos  aliados  como  campo  de  refugiados

A dublagem e a censura foram os instrumentos de intervenção em relação aos usos da linguagem. Eram sistematicamente suprimidas todas as referências linguísticas a outras nacionalidades ou à disparidades no interior da Itália, especialmente em relação à diferença entre o norte e qualquer região no sul do país. Neste caso em particular, procurou-se neutralizar o que isso tornava evidente: a dominação política e econômica do norte industrializado em relação ao sul subdesenvolvido, situação que o Fascismo não interrompeu. No imediato pós-guerra, a utilização de dialetos regionais pelo Neorrealismo aponta justamente um caráter antifascista no discurso político deste movimento. Entretanto, Ricci nos lembra que ainda existe muito debate em torno de saber o que aconteceu com aquela busca do Fascismo pela unidade da identidade  nacional, além de não existir unanimidade quanto a saber em que medida o cinema pós-fascista representa uma ruptura completa política e cultural com o status quo anterior. E o que aconteceu com os dois atores principais, o Estado fascista e o cinema de Hollywood, depois da invasão da Itália pelas forças aliadas? Toda a estrutura estatal e das instituições ligadas ao cinema foram submetidas à autoridade dos exércitos aliados (mais especificamente, aos Estados Unidos). Durante esses dois anos, muitas figuras que haviam regulado o cinema durante o Fascismo continuavam no posto, mas já sem autoridade para tomar decisões. Desde o início, um conselho interino para o cinema estabeleceu duas diretivas: desmantelar a legislação do cinema fascista e abrir caminho para a retomada da importação dos filmes de Hollywood. Em junho de 1944, o chefe da comissão aliada para a Itália, contra-almirante Ellery Stone, deixou tudo muito claro:

“Toda a legislação criada pelo Fascismo deve ser suprimida... O assim chamado cinema italiano foi inventado pelos fascistas. Portanto, deve ser suprimido. Todos os instrumentos que deram vida a essa invenção também devem ser suprimidos. Todos eles, incluindo Cinecittà. Nunca existiu uma indústria cinematográfica na Itália, nunca houve industriais do cinema. Quem são esses industriais? Especuladores e aventureiros, é isso que são. De qualquer forma, a Itália é um país agrícola.  Que função isso tem para uma indústria do cinema” (7) (imagem abaixo, Arroz Amargo, 1949)


(...)  Para o Vaticano a  cultura  do  consumo  [expressa  nos  filmes
 de  Hollywood]  não  representava  problema,  contanto que a imagem
que viesse com eles defendesse e promovesse valores cristãos (...)(8)

De fato, até 1947, a Cinecittà foi utilizada como campo de armazenamento de refugiados. A nova legislação produziu dois efeitos imediatos já em 1945, quando as diretivas de Stone haviam sido introjetadas profundamente pelos novos ocupantes da Itália: os exibidores não eram mais obrigados a projetar os cinejornais e documentários do Instituto Luce (o qual, basicamente, fazia propaganda do regime fascista) antes dos filmes e foi desmantelada a ENIC (Ente Nazionale Industrie Cinematografiche) (dando fim ao monopólio estatal da distribuição de filmes entre 1939 e 1945). Automaticamente, revogaram-se as quotas de importação de filmes, o que levou seis estúdios a abrirem ou reabrirem escritórios em Roma: MGM, Paramount, 20th Century Fox, Warner Brothers, RKO e Universal. Em 1930, já em plena vigência do Estado fascista na Itália, 221 filmes norte-americanos foram importados para o país. Em 1946, um ano após o final da guerra, foram 188. A cada ano a cifra aumentava em muitas dezenas. Em 1949, 95 filmes italianos foram lançados, e 369 foram importados de Hollywood, excedendo em muito os números de 1930. Num filme como Arroz Amargo (Riso Amaro, direção Giuseppe De Santis, 1949), o interesse de Silvana em chicletes, sua crença de que revistas de fotonovelas como Grand Hôtel sempre dizem a verdade, seus discos de boogie-woogie e vitrola portátil, dão bem a dimensão da enorme quantidade de novos elementos da nova ordem cultural introduzidos na Itália com a presença do exército norte-americano – o qual mesmo antes do final do conflito já influenciava novos hábitos, com suas barras de chocolate, discos de música, meias de nylon para as mulheres e dólares. Silvana quer ir fazer fortuna nos Estados Unidos, onde ela acha que tudo é elétrico.

“A profunda ressonância do impacto dos Estados Unidos na cultura popular italiana era evidente nos novos produtos fornecidos por uma indústria editorial que claramente negocia pesado no entusiasmo por formas visuais e brilhantes de comunicação. Revistas de cinema como Hollywood desfrutavam de amplo séquito de admiradores nas áreas urbanas; em junho de 1946 surge o primeiro número de Grand Hôtel, um semanário ilustrado com fotografias que abordava os temas clássicos da literatura romântica popular. Publicação muito bem sucedida cuja prensagem inicial de 650,000 exemplares logo aumentou para 1 milhão de cópias por semana, a capa de Grand Hôtel sempre apresentava ilustrações muito brilhantes e coloridas de um jovem casal com olhar sonhador, que não apenas se destacava em qualquer banca de jornal, mas também constituía um convite explícito para entrar num mundo imaginário de sonhos e romance. Como demonstrou Angelo Ventrone, a função pedagógica de Grand Hôtel perdia apenas para o cinema e ao mesmo tempo estava estreitamente relacionado a ele. Os artistas transpunham as características das estrelas de Hollywood aos rostos de seus personagens e copiavam seus gestos e atitudes, para dar um sentido mais vivo e moderno de relações pessoais. Em 1947 a revista foi seguida por duas revistas de fotonovelas, Bolero Film (Mondadori) e Sogno (Rizzoli). Subprodutos da era do cinema, essas revistas alcançaram leitores, a maioria mulheres, entre trabalhadores de escritório e nas fábricas, costureiras, empregadas de loja e donas de casa. Fundamental, tais revistas alcançaram também algumas das muitas mulheres camponesas para quem o cinema era uma realidade muito distante. Histórias em quadrinhos também experimentaram uma expansão. Em 1950, as vendas médias semanais chegaram a 2 milhões. Nesse campo, a marca registrada norte-americana era tão poderosa que os editores se adaptaram à fórmula, e até apresentaram seus produtos completamente nacionais como se fossem importados dos Estados Unidos” (9) (imagem abaixo, os mais carolas queriam matar Fellini por mostrar a presença das prostitutas em Roma, em Noites de Cabíria, 1957)

A Censura e o Otimismo Construtivo


Il Duce  deixou  virtualmente  intacto,  embora  tenha  poucas  vezes
sido aplicado, o sistema de censura estabelecido por Giolitti em 1913

Em 1907, com o envio para os prefeitos de uma circular do Ministro do Interior, então Giovanni Giolitti, se manifesta a primeira intenção de controlar a produção cinematográfica na Itália – sabemos que Mussolini deixará praticamente intacto o projeto do Ministro. No ano seguinte, Giolitti volta à carga e demanda também o controle da segurança das salas de cinema. O objetivo manifesto era o de proteger o espectador da repulsão provocada por representações de intervenções cirúrgicas e a exibição de nudez ofensiva ao pudor – em 1889, já havia sido publicado um decreto confiando aos prefeitos o dever de evitar a exposição de elementos que possam suscitar medo e repugnância. A preocupação das autoridades italianas, confirmado pela constituição de 1948 e pela lei de censura de 1962, dizia ser sempre respeitar os chamados “bons costumes”. Em 1909, o Cardeal Respighi proibiu padres de entrarem nas salas de cinema. Ao tornar-se presidente do conselho, Giolitti envia uma circular em 1913, regulamentando a atribuição de visto de censura (avaliação preventiva obrigatória dos filmes). A Igreja Católica aprova os filmes de essência fascista, como Vecchia Guardia (direção Alessandro Blasetti, 1934) Scipião, o Africano (Scipione l’Africano, direção Carmine Gallone, 1937), enquanto a censura fascista levava em conta as exigências da Igreja. Antes de elaborar uma nova lei sobre a censura em 1935, Luigi Freddi consultará o padre jesuíta Tacchi Venturi. Em 29 de setembro de 1932, lia-se em L’Osservatore Romano: “a censura cinematográfica italiana está entre as melhores, queremos dizer a melhor. Ela é um dever moral...” (10). (imagem abaixo, o Maciste de Bartolomeo Pagano procura com toda sua força moral se livrar dos grilhões da injustiça, em Cabiria, 1914)


 Artigo 3º  da  lei  de  1914:  o  texto  dos  intertítulos  dos  filmes
(então mudos)  devem  ser  formulados  num  “italiano  correto”

Católicos e fascistas se irmanaram na defesa intransigente da ordem moral. Mussolini assumiu o governo em 1922, quando começou a exercer  controle sobre o cinema, a censura passou a estar sob sua autoridade direta. Il Duce não nacionalizou essa indústria, optando por fornecer ajuda financeira ao empreendedor privado que produzisse de acordo com suas conveniências. Ao invés de promover obras glorificando o Fascismo, o cinema italiano de então realizava filmes fracos, chamados “telefone branco”, que não analisavam nenhum problema social, econômico ou político do país. Os problema sociais eram ocultados. Não se admitia que um governo fascista tivesse problemas, o que talvez explique porque o Neorrealismo do pós-guerra não ocultou nenhuma mazela social – levando membros do governo democrata-cristão, com tendência a ver comunistas e anticlericais em toda parte, a reclamar que “roupa suja se lava em casa”. Mussolini se interessava por cinejornais, aceitava comédias, detestava filmes de gangster e rejeitava cenas muito íntimas e beijos muito longos. O cineasta e roteirista Cesare Zavattini, um dos teóricos do Neorrealismo, afirmou que a censura do regime fascista era pouco aplicada porque todos já haviam introjetado a autocensura. Além disso, o departamento de censura geralmente não fazia críticas abertas, preferindo exercer pressão através de opiniões e críticas de financiadores, pela imprensa. Depois da queda do Fascismo, o código de censura continuou o mesmo, sendo aprovado pela Assembleia em 1947. Giulio Andreotti, o famoso político, escreveu um artigo de jornal criticando Vittorio De Sica por sua visão pessimista da sociedade italiana em Umberto D (1952), sugerindo que doravante o cineasta realizasse obras impregnadas de “otimismo são e construtivo”.

“(...) Em 1954, o Neorrealismo é finalmente expulso [das telas], neutralizado pela censura oficial, a burocracia ministerial, as repreensões, as advertências e as ameaças de sanções. Igualmente indesejável, tudo aquilo que pudesse ter um gosto de reforma, um perfume de novidade, e todo filme que apresente as instituições ou seus representantes de forma não convencional (...)” (11) (imagem abaixo, ainda antes da guerra acabar, Visconti apresentou o casal de amantes e a esposa adúltera, contrariando o modelo da família perfeita propagandeado pelo Fascismo, Obsessão, 1943)

Mudança de Paradigma


(...)  Ainda que fascinadas com Hollywood, agora [(que a Segunda
Guerra Mundial acabou)] as plateias italianas também se empenham
numa leitura de oposição [antifascista]  da  cultural  em  geral” (12)

Os quatro elementos sobrepostos que Ricci identificou na interseção entre as manifestações públicas do Estado e aquilo que este esperava que a massa da população enxergasse nos filmes realizados pelos fascistas - Ricci prefere chamá-los de códigos heurísticos - passariam por uma mutação no pós-guerra – os alemães foram substituídos pelos norte-americanos, que diziam trazer consigo as boas vindas do “mundo livre”, e os fascistas deram lugar aos democrata-cristãos. Em relação ao primeiro elemento, a ordem fascista que o público deveria na vida real e nas telas de cinema será substituída pela evocação da instabilidade, seja social ou sexual. Começam a aparecer nas telas muitas representações de famílias instáveis. É este o contexto da frase de Vittorio Mussolini, “isto não é a Itália!”, quando assistiu a Obsessão (Ossessione), de Luchino Visconti, que já em 1943 apresentava o adultério como um fato da vida. Ainda poderiam ser citados como representação de famílias desestruturadas ou completamente ausentes, cronologicamente, A Culpa é dos Pais (I Babini ci Guardano, direção Vittorio De Sica, 1944), Vítimas da Tormenta (Sciuscià, direção Vittorio De Sica, 1946), Juventude Perdida (Gioventù Perduta, direção Pietro Germi, 1948) e É Proibido Roubar (Proibito Rubare, direção Luigi Comencini, 1948). Tudo isso estava muito longe do modelo de família perfeita irreal pregado pelo Fascismo. Além disso, o próprio título original de Vítimas da Tormenta, Sciuscià, era uma italianização do inglês “shoeshine”, engraxar, algo que teria sido considerado contaminação linguística pelos fascistas poucos anos antes.

“(...) Restringir a feminilidade à esfera privada e encorajar a masculinidade a se reintegrar no interior de um conjunto de valores mais tradicionais foi o que o Vaticano tentou sem resultado durante os anos 1950. O sucesso [de filmes que desafiam essa tendência] entre as plateias italianas prova que o país estava experimentando uma transformação que nenhum [poder] conseguiria frear, e a representação dessa modernidade na tela foi uma exigência necessária da sociedade italiana” (13) (imagem abaixo, no episódio 3 de Paisà, um soldado norte-americano negro, portanto um pária em seu próprio país, conhece um pequeno pária romano e acaba dando razão à opção do menino por virar assaltante)


Paisà  é  considerado  um  dos  melhores exemplos da mudança
para o modelo histórico pós-fascista: o Império Romano substituído
por ruínas e incertezas, e o italiano padrão pela babel de línguas

Em relação ao primeiro elemento, a ideia de sugerir que o passado da Itália é diretamente relacionado ao Império Romano e o futuro fascista, será substituída por representações de uma nação constituída por muitos passados para cada região do país. Um exemplo disso é Paisà, que Roberto Rossellini realiza em 1946, não por acaso apresentando histórias desde a Sicília no extremo sul até Florença e o vale do rio Pó, ao norte. Ricci mostra como o foco do cineasta não é o Império, mas o avanço das tropas aliadas expulsando fascistas e nazistas. A palavra paisà, derivada de paese, significa ao mesmo tempo país e cidade, tanto a nação maior quanto as localidades que a constituem. Paisan, o título da versão em inglês, refere-se igualmente aos cidadãos da mesma cidade e a compatriotas. Essa coexistência entre elementos locais e do todo nacional, forma o quadro a partir do qual o filme pretende remontar o país. Os seis episódios reproduzem a sequência da libertação da Itália e formam as coordenadas do mapa conceitual de um país em formação. Na opinião de Ricci, o mapa da Itália, presente originalmente somente na versão inglesa, que vai sendo progressivamente sendo preenchido, torna literal esse processo. Segundo Ricci, o itinerário de destruição dos episódios através da Itália não poderia estar mais distante dos passeios pitorescos patrocinados pela Opera Nazionale del Dopolavoro (OND) em Treno Popolare (direção, Raffaello Matarazzo, 1933), dos cruzeiros de prazer em Os Apuros do Senhor Max (Il Signor Max, direção Mario Camerini, 1937) e da estância turística de luxo em Rotaie (direção Mario Camerini, 1929). Ricci chama atenção que, na época do lançamento de Paisà, grupos de trabalho de esquerda reivindicavam seu papel na organização de atividades de lazer.

 “Em seu livro Cinema e Pubblico (1985), Vittorio Spinazzola apresenta uma detalhada descrição da indústria cinematográfica italiana entre 1945 e 1965, dividindo a produção nacional entre filmes a respeito do povo e filmes para o povo, referindo-se no primeiro grupo ao Neorrealismo e no segundo ao que pode ser definido como cinema ‘popular’ (musicais, adaptações literárias, filmes de costumes, Neorrealismo popular e comédias)” (14) (imagem abaixo, Arroz Amargo, 1949)


O  estilo  visual de Arroz Amargo mistura  realismo socialista
soviético (representação heroica da ligação trabalho+natureza) e film
noir norte-americano (subtema do roubo de joias e intriga) (15)

Quanto aos terceiro e quarto elementos, busca de equilíbrio entre o conservadorismo rural e as visões futuristas da vida metropolitana e o apagamento das diferenças regionais, dão lugar a uma reorientação entre centro e periferia. Com Obsessão e A Terra Treme (La Terra Trema – Episodio del Mare, 1948), Visconti não apenas localiza a trama em regiões periféricas, como o dialeto falado no segundo teve de ser dublado para ser compreendido pelos próprios italianos. Os epílogos de filmes como Vítimas da Tormenta, Paisà, A Terra Treme e Arroz Amargo, deixam aberta e ambígua a questão do retorno à cidade/metrópole. Agora, e não apenas em relação aos filmes neorrealistas, o corpo nacional do público será confrontado com diferenças de classe e linguagem. Se comparado a um documentário como Mussolini Speaks (direção Edgar G. Ulmer, 1933), lançado na época nos Estados Unidos, um filme de 1949 como Arroz Amargo aponta outra direção, com todas aquelas mulheres de várias origens, novos gostos e interesses, falando vários dialetos. No primeiro exemplo, a plateia escuta/testemunha a fabricação da nova Itália enquanto assiste ao discurso do chefe do Estado. No segundo, o público é convidado a participa, o locutor que abre o filme corresponde à inversão da centralização anterior fascista. Ricci mostra que, entre 1945 e 1946, as estações regionais de rádio substituíram momentaneamente o sistema fascista, Ente Italiano per le Audizioni Radiofoniche (EIAR), centralizado em Roma, que até mudou de nome para Radio Audizioni Italia (RAI). A Rádio Torino do filme é apenas um dos exemplos de grupos regionais lutando por sua autonomia e identidade cultural. Na opinião de Ricci, a ficção de Arroz Amargo dá voz a uma nova e complexa forma de leitura social. Contudo, embora fascistas e nazistas não constituíssem uma opção viável, é preciso não ser ingênuo quanto aos interesses norte-americanos às portas da Guerra Fria:

“(...) [A interferência do governo dos Estados Unidos nas artes de seu próprio país] deve ser levada em conta quando comparado com a influência dos governos norte-americano e italiano na cultura italiana do pós-guerra, especialmente no cinema italiano. Neste ponto, é possível observar como os Estados Unidos legitimou seu poder através de aparatos ideológicos como a cultura. Após a Segunda Guerra Mundial, a CIA (Agência Central de Inteligência) utilizou a cultura como forma de propaganda política, investindo nela milhões de dólares e agindo quase como Ministério da Cultura dos Estados Unidos, enquanto o Departamento de Estado, investigava roteiros meticulosamente. O Congresso para Liberdade Cultural, por exemplo, cujo objetivo era forçar os intelectuais de esquerda contra o Comunismo, foi definido como o maior esforço de propaganda cultural visando direcionar os intelligentsia da Europa ocidental na direção do ‘estilo americano’” (16) (imagem abaixo, Lulu Massa, o metalúrgico, diante da televisão italiana, A Classe Operária vai ao Paraíso, direção Elio Petri, 1971)


Considerado o pai do Neorrealismo  cinematográfico,  na  década
de 1960 Roberto Rossellini substitui o cinema pela televisão,  porque
a considerava capaz de suprir o interesse humano por educação...

Enquanto entre 1948 e 1952 o Neorrealismo rosa (para alguns a versão conformista do Neorrealismo) se disseminava pelo cinema italiano, uma concessão de vinte anos foi aprovada para a RAI-TV iniciar em 1954 as transmissões de televisão no país, com uma alta taxa de popularização nos anos seguintes. Stephen Gundle se pergunta sobre a possibilidade de que, como muitos de seus executivos ligados à elaboração da programação já estivessem na RAI desde o período fascista (onde adquiriram um sexto sentido para o gosto popular), isso tenha sido determinante para a elaboração de uma dieta de eventos esportivos, espetáculos de variedades, entretenimento musical, peças teatrais e programas de perguntas e respostas. Em sua total falta de complexidade e criticismo, argumenta Gundle, tal programação se conformou perfeitamente à ética democrata-cristã que agora dominava a Itália. Não existiam programas de análise da conjuntura política e dos problemas da sociedade, temas difíceis eram evitados e uma imagem convencional e conformista das relações sociais era apresentada. Neste sentido, concluiu Gundle, o processo de despolitização, que nunca chegou a se completar no cinema, triunfou na nova mídia (17). As primeiras coproduções são realizadas entre o cinema e a nova mídia, as comédias também foram exploradas como uma opção, transformando a noção de qualidade no primeiro. Os chamados filmes de arte deram certa distinção internacional aos cineastas italianos, mas nunca se refletiram positivamente nas bilheterias. Era necessário que a indústria de cinema produzisse um gênero popular que permitisse ao produto italiano retomar os espectadores perdidos para o filme estrangeiro e para a televisão (18). Em vinte anos a televisão se torna o maior pesadelo do cinema.

“O impacto da televisão foi de longo alcance. Desempenhou papel dinâmico na conclusão da unificação linguística do país, processo já auxiliado pelo cinema, rádio, e pela imprensa popular. A televisão obteve êxito onde o sistema escolar falhou, porque tinha apelo imediato e oferecia novos modelos atrativos de comportamento, assim como oportunidades de compartilhamento de experiências. Por esta razão, alguns intelectuais atribuíam a ela uma significação cultural equivalente apenas à Divina Comédia. Para outros, ao contrário, incluindo Pier Paolo Pasolini, ela sinalizava o triste eclipse de um mundo autônomo e popular identificado com uma miríade de dialetos locais e tradições” (19)

Leia também:
Notas:

1. RICCI, Steven. Cinema & Fascism. Italian Film and Society, 1922-1943. Berkeley: University of California Press, 2008. P. 177.
2. Idem, pp. 67, 68, 156-177, 205n17n18.
3. Ibidem, p. 206n4.
4. GENNARI, Daniela Treveri. Post-War Italian Cinema. American Intervention, Vatican Interests. New York/London: Routledge, 2009. P. 7.
5. RICCI, S. Op. Cit., p. 67.
6. GENNARI, D. T. Op. Cit., pp. 115, 145.
7. RICCI, S. Op. Cit., p. 167.
8. GENNARI, D. T. Op. Cit., p. 145.
9. GUNDLE, Stephen. Between Hollywood and Moscow. The Italian Communists and the Challenge of Mass Culture, 1943-1991. Durham & London: Duke University Press, 2000. Pp. 33-4.
10. DOUIN, Jean-Luc. Dictionnaire de la Censure au Cinéma. Paris: Quadrige/Puf, 2001. Pp. 261-7.
11. Idem, p. 266.
12. RICCI, S. Op. Cit., p. 177.
13. GENNARI, D. T. Op. Cit., p. 143.
14. Idem, p. 7.
15. RICCI, S. Op. Cit., p. 176.
16. GENNARI, D. T. Op. Cit., p. 17-8.
17. GUNDLE, S. Op. Cit., p. 77.
18. GENNARI, D. T. Op. Cit., p. 7-8.
19. GUNDLE, S. Op. Cit., p. 78.

20 de jul. de 2011

Monica Vitti: A Trajetória de Uma Loura



“Minha mãe me disse,
em
tom de insulto, quando
me viu vestida de preto ou cinza
,
como me visto há anos. E também
quando  soube  que  eu  tinha   me
inscrito   na   Academia   de   Arte
Dramática     para     me     tornar
uma atriz: ‘existencialista’.
Que   vergonha”

Monica Vitti (1)


 

Minha Vida por Um Nariz

Maria Luiza Ceciarelli (1931), aliás, Monica Vitti, sabia muito bem que tinha problemas de fotogenia. Parece que o nariz dela era mais importante do que seu talento – um acidente de carro foi o responsável, mas ela sempre se recusou a fazer uma plástica como condição para ser aceita pelos cineastas. Ela sabia que não podia competir com as maggiorate, as peitudas (que as vezes eram boas atrizes), e também não tinha o tipo de beleza da moda dos filmes tipo Belle ma Pevere (direção Dino Risi, 1957). Enfim, além do nariz, no quesito busto, Monica não podia competir com Gina Lollobrigida, Silvana Mangano e Sophia Loren. Atriz de teatro, Vitti também trabalha com dublagem para cinema – emprestaria sua voz para filmes de Mario Monicelli (dublando Rossana Rory, a personagem Norma de Eternos Desconhecidos, 1957), Federico Fellini (não descobrimos quem ela dubla, mas foi em Noites de Cabíria, 1957), Pier Paolo Pasolini (dublando Paula Guidi, a personagem Ascenza de Accattone. Desajuste Social, 1961) e Michelangelo Antonioni.


(...) Nunca me
maquiava
.    Queria
recitar   e   basta.   Talvez
fosse  uma  resposta à minha 
mãe, à sua frase dramática: 
‘a poeira do palco corroe
alma e corpo!’”

Monica Vitti (2)


Estréia no cinema em Ridere! Ridere! Ridere! (mas o nome dela não aparece nos créditos, direção Edoardo Anton, 1955), mais alguns trabalhos para atelevisão e Una Pelliccia de Visone (direção Glauco Pellegrini, 1957). A seguir, na comédia Le Dritte (direção Mario Amendola, 1958), Edna, Ofelia e Rina estão a caça de uma marido – mas ainda não é o que procura Ofelia; isto é, Monica Vitti (3). Enfim, sua obra gira em torno da comédia, sendo puramente episódico o trabalho com Antonioni. E foi em tom de comédia que Vitti atuou em Noi Donne Siammo Fatte Così (direção Dino Risi, 1971), em pleno auge do feminismo seu papel criticava os esteriótipos femininos, inclusive no cinema (4). (acima, à esquerda, Vitti em Fata Sabina, episódio de As Rainhas, Le Fate, 1966; à direita, O Cinturão da Castidade, La Cintura di Castità, 1967; Abaixo, Modesty Blaise, 1966)


“Foi a coisa mais
difíci
l da minha vida.
 Talvez   por isso  não 
quis uma minha...

Opinião de Monica Vitti
a respeito de família (5)

O cineasta Antonioni, com quem viria a se casar, conheceu Vitti durante o processo de dublagem de O Grito (Il Grido, 1957), ela faz a voz de Virginia, interpretada pela atriz Dorian Gray, a dona do posto de gasolina. Segundo uma declaração um tanto vaga de Glauber Rocha, no que diz respeito a sua carreira no cinema, Monica Vitti é um produto do neo-realismo (6) - provavelmente ele se refere ao assim chamado “neo-realismo rosa”. Mas ela vem da escola de teatro, a atriz chegou a dizer que só queria fazer teatro. Antonioni teria sido o responsável por fazê-la mudar de idéia em relação ao cinema. Contudo, o cineasta chegou a escrever para ela uma peça de teatro, Scandali Segreti (1957), antes de confiar-lhe um papel em A Aventura (L’avventura, 1960) (7). Para Antonioni, Vitti atuaria ainda no mundo sem comédia de A Noite (La Notte, 1961), O Eclipse (L’eclisse, 1962), O Deserto Vermelho (Il Deserto Rosso, 1964) e O Mistério de Oberwald (Il Mistero di Oberwald, 1980). A atriz recusava papeis maternais (8), em O Deserto Vermelho ela simplesmente não consegue ser a mãe de seu pequeno filho, enquanto em O Fantasma da Liberdade (direção Luis Buñuel, 1974) ela faz uma mãe que demite a babá desatenta que permitiu que um homem estranho entregasse cartões postais para sua filha no parque de diversões – mas que, em seguida, juntamente com seu marido, se excita com as imagens. Inicialmente, recusou o papel, mas apenas porque tinha medo de viajar de avião. Como não conseguiu substituí-la, Buñuel insistiu, dizendo que gostava do modo erótico com que ela olhava e tocava as coisas – uma expressividade fascial que também chamou atenção de Antonioni (9). Mas Vitti explicou ao cineasta espanhol que a causa era um forte astigmatismo! (10)

Monica Vitti Segundo Antonioni 


“Eu dublava as
atrize
s italianas que,
naquela   época
,   eram
escolhidas    apenas
 por 
seu físico”
 

Monica Vitti (11)



Vitti atuou em toda a trilogia da incomuncabilidade, foi Claudia em A Aventura (imagem acima), Valentina em A Noite e Vitória em O Eclipse. Próximo do final de A Aventura, Sandro se entretém numa noite mundana enquanto Claudia (Monica Vitti) dorme no quarto do hotel. Ela acorda de madrugada e constata a ausência dele. Quando Antonioni nos traz a imagem de Vitti a partir do close da mão dela, Florence Mauro sugere a evocação do maneirismo florentino de um Pontormo (1494-1557). Em seguida, a mão sobe na direção do travesseiro, mas antes puxa o lençol e cobre parte do rosto da atriz – deixando bem a vista o nariz dela e seus olhos, quem sabe uma provocação aos produtores e cineastas que não olharam para o talento da atriz. Ela se agita, apoiada no cotovelo vira o rosto para cá e para lá e deixa a cabeça cair novamente no traveseiro. No plano seguinte, de costas para nós, vemos apenas seus cabelos (ela acendeu a luz do abajur para ver as horas), como se o olhar direcionado a ela fosse de um homem posicionado atrás dela. Antonioni removeu qualquer embaraço e contemplou a mulher que ama enquanto se revelava. Ele observa os movimentos do corpo e dos olhos daquela mulher. Na opinião de Florence Mauro, o cineasta reserva para si com pudor a exclusividade da nudez da atriz (12). (abaixo, à direito, Vitti em O Deserto Vermelho, 1964)




“‘Tem uma bela nuca’,
me disse Antonioni
. Pode
fazer cinema’.  ‘Sempre de
costas?’, lhe respondi
 

Monica Vitti (13)


Claudia caminha pelo quarto, abraça e cheira uma camisa de Sandro, depois se encara no espelho e rapidamente passa à tarefa mais tranquilizante de avaliar a juventude da pele de seu rosto fazendo algumas caretas. Então acompanhamos enquanto ela conta o tempo escrevendo números - a revista está aberta numa matéria sobre Jean Harlow (1911-1937), a diva do cinema norte-americano, a Marilyn Monroe antes da Marilyn. Então Monica olha para o teto, oferecendo a garganta ao cineasta (e aos espectadores). Enquanto isso, Sandro está passando a noite a receber favores remunerados de uma prostituta. Contudo, Florence Mauro acredita que se pode considerar que o autor-cineasta-espectador Antonioni se aproveitou da ausdência de Sandro e assumiu o papel de amante. O pudor do cineasta passa pela exclusividade se seu olhar sobre sua atriz – neste caso, a mulher que ele ama. Florence vai além, sem dúvida e sem ironia foi o amor de Antonioni que o teria levado, na seqüência anterior, a cobrir Claudia/Monica com uma camisola. A mão nua sobre o travesseiro branco marca a ausência do amante, mas este poderia ser aquele que olha a mulher e não mais Sandro. Desta intimidade, conclui Florence, nasce o único despudor de toda a seqüência.

Estrela Transgressora




Com Modesty Blaise, 
Vitti    se   torna   um   ícone
da modernidade
, em oposição à mulher tradicional  identificada
com   os   cinemas   inglês  e
italiano dos anos 50

Marcia Landy (14)



Nos anos do milagre econômico italiano do pós-guerra o cinema daquele país retratar uma sociedade orientada cada vez mais para o sucesso material. Especialmente a comédia, que atuava contra o status quo ao tornar público aquilo que antes estava oculto. Nas palavras de Jaqueline Reich, as atrizes que estrelavam essas comédias eram a personificação de uma nova dinâmica nacional baseada numa numa corporalidade feminina altamente sexualizada, que simbolizava o orgulho nacional, modernidade e fecundidade, refletindo uma naturalidade em harmonia com a paisagem italiana (15). Os papéis de Vitti em comédias são menos lembrados (ou pelo menos comentados) do que os de outras estrelas como Lollobrigida e Loren. Marcia Landy observa que se falou mais das participações de Vitti nos filmes de Antonioni do que se escreveu sobre o trabalho dela como astriz cômica. Ela mesma, ao comentar em 1982 sobre a recepção na Itália dos filmes em que atuou, disse que as comédias italianas são mais respeitadas na França do que no próprio país (16). Ainda assim, para Landy a carreira de Vitti é instrutiva sobre as mutações do estrelato em relação à feminilidade na comédia popular do final dos anos 60 e começo dos 70 do século passado.




Em La Damma Scarlatte,
Vitti está armada e p
ersonifica
a  mulher  moderna  da  década
de  60
,  sem  finais românticos
na cama com um casal
(17)




A carreira de Vitti como comediante foi encorajada por Antonioni e auxiliada pelo cineasta Alessandro Blasseti. Afastando-se da imagem tradicional de namoro, casamento e maternidade, seus papéis nas comédias estão direcionados à figuras sedutoras, manipuladoras e aventureiras ao estilo dos filmes de James Bond. Na opinião de Landy, através da comédia Vitti oferecia um outro rosto ao estrelato. Um que também servia bem para parodiar fórmulas de gênero e imagens tradicionais da feminilidade, produzindo versões modernas transgressoras que desafiavam o poder masculino. Landy cita como exemplos seus papéis em Modesty Blaise (direção Joseph Losey, 1966), La Ragazza con la Pistola (direção Mario Monicelli, 1968), La Damma Scarlatte (direção Paul Valère, 1969) (imagem acima), Dramma della Gelosia (direção Ettore Scola, 1970) (imagem abaixo) e Polvere di Stelle (direção Alberto Sordi, 1973), filme que marcou seu estilo bem falante e atirado (incluindo dança e canto), para além de seus personagens indecifráveis nos filmes de Antonioni. Após trabalhar em produções italianas, francesas e britânicas, no começo dos anos 80 seu estilo de comédia (e sua carreira) entram em declínio, mas ela continua no teatro e na televisão.


Certos papéis
cômicos de Monica
Vitti criticam o conceito tradicional de mulher típico
do sul da Itália
,  detalhe que provavelmente   escapa
à maioria do público
não italiano


Landy acha que o papel de Vitti como uma mulher siciliana vingativa em La Ragazza con la Pistola lembra Seduzida e Abandonada (Sedotta e Abbandonata, direção Pietro Germi, 1964). É como se a atriz estivesse fazendo a paródia de uma paródia, se Germi criticava o código de honra siciliano, cinco anos depois La Ragazza apresenta Assunta, uma mulher desonrada que se vinga do machão siciliano. O papel de Vitti neste filme está em consonância com uma tendência de sua carreira, suas personagens se movem mais e mais para longe das concepções de feminilidade provenientes do sul da Itália (18). Com este filme, Vitti alcançou maior reconhecimento do que com suas participações nos filmes de Antonioni, além do que Monicelli inseriu a atriz em Londres em pleno 1968, contribuindo para que a imagem dela ficasse ligada ao questionamento dos esteriótipos tradicionais da cultura italiana. Assunta passa de encarnação da feminiladade sulista (italiana) à mulher liberada, liberando-se da carga do passado. Para Landy, La Ragazza é o exemplo de um novo tipo de comédia que surgia no final dos anos 60 e começo dos 70, colocando em pauta o que Angelo Restivo e Gian Piero Brunetta identificaram como efeitos da nova cultura do consumo, que utilizava o sul do país e a feminilidade para explorar novas imagens da nação. “Transportada para um meio exterior, as excentricidades cômicas de Vitti identificam sua persona com os efeitos do ‘milagre econômico’ que trouxe à existência, para melhor ou pior, novas formas de moralidade sexual” (19).


Notas:
Roma de Pasolini

1. COLLI, Laura Delli. Monica Vitti. Roma: Gremese Editore, 1987. P. 14.
2. Idem, p. 22.
3. Ibidem, pp. 21, 22.
4. Ibidem, p. 35.
5. Ibidem, p. 14.
6. ROCHA, Glauber. O Século do Cinema: Glauber Rocha. São Paulo: Cosac Naify, 2006. P. 259.
7. TASSONE, Aldo. Antonioni. Paris: Flammarion, 2007. P. 37.
8. LANDY, Marcia. Stardom, Italian Style: Screen Performance and Personality in Italian Cinema. Indiana: Indiana University Press, 2008. P. 163.
9. ANTONIONI, Michelangelo. Architecture of Vision. Writings and Interviews on Cinema. USA: University of Chicago Press, 1996. P. 42.
10. VITTI, Monica. Sette Sottane. Un’Autobiografia Involontaria. Milano: Sperling & Kupfer, 1993. Pp. 78-9.
11. TASSONE, Aldo. Op. Cit.
12. MAURO, Florence. Pudeur In: BERGALA, Alain; DÉNIEL, Jacques; LEBOUTTE, Patrick (orgs). Une Encyclopédie du Nu au Cinéma. Éditions Yellow Now/Studio 43 – MJC/Terre Neuve Dunkerque, 1991. Pp. 322-3.
13. COLLI, Laura Delli. Op. Cit., p. 22.
14. LANDY, Marcia. Op. Cit., p. 163.
15. Idem, p. 159.
16. Ibidem, p.249n67.
17. Ibidem, p. 162.
18. Ibidem, p. 160.
19. Ibidem, p. 162. 


12 de dez. de 2010

A Dublagem e o Cinema na Itália



Acontecem mais
festivais de cinema com
financiamento público na Itália do que em qualquer outro país do mundo

Steven Ricci (1)


 

Um Mundo Sem Legendas?

O regime fascista de Benito Mussolini se debruça sobre a produção cinematográfica italiana através do Decreto Lei nº 1121, de 1927 – mas, em 1936, 80% dos lucros ainda seriam provenientes da produção estrangeira. Entretanto, algumas práticas econômicas e ideológicas contidas no decreto teriam grande impacto na cultura do cinema italiano - durante o período fascista e muito tempo depois. Uma das novas exigências obrigava a dublagem para o idioma italiano de todos os filmes importados. A vultosa taxa paga pela companhia distribuidora pelo direito de dublar poderia ser substituída por três Bônus da Dublagem (futuramente esse número aumentaria para quatro) caso ela lançasse um filme italiano. Como a lei não taxava a receita da bilheteria, e a indústria não estava integrada (poucas companhias controlavam simultaneamente produção, distribuição e exibição), o impacto foi mais ideológico do que econômico. Steven Ricci explica que a Itália é um dos poucos países no mundo que regularmente dubla os filmes importados, o que até hoje impacta a produção naquele país (2). (imagem acima, "o cinema é a arma mais forte", diretiva posta em prática por Mussolini; até hoje esta frase vale o quanto pesa para os Estados dominantes)





Ond
e está localizada
a fronteira entre resistência
cult
ural e xenofobia?






Como resultado, existe na Itália uma pequena indústria da dublagem e os produtores são estimulados a utilizar sua infra-estrutura. Ricci esclarece que muito poucos filmes italianos são gravados com som direto, praticamente todos os diálogos são inseridos durante a fase de pós-produção. Para exemplificar a situação muito tempo depois de Mussolini ter sido varrido para fora do cenário italiano, Ricci sugere Noite Americana (La Nuit Américaine, 1973), dirigido pelo cineasta Francês François Truffaut. Neste filme acompanhamos o cotidiano dos bastidores e das filmagens de um longa-metragem. A atriz Valentina Cortese tenta se livrar de sua dificuldade em decorar as falas explicando para o diretor (o próprio Truffaut atuando como diretor) que quando ela trabalhava com Fellini (na Itália) tudo que tinha de fazer era recitar números. Truffaut pediu que ela decorasse as falas, pois na França é diferente. (imagem acima, à direita, Vítimas da Tormenta; abaixo, à esquerda, Obsessão - note-se ao fundo o cultivo de um campo de arroz)

Política Cultural ≠ Xenofobia

Os  italianos  dirigiram uma
minissérie sobre a vida/obra
 de Giuseppe Verdi  em 1982, 
em co-produção com França, 
Inglaterra e Alemanha (3). De
fato,   é  patético  ouvir Verdi
em inglês e não em italiano!


No caso do tempo de Mussolini, além do interesse financeiro, o decreto-lei tinha também a função de fazer do cinema um veicula de disseminação de uma política cultural que se adequasse aos moldes da ideologia fascista. Com efeito, a dublagem era utilizada para “proteger” o público italiano da exposição à influência estrangeira através da linguagem. Era um equivalente no cinema do objetivo central do Instituto Fascista da Cultura Nacional. Sob a direção de Giovanni Gentile, o Instituto pretendia preservar o caráter da vida intelectual nacional de acordo com o gênio da raça e favorecer sua expansão no exterior. A defesa do idioma italiano era também parte do desejo do regime fascista de purificar a paisagem cultural nacional, uma das atividades principais do Instituto era a defesa do idioma. Um exemplo disso foi uma tentativa de “proteger” o idioma banindo palavras estrangeiras. A substituição de palavras estrangeiras de uso cotidiano por similares italianos estava na ordem do dia. Embora outros países europeus estabelecessem estratégias de defesa “da” língua nacional, na Itália daquele tempo a campanha era xenofóbica e ligada às ambições colonialistas de Mussolini.



Nenhuma dublagem
é 100%,  mas a grande
maioria daqueles que são contra não admitiriam que
,
ao ler as l
egendas, pouco
ou  nada  percebem
do “tom” do ator



Durante dois anos, quando os filmes não podiam ser dublados, eram apresentados sem o som dos diálogos, que eram substituídos por intertítulos como nos filmes mudos. O problema da dublagem, mas que não era um problema para os fascistas, era a substituição do próprio conteúdo dos diálogos. O caso de As Aventuras de Marco Pólo (The Adventures of Marco Polo, direção Archie Mayo, 1938) foi exemplar. O ator norte-americano Gary Cooper fazia o papel de Marco Pólo, a censura bloqueou o filme sugerindo que ele era um representante inapropriado do lendário explorador veneziano. O problema foi resolvido ao se modificar a nacionalidade de Cooper. O título do filme mudou para Um Escocês na Corte do Grande Khan, e mudanças foram realizadas nos diálogos dublados em função dessa troca. Assim, quando se falava nas “lagoas venezianas”, a dublagem dizia “lagoas escocesas”, etc (4). Em 1982, o cinema italiano faria uma suntuosa minissérie para a televisão visando o mercado internacional, Marco Polo (5). Sob a direção do cineasta italiano Giuliano Montaldo, o ator que fazia o papel principal era norte-americano. A dublagem se fez presente, mas agora as lagoas venezianas eram as lagoas venezianas. (imagem acima, à direita, Vítimas da Tormenta; abaixo, à esquerda, Arroz Amargo)

Italiano Oficial x Dialetos 



Até que ponto
sotaques regionais das produções “folclóricas” das

tv’s comerciais reproduzem
ou de fato reinventam
a realidade?




Além da exigência de dublagem em italiano, os fascistas chegaram a propor que os filmes estrangeiros que desejassem entrar no mercado daquele país deveriam ser feitos com atores italianos também. Além da neutralização dos idiomas estrangeiros nas telas de cinema, outro interesse dos fascistas era a extirpação dos dialetos. Sabemos que antes da Unificação a Itália era composta de dezenas de reinos, cada um com seu idioma. Eles continuaram a existir no vácuo criado pela difícil tarefa de sintetizar um idioma italiano unitário e de âmbito nacional. Durante a década de 30 do século passado, as tentativas de apagar as diferenças regionais e criar uma língua nacional unificada levaram a mudanças na imprensa. A publicação de material em dialeto fica expressamente proibida. Os regionalismos, cujos dialetos são a expressão, passam a ser considerados resíduos dos séculos de servidão e divisões políticas da “velha” Itália. Portanto, os filmes estrangeiros deveriam ser dublados para esse italiano “puro”, eliminando-se dialetos e sotaques regionais. Isso é um ponto chave para compreender porque o Neo-Realismo do pós-guerra constituiu uma ruptura radical com o passado fascista recente. A utilização de atores não-profissionais (falando com os sotaques e dialetos que os definiam em termos de uma identidade regional diversificada) foi também uma reação contra princípios muito específicos da política cultural fascista (6).


Infelizmente,
lavagem cerebral
através da dublagem
não  é  um  privilégio dos

Estados totalitários e os cinéfilos não parecem
fazer idéia do que
isso sign
ifica



Durante a segunda e última década do regime fascista italiano, o Estado implementaria uma série de reformas institucionais de maneira a construir uma cultura cinematográfica que servisse aos seus interesses. Em 1934, centralizou distribuição, dublagem e censura, no Diretório Geral para Cinema, no âmbito do Ministério da Cultura Popular. Dentre as realizações do Diretório Geral para Cinema estão a fundação do Festival de Cinema de Veneza no mesmo ano, inauguração de uma escola nacional de cinema (Centro Sperimentale di Cinematografie) em 1935, e a conclusão das maiores instalações de produção cinematográfica na Europa (conhecida como Cinecittà) em 1937. No final de 1938, leis protecionistas minaram a até então livre distribuição de filmes de Hollywood ao mercado italiano. Era o que faltava para que o Estado realizasse a meta autárquica de um sistema vertical integrado de cinema nacional (7). É o caso de se pensar qual é a diferença da política cultural de Mussolini e a de certos países Sul-Americanos, aparentemente muito brandos (ou “ativamente omissos”) com grandes conglomerados de mídia que calam todas as vozes ao centralizar a língua e o sotaque em torno dos costumes lingüísticos das regiões economicamente dominantes. (imagem acima, à direita, Arroz Amargo; abaixo, à esquerda, A Terra Treme - na parede podemos ver o nome de Mussolini, logo acima [fora da imagem] está escrito mais um de seus slogans: "Decisamente verso il popolo": decididamente em direção ao povo)

Sciuscià e o Arroz Amargo da Derrota 



A Terra Treme,  famoso
pelo uso do dialeto local,
teve  de  ser  dubla
do em
italiano, porque ninguém
conseguia  compreender





De acordo com Steven Ricci, o fascismo italiano via sua platéia/público como um corpo nacional indiferenciado. Em termos mais amplos, concluiu Ricci, o cinema comercial italiano de então imaginava sua platéia como um corpo coletivo sem classes, sem regionalismos e assexuado. Apesar da supressão de palavras estrangeiras e expressões dialetais, o fascismo não conseguiu suprimir a dominação do sul atrasado do país pelo norte industrializado – uma dominação que mescla a inferiorização da população que fazia uso de dialetos e a inferioridade econômico-industrial e de classe. Apagar as marcas de diferença discursiva entre as platéias italianas significa também que essas diferenças eram invisíveis para elas. Desta forma, o discurso público (aquilo que se podia falar) era reconstruído ao se removerem essas marcas da diferença e inserindo outras produzidas por um nacional não regional e o fascista. O acordo do cinema italiano durante o período fascista condicionou a leitura cinematográfica (padronizou aquilo que poderia ser dito) – era daí que o Estado Fascista legitimava seu poder (8). É significativo lembrar o discurso de ruptura neo-realista quando Roberto Rossellini dirigiu Paisà (1946) (imagem abaixo, à direita Paisà, o tanque de guerra norte-americano estacionado de frente para o Castelo Sant'Angelo, em Roma).




O Neo-Realismo é mais do
que atores não-profissionais
e  o  mundo  da  rua,  é  uma
mudança   do   discurso   da
afirmação  da  identidade





Como Vítimas da Tormenta (Sciuscià, direção Vittorio De Sica, 1946), Paisà carrega já no título uma prefiguração lingüística da nova visão da nação. A palavra paisà deriva de paese, que significa simultaneamente país e cidade. Quer dizer, tanto a nação maior quanto as localidades que a constituem. Paisan, o título da versão em língua inglesa, refere-se aos cidadãos da mesma vila, os compatriotas. Esta coexistência entre peças locais com o todo nacional fornece o quadro teórico através do qual o filme busca juntar o país novamente num todo (9). Ao mesmo tempo em que mostrou a Itália de norte a sul, ela foi vista novamente em sua diversidade dialetal regional. Obsessão (Ossessione), ainda em 1943, e A Terra Treme (La Terra Trema – Episodio del Mare, 1948 - ambos dirigidos por Luchino Visconti,) são outros exemplos que podem ser citados – o último, inclusive, que teve de ser dublado para o italiano, foi um caso que mostrou o limite da diversidade, pois ninguém fora da aldeia em que foi filmado compreendia o dialeto.


A reprovação das
dublagens por muitos
ci
filos é proporcional ao
desinteresse  pela  defesa
dos reg
ionalismos em
seu próprio país




Ricci se refere a Vítimas da Tormenta como um notável exemplo de cinema antifascista. Por um lado, é tentador identificar o filme como a expressão do impulso neo-realista de registra a realidade social diária no imediato pós-guerra. Duas crianças sem família viviam na pobreza absoluta foram presas por trabalhar no mercado negro de bens (chocolate, cobertores) introduzidos pelos soldados norte-americanos em Roma. Sua existência diária era uma litania das distopias urbanas – dormiam com outros sem teto, em elevadores, num celeiro, um abrigo temporário e, finalmente, num reformatório. O próprio título original do filme é um subproduto da experiência da guerra. Sciuscià é um trocadilho, uma italianização, do inglês shoeshine – “engraxada”. A palavra se refere literalmente ao trabalho das crianças para sobreviver. Porém, ela também se refere figurativamente à confusão cultural (durante a época de Mussolini esse trocadilho teria sido considerado uma contaminação lingüística) trazida pela nova autoridade social da presença militar norte-americana.


Pelo  menos  na
Itália  fascista,  as  curvas
do  concreto  armado  não  levavam necessariamente
ao êxtase estético





Por outro lado, observa Ricci, mesmo antes de a narrativa começar o filme localiza as causas da distopia numa relação específica com o fascismo. Leremos uma mensagem de que os personagens e locais são imaginários, mas o importante está por trás do aviso. Trata-se do interior da prisão para onde os meninos serão levados (imagem acima, à direita). O desenho arquitetural desse espaço, em particular os arcos, é extraordinariamente similar ao da fachada do Pallazzo della Civiltà, um dos primeiros prédios construídos para a Exposição Universal de Roma (EUR) – uma nova cidade fascista dentro de Roma destinada a celebrar o vigésimo aniversário da Marcha (de Mussolini) sobre Roma (imagem acima, à esquerda, como foi mostrado por Fellini em As Tentações do Dr. Antonio, Le Tentazioni del Dottor Antonio, 1962). Que aquela prisão é ainda uma sobrevivência do regime anterior fica evidente no comportamento autoritário do diretor. Ele chega a lamentar o aumento de 60 % na taxa de criminalidade em comparação com 1936 – no tempo de Mussolini. Além disso, quando de uma inspeção na cozinha, por reflexo condicionado (embora com uma nota de embaraço) retribui a saudação fascista para o cozinheiro (última imagem do artigo). Ricci observa ainda outra confusão induzida por uma interpretação errada. Na seqüência em que os internos estão assistindo um cinejornal, porém não se trata mais daqueles produzidos durante o fascismo. Esse se chama Notícias do Mundo Livre, e em sua vida desgraçada uma das crianças identifica o mar com o paraíso (sorridente, o menino diz: “Pasquale... o mar!”) – embora a imagem mostrasse batalhas navais no Oceano Pacifico (10). Seria o caso de criticar pelo desserviço à compreensão do filme àqueles que “traduziram” o título de Sciuscià para Vítimas da Tormenta?



Em Arroz Amargo a
negação  do  discurso
fas
cista não é seguida
por uma avaliação do
novo discurs
o que se
instala em seu lugar




Mas não foi apenas o Neo-Realismo que contra atacou a estética fascista com doses cavalares de diversidade, outros genros cinematográficos também o fizeram. Ricci cita agora o caso emblemático de Arroz Amargo (Riso Amaro, direção Giuseppe De Santis, 1948) (imagem acima, à esquerda), segundo ele uma mistura de realismo social soviético e filme noir norte-americano – para outros, um filme ainda neo-realista. Diferentemente da produção cinematográfica fascista, aqui o público é convidado a se ver como participante na produção. O filme começa com o close-up de um locutor que fala diretamente para a platéia do cinema, após uma introdução: “Aqui é a Radio Turín. Oferecemos hoje aos ouvintes, um programa excepcional” (veja no vídeo abaixo). Então descreve a narrativa básica do filme, a experiência das mondines - plantadoras de arroz. Esta apresentação do locutor corresponderia a uma inversão da centralização cultural fascista. Entre 1945 e 1946, as rádios regionais substituíram momentaneamente o sistema centrado em Roma estabelecido pelos fascistas. O sistema de rádio fascista, Corpo Italiano para as Audições Radiofônicas, foi renomeado RAI (Radio Audizioni Italiana), a marca institucional que ainda hoje nomeia todo o aparato de rádio e televisão gerido pelo Estado. A Rádio Turín (Radio Torino) foi apenas um exemplo das entidades regionais que lutaram para manter sua autonomia e característica cultural (11).


A ordem social
fascista foi quebrada
pela e
mergência de novas
formas de consumo de mídia
e distribuição
, se aquilo que
emergiu foi melhor do que aquilo que estava antes
é outra história



Como o narrador/jornalista informa a platéia, as mondine “vem de todas as partes da Itália. É uma mobilização de mulheres de todas as idades e profissões. A maioria de camponesas, mas também operárias, empregadas, costureiras e datilógrafas”. E novamente, Ricci enfatiza, as mulheres falam uma rica gama de distintos dialetos italianos. Mas essas pessoas são agora também intérpretes ativos e consumidores de novas formas culturais. Além de cantar versos rimados tradicionais para desafiar a proibição de falar enquanto trabalham, também dançam o boogie-woogie, mascam chicletes norte-americanos, e avidamente lêem fotonovelas. Ricci sugere que as fotonovelas são a chave para compreender os personagens e eventos do filme. A protagonista insiste que tudo que as revistas mostram é verdade. O foco principal é Grand Hotel, cuja primeira edição apareceu um ano antes da estréia de Arroz Amargo e teve uma circulação que foi a mais de um milhão de cópias por semana. O filme apresenta um quadro particularmente imaginativo de como a nova cultura italiana poderia abordar questões locais específicas sobre trabalho (os direitos das mondine) no contexto do fascínio do país com os Estados Unidos e Hollywood. Para Steven Ricci, a ficção de Arroz Amargo coloca em palavras claras uma nova e complexa forma de leitura cultural para um país que passou 20 anos seguindo os padrões do discurso fascista.


Leia também:

Notas:

1. RICCI, Steven. Cinema & Fascism. Italian Film and Society, 1922-1943. Berkeley: University of California Press, 2008. P. 181.
2. Idem, pp. 60-1 e 62.
3. Giuseppe Verdi. Sua Vida, Sua Obra (La Vita di Verdi, direção Renato Castellani, 1982), lançado no Brasil pela distribuidora Versátil Home Vídeo.
4. RICCI, Steven. Op. Cit., pp. 64 e 197n30.
5. BONDANELLA, Peter. Italian Cinema. From Neorealism to the Present. New York/London: Continuum, 3ª ed, 2008 [1983]. P. 383.
6. RICCI, Steven. Op. Cit., p. 64.
7. Idem, pp. 157-8.
8. Ibidem, p. 164.
9. Ibidem, p. 172.
10. Ibidem, pp. 170-1.
11. Ibidem, pp. 175-6. 


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