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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

13 de abr. de 2009

Antonioni e a Trilogia da Incomunicabilidade (IV)

O Eclipse 



  “Eu estava em Florença filmando um eclipse solar. Havia um
silêncio  diferente  de  todos  os  outros  silêncios, luz  pálida, e depois
escuridão  silêncio total. Imaginei que durante um eclipse até nossos
 sentimentos  param. Daí surge parte da idéia para O Eclipse

Michelangelo Antonioni (1)

A Narrativa

O Eclipse (L’eclisse, 1962) começa aonde A Noite (La Notte, 1961) terminou, no dia seguinte. A Noite termina ao amanhecer numa dolorosa separação, O Eclipse começa ao amanhecer por outra separação (2). Riccardo, um intelectual quarentão, e Vittoria, com uns 25 anos, discutiram por toda a noite. Os dois estão mudos como naquele momento em que não há mais forças para argumentar. Se prestarmos muita atenção, podemos ouvir o som do ventilador preenchendo todo o espaço vazio entre os dois. Vittoria posiciona alguns objetos como se estivessem num palco - visualizando-os através de uma moldura vazia (imagem acima). Por que parece tão difícil percebermos nossas próprias posições na comédia humana?



“Estou cansada... deprimida. Chateada e desorientada
           (...) Há dias em que ter na mão um tecido, um livro, 
um  homem,  é  a  mesma  coisa”

Vittoria sobre a discussão com Riccardo


Ela retira um cinzeiro cheio de marcas da presença humana e coloca no centro do “palco” uma escultura abstrata – cujo significado é muito mais dependente da imaginação. Vittoria levanta os olhos e os pousa numa pintura em estilo naif – pinturas figurativas em estilo dito ingênuo, primitivo, sem técnica apurada. Entre a perda do sentido e um sentido ingênuo, Vittoria continua na mira do olhar de Riccardo. Agora ela abre a cortina e vemos o reflexo de seu rosto na janela; lá fora, a natureza. Após algumas tentativas de diálogo, Vittoria abre a cortina de outra janela e somos apresentados a um prédio em forma de cogumelo. O casal volta a conversar, o cogumelo entre eles. Mas aquela relação não tinha mais futuro.



“Quando nos encontramos eu tinha vinte anos. Eu era feliz”

Vittoria para Riccardo


Vittoria vai em busca da mãe, que está fazendo aplicações na Bolsa de Valores. Ali conhecerá Piero, um corretor da Bolsa que parece se entender melhor com a mãe dela (imagem abaixo; imagem acima, Riccardo). Numa cena antológica, pede-se um minuto de silêncio. Antonioni nos deixa assistindo durante um minuto completo aquele silêncio dos corretores coberto pelo canto frenético dos telefones. Entretanto, o hiperativo Piero rompe o silêncio e sussurra para Vittoria: “um minuto aqui custa bilhões”. Embora não venham a construir uma relação, é com ele que Vittoria atravessará o filme, desaparecendo no final.




"Enquanto houve amor, houve  entendimento...
Nada havia a entender"


Vittoria responde
à Piero, ele quer saber
se ela se entendia com
o namorado anterior




O Eclipse e o Dinheiro

Vittoria é
mais adulta que 
Cláudia (A Aventura),
menos problemática
que Valentina (A Noite),
mas, como elas, vive
frustrada com os
sentimentos
(3)



Vittoria não sente a mesma necessidade da mãe por dinheiro, embora compreenda o ponto de vista de sua mãe. O mundo dos homens, seja por suas atitudes nos relacionamentos (Riccardo) ou no mundo do mercado de capitais (Piero), parece algo muito confuso e distante. Entretanto, geralmente é dela que se diz isso. A sociedade espera que Vittoria se case, mas ela só consegue dizer, “não sei, não sei, não sei”. Ao descrevê-la, Antonioni disse que “(...) é uma garota calma, centrada, que pensa sobre o que está fazendo. Não há absolutamente nenhum sintoma de neurose nela. Em O Eclipse, a crise tem a ver com emoções” (4).



Ítalo Calvino descreve Vittoria como alguém que se abandona àquilo que a realidade lhe apresenta sem fazer previsões ou se programar: “(...) Viver em seu ritmo, olhar o mundo com olhos diferentes, até mesmo tornar-se puro olhar, eis o que deseja Vittoria”. De acordo com Calvino, as mulheres protagonistas da Trilogia da Incomunicabilidade procuram escapar dos esquemas da vida dos homens (da Trilogia):

“(...) O passeio de Lídia em A Noite, destinado a reencontrar uma verdade comprometida pelos cocktails literários, torna-se um método de vida para Vittoria e o tema principal de sua história [...]. Em O Eclipse, o propósito de Antonioni com as mulheres depositárias de uma verdade em oposição interna em relação à civilização contemporânea torna-se ainda mais claras e decisivas [...]. À engrenagem que tritura os homens que correm atrás de dinheiro e prestígio, ao ritmo da acumulação e do consumo, elas opõem seu [caráter lúdico] [...]. Numa situação social e cultural que não as satisfaz, as mulheres de Antonioni procuram agir mais a seu modo, para além de programas e esquemas” (5)



 “Eu nunca falei sobre uma trilogia, muito menos sobre alienação. 
Eu não quero dizer que essas classificações não fazem sentido. Entretanto, 
existem quatro,  não  três,  de meus filmes que tocam neste mesmo  tópico. 
O Deserto Vermelho  também  trata de uma  crise existencial”   (6)
 
O encontro de Vittoria com Piero não se transformará em amor, eles são muito diferentes. Ela quer compreender a si mesma e a vida antes de agir (o que implica certa imobilidade em sua vida), enquanto ele só age. “Por que mudar?”, Piero responde à Vittoria quando ela questiona seu estilo de vida. Ela também se impressiona com a reação de Piero ao encontrarem seu carro mergulhado no lago. Havia sido roubado na noite anterior por um bêbado, que agora está morto dentro do carro. Mas Piero só se importa com a possibilidade de poder reformar e vender o automóvel.

Na Bolsa de Valores, a mãe de Vittoria só pensa em dinheiro, culpando os socialistas ou o governo por qualquer queda nas cotações. Vittoria sabe que a mãe não quer voltar a ser pobre. Digno de nota nesta seqüência é a postura calma e indiferença dos funcionários da Bolsa que ficam no centro do salão, cercados pelos enlouquecidos funcionários da bolsa. Antonioni foi criticado por só mostrar a burguesia, mas ele dizia que só podia mostrar o que conheceu - o que incluía deixar claro que a burguesia não consegue resolver suas contradições. De qualquer forma, em O Grito (Il Grido, 1957) já nos havia apresentado Aldo, um proletário em crise existencial (o que, da mesma forma, gerou críticas da esquerda). Sobre a mãe de Vittoria, não consta que a crítica tenha feito comentários.


Essa mãe é fruto dos anos do Milagre Econômico italiano. Embora pague o preço de viver só para as cotações da Bolsa de Valores, ela ainda estaria na favela ou no interior rural se não fossem as tentativas (discutíveis ou não) dos sucessivos governos em reerguer a indústria do país e distribuir a renda. Numa entrevista publicada em 1979, Antonioni esclarece que, “em O Eclipse, o dinheiro é visto do ponto de vista daqueles que não tem nenhum, enquanto em A Noite tudo acontece independentemente do dinheiro. Se eu tivesse que filmar O Eclipse hoje, eu o teria feito bem mais áspero” (7). (imagem ao lado, Piero em ação)



Piero, assim como os outros personagens masculinos em A Aventura e A Noite, é muito carnal e com pouco talento para sentimentos reais. Corretor da Bolsa, com seus valores mercenários, sua falta de interesse nos seres humanos e seu sexismo, ele se torna uma figura indigesta. Interessado pelos seios de Vittoria, ele tem uma caneta com a imagem de mulher, que fica nua quando colocada na posição de escrita. A Bolsa de Valores é um comentário sobre como a vida se tornou abstrata. Não por acaso, depois de presenciar uma quebra da Bolsa, Vittoria pergunta a Piero para onde todo o dinheiro vai quando algo assim acontece. Ele não sabe responder (8).

O Eclipse Africano 


Em O Eclipse, o passado é sempre colocado como um elemento irrelevante pelos personagens. Velhas igrejas aparecem de relance aqui e ali, mas, apesar de preconceituosa, existe uma exceção. Trata-se da seqüência em que Vittoria se junta com Anita para visitar Marta, que vive na África. Vittoria até se veste como uma guerreira africana de estórias em quadrinhos e começa a dançar. Sem esquecer a grotesca mesa feita com o pé de um elefante no meio da sala. Essa África clichê, saída diretamente do passado colonial europeu, e italiano em particular, faz um contraponto com uma referência coberta de medo à África atual.



Antecipando questões sobre a representação visual levantadas em Depois Daquele Beijo (Blow Up, 1966), Antonioni ocupa bastante tempo desta seqüência filmando as fotografias da África. O cineasta parece querer nos indicar o papel da imagem tanto na introdução do exótico na cultura Ocidental quanto em sua elaboração (9). Antonioni já nos havia indicado a relação da sociedade italiana com a negritude em A Noite, quando Lídia e Giovanni assistem a um casal de malabaristas negros numa boate. Enquanto a mulher equilibra um copo cheio e se contorce, o homem, cheio de músculos, parece uma estátua que se move.



Nesta seqüência encontramos uma Vittoria sorridente enquanto dança pintada de preto e com roupas africanas típicas. Seria apenas alegria ou Antonioni fez a personagem mostrar os dentes para acentuar a comicidade do clichê? Afinal, Ela acha que são todos felizes! No exotismo distorcido de uma África idealizada, Vittoria até acredita que os africanos são mais felizes do que os europeus – entenda-se do que a sociedade moderna. Segundo ela, eles estão bem lá porque não pensam na felicidade, então as coisas “se arrumam”. Enquanto aqui, ao contrário, há um grande cansaço, também no amor (10).



Na década de 60, portanto contemporaneamente a O Eclipse, a África vivia uma fase de descolonização. Os países africanos, entretanto, se formavam em grande parte seguindo as fronteiras anteriormente demarcadas pelo colonizado europeu. Marta é parte desse contingente europeu que vive lá, mas vê os africanos como um problema. Ela não mostrou interesse nem mesmo pelos animais, seu comentário a respeito deles os toma apenas como caça (o elefante cujo pé virou uma mesa) ou praga (os hipopótamos mortos por comerem o pasto de seus bois). Ela parece não perceber que o problema eram os europeus. O comentário racista de Marta dá bem a dimensão do problema. Para ela, todos os negros são macacos que acabaram de descer das árvores! Antonioni voltará a mostrar a África em Profissão Repórter (Professione: Repórter, 1975), mas por um outro ângulo (11).

A Seqüência Final e o Vazio Cheio


“A  história  do  cinema  é  feita  por  filmes,  não pelas palavras de seus diretores. Muitas vezes as entrevistas
tornam
-se pretextos para discursos desagradáveis”   (12)

Michelangelo Antonioni


Vittoria e Piero estão no apartamento dele após um passeio aonde ele chegou a pedir que ela parasse de responder à suas perguntas com mais um “não sei!”. Depois de muitos sorrisos e brincadeiras, Piero recoloca seus telefones no gancho, mas não atende nenhum deles, que tocam ininterruptamente – é a última vez que o vemos. Vittoria desce a escada pensativa, num clima bem diferente do que acompanhamos minutos antes, mas que já se poderia antecipar na despedida do casal na porta do apartamento. Ela desce as escadas, e para diante da grade de um comércio, vira-se para o outro lado da rua e a câmera acompanha seu olhar, que sobe em direção ao topo de uma árvore - é a última vez que a vemos.



Por que não faria sentido concluir que essas imagens remetem
apenas ao que se vê? Talvez porque a dita sociedade da imagem não
consegue pensar por imagem,  só  por  lugares comuns (clichês)


O casal marcou um encontro às 8 horas, “no lugar de sempre”. Ninguém aparece, a não ser o próprio local do encontro. Na seqüência final, somem personagens, diálogos e narrativa. Em A Aventura e A Noite, os personagens são elementos gráficos visíveis, além de representarem seres humanos. No final de O Eclipse, desaparecem completamente. Talvez o desaparecimento de Anna, no primeiro filme, fosse uma prévia do final do terceiro. Piero e Vittoria desaparecem, mas não o campo moral e ético que recobre as relações humanas, que até se fortalece na ausência do casal. Brunette sugere que Antonioni precisava de personagens para nos envolver num nível emocional, mas a resolução artística e moral, pelo menos neste filme, só poderia ser alcançada em termos abstratos (13).



Nós estamos tão
cegos  para  a  vida
ao  nosso  re
dor,   que preferimos   acreditar
 que  ela  representa
outro   mundo



O caráter vago da seqüência final guarda uma relação com o mistério da própria realidade. Mostra a falência da utilização de signos (aquilo que está no lugar de outra coisa) para mapear a realidade. Nesse ponto, Brunette cita as palavras de Giorgio Tizzani sobre o polêmico fim de O Eclipse. Este final “mostraria a perda do signo, sua crise em termos de sua referência a algo [que ele representa]. Por essa razão, eu seria muito cuidadoso ao atribuir sentidos simbólicos – que poderiam parecer muito óbvios – a tais fragmentos perceptíveis” (14). Isso quer dizer que nessa seqüência as coisas se recusam a representar ou apontar para algo, ou para um significado fora delas.



Supor que
essas imagens
só  podem  significar

outra coisa qualquer
é  simplificar

demais




Não há um significado fixo possível se concluímos que ser é estar no mundo. Talvez esta seja a intenção de Antonioni, nos dar uma âncora (os personagens) para em seguida nos deixar à deriva (sem âncora). Tudo passa a depender de um ponto de vista, de nosso ponto de vista. Não é a narrativa que irá nos dar esse ponto de vista, mas nossa própria vivência. Nós ficamos esperando que os personagens apareçam para que possamos focar a situação. Sentido e emoção ainda se encaixam mesmo na falta do casal. O inumano do concreto e asfalto continua recebendo um sentido humano.



Segundo
Antonio
ni,
não existe nada
 
de  abstrato  na 
seqüência final 
de O Eclipse




De acordo com Brunette, este sentido nos chega tanto através de metonímia (quando nos lembramos de Piero e Vittoria perto deste ou daquele lugar) quanto através da natureza abstrata e gráfica das formas daquilo que vemos. Entretanto, o próprio Antonioni negou essa leitura “abstrata” da seqüência final: “os 7 minutos foram chamados de abstratos, mas realmente não é assim. Todos os objetos que eu mostro têm significação. Esses são 7 minutos onde apenas os objetos restam da aventura; a cidade, a vida material, devorou os seres humanos” (15).



Para aqueles
que conseguem "ver"
as imagens escolhidas
por Antonioni
, o vazio
está  repleto  de
pr
esenças




Brunette vai insistir que Antonioni estava se referindo em termos de significação da narrativa. Isso não impediria que um sentido abstrato emocional e intelectual pudesse existir na mesma imagem. Segundo Geoffrey Nowell-Smith, o problema de Antonioni é que ele tinha “horror de correspondências simbólicas óbvias”. O cineasta seria capaz de eliminar uma cena caso concluí-se que ela seria tomada como um símbolo do final do caso entre Vittoria e Piero. Como Pascal Bonitzer sugeriu, o vazio em Antonioni é cheio de presenças. (imagem ao lado, percebe-se também uma simetria entre as imagens finais dos três filmes)




“Uma vez que o cinema, como o inconsciente, não conhece a negação, o vazio em Antonioni existe positivamente; ele é assombrado pela presença. Não existe momento mais maravilhoso num filme de Antonioni (e cada um parece estruturado para chegar a este fim) do que aquele onde os personagens, seus seres humanos, são cancelados, apenas para deixar para trás, assim parece, um espaço sem atributos, um espaço puro... Espaço vazio não é vácuo: cheio de neblinas, de rostos passageiros, de presenças evanescentes ou movimentos aleatórios, esse espaço representa aquele ponto final de ser finalmente libertado da negatividade de intenções, de paixões, da existência humana” (16)


Leia também:


 Notas:

1. ANTONIONI, Michelangelo. Architecture of Vision. Writings and Interviews on Cinema. USA: University of Chicago Press, 1996. P. 196.
2. TASSONE, Aldo. Antonioni. Paris: Flammarion, 2007. P. 237.
3. Idem, p. 241.
4. ANTONIONI, Michelangelo. Op. Cit., p. 289.
5. TASSONE, Aldo. Op. Cit., pp. 241-2.
6. ANTONIONI, Michelangelo. Op. Cit., p. 202.
7. Idem, p. 199.
8. BRUNETTE, Peter. The Films of Antonioni. New York: Cambridge University Press, 1998. Pp. 82-3.
9. Idem, p. 168n16.
10. Tiago Mata Machado questionou a tradução do filme feita no Brasil – mostramos seu ponto de vista em Antonioni e a Trilogia da Incomunicabilidade (I) (arquivo de fevereiro de 2008). Segundo ele, a frase “tudo é muito trabalhoso, [até] o amor”, deveria ser substituída por: “aqui, há um grande cansaço, inclusive no amor”. Partindo da frase de Vittoria em italiano (“Qui invece e tutto una grande fatìca, anche a l’amore”), decidimos seguir um terceiro caminho: “aqui, ao contrário, há um grande cansaço, também no amor”. O argumento de Machado está disponível em:
http://www.italiaoggi.com.br/not04_0605/ital_not20050605a.htm Acessado em: 11/04/2009. A cena acontece aos 37:02.
11. BRUNETTE, Peter. Op. Cit., p. 85.
12. ANTONIONI, Michelangelo. Op. Cit., p. 200.
13. BRUNETTE, Peter. Op. Cit, p. 87.
14. Idem, 88.
15. Ibidem.
16. Ibidem, p. 89. Confira mais sobre a opinião de Bonitzer em Antonioni e o Vazio Pleno.  


10 de abr. de 2009

A Nudez no Cinema (I)




“Elas
não estão nuas
, 
mas sua combinação,
aqui
, é signo de
nudez”
(1)

Nathalie Bourgeois 


Uma Roupa que Despe 

Com a banalização da nudez nas telas, do cinema e da televisão, a sensualidade parece estar perdendo terreno para uma sexualização que tem mais relação com interesses econômicos (de quem vive desse comércio) do que propriamente com uma mudança de hábitos em relação ao corpo humano. Por muito menos que isso, Pier Paolo Pasolini chegou a abjurar da Trilogia da Vida, um grupo de filmes onde ele mostrava corpos nus. Mas sua intenção foi enaltecer uma forma mais autêntica e ingênua de encarar o próprio corpo e a sexualidade. Vendo a estética desses filmes copiada por uma indústria pornô nascente, Pasolini perde mais essa batalha, o capitalismo engole tudo. No Ocidente, desnudar o corpo virou uma obsessão. Entretanto, como lembraria Pasolini, uma obsessão que no fundo é uma imposição capitalista capturando o prazer sexual.

Mas não estamos aqui fazendo a apologia da burka, aquele véu com o qual países muçulmanos mais ortodoxos obrigam suas mulheres a cobrir o corpo todo. Por outro lado, às vezes cobrir o corpo intensifica o desejo. Pelo menos é assim que pareciam pensar nas décadas de 50 e 60, a peça de roupa íntima feminina que se chamava “combinação” era então muito utilizada. Ela cobria o corpo, entretanto, seu efeito visual como uma segunda pele era capaz de levar multidões aos cinemas (e não estamos falando de muçulmanos). (imagem ao lado, elas estão de vestido para noite, mas o modelo seria uma roupa de baixo)


Combinação na Telona

Muitos seriam os exemplos, dos quais lembraremos apenas os de algumas mulheres para quem a combinação funciona praticamente como uma roupa comum. Usando uma combinação de coloração clara ou “carne” e babados, encontramos Carole, a personagem de Catherine Deneuve em Repulsa ao Sexo (Repulsion, Roman Polanski, 1965) (imagem ao lado). Numa cena antológica, Carole chega do trabalho e vai tirando a roupa pela casa. Vestida apenas com a combinação e mais duas peças íntimas, suspende a perna até a pia para lavar os pés. Ela deixa apenas o fino tecido entre sua genitália e o espectador.



Em O Silêncio (Tystnaden, 1963), a personagem feminina criada pelo diretor sueco Ingmar Bergman não perde para as italianas de Antonioni. Duas irmãs num hotel em algum lugar perdido, uma delas transa com um desconhecido noutro quarto. Sua combinação de cor clara parece inebriar até a irmã (imagem ao lado). Uma Jovem Tão Bela como Eu (Une Belle Fille Comme Moi, direção François Truffaut, 1972) mostra Camile Bliss sendo caçada pela esposa de seu amante (imagem abaixo). Em pânico ela sai em disparada pelo parque vestida apenas com uma combinação barata, e acaba encontrando como único refúgio o caminhão de um desratizador maluco.



Jeanne Moreau e Mônica Vitti, em A Noite (La Notte, direção de Michelangelo Antonioni, 1961), usam vestidos para noite pretos, mas é como se elas vestissem combinação uma preta (primeira imagem acima, à direita). Em O Grito (Il Grido, 1957), também direção de Antonioni, a charmosa, ciumenta e carente dona do posto usa combinação preta (imagem abaixo, à esquerda). Em Paisà (1946), marco do Neo-Realismo, Roberto Rossellini apresenta uma jovem que se oferece ao soldado americano libertador. Infelizmente para ela, ele não reconhece a moça, que acaba por se prostituindo. (imagem no início do artigo)



Em Arroz Amargo (Riso Amaro, direção de Giuseppe De Santis, 1949), enquanto as outras mulheres, usando combinações velhas e camisolas, estão envolvidas em suas preocupações particulares e sindicais, a personagem de Silvana Mangano (cabelo marrom alourado, usando combinação preta) e sua amiga morena, usando uma combinação clara e florida, conversam. Seus corpos fazem um balé emoldurado por suas vestes. Essa é uma daquelas cenas, cada vez mais raras na tela de cinema, onde ombros que descansam sob finas alças de combinação roubam a cena dos closes de rosto (imagem ao lado). Temos três exemplos no cinema de Luchino Visconti.


Anna Magnani é uma mãe em Belíssima (Bellisima, 1951). Enquanto ela arruma sua filha e a si mesma para mais um concurso de beleza, nota que um menino vem assistir a mulher com sua combinação preta. Em O Trabalho (1962, parte da coletânea Boccaccio ‘70), Pupe, a personagem de Romy Schneider, vai se despindo enquanto fala ao telefone. Sandra, a personagem de Claudia Cardinale em As Vagas Estrelas da Ursa (Vaghe Stelle dell’Orsa, 1965) entra no quarto, se despe, solta os cabelos e se mantém altiva vestida com sua combinação, diante do marido e da empregada.


Nudez Velada 

O cinema tirou muita vantagem dessa peça de roupa feminina, para desnudar atrizes sem deixá-las nuas. A combinação viria a se tornar uma segunda pele de seda ou viscose. Reunindo numa só peça a camisa e a saia, a combinação marca o ponto de parada do strip-tease onde as outras peças (saia, corpete, sutiã, cinto largo para criar “cintura de vespa”, etc) podiam deixar o espectador na espera. Ombros carnudos, quadris marcados. Dito de outro modo, se a atriz fosse vista de combinação, teríamos pouca chance de vê-la nua. Duas deusas da combinação foram a italiana Anna Magnani e a francesa Simone Signoret. (ao lado Anna Magnani; abaixo, Romy Schneider)


No jubilo fetichista e no festival de closes das partes do corpo feminino que encontramos no cinema mundial, enxergamos através da combinação, geralmente sustentada por apenas dois fios entre o ombro e o início do pescoço. A combinação se conforma ao corpo, comprimindo-o até tornar visível o que ela recobre (sutiã, cinta, dobras da barriga). Houve época em que uma mulher usando combinação era como a inocência antes do pecado, quando ela já está nua sem ainda estar.



Leia também:

A Nudez no Cinema (II): Ingmar Bergman
Bertolucci no Mundo da Lua
As Deusas de François Truffaut

Notas:

1. BOURGEOIS, Nathalie. Combination In BERGALA, Alain; DÉNIEL, Jacques; LEBOUTTE, Patrick (orgs) Une Encyclopédie du Nu au Cinéma. Éditions Yellow Now/Studio 43 – MJC/Terre Neuve Dunkerque. P. 107. Com exceção da referência à Pasolini, o artigo resume o verbete. Pp. 106-8. 

5 de abr. de 2009

As Mulheres de Pier Paolo Pasolini (X)


Mamma Roma 



“Flor de merda,
me libertei de um
laço
, agora é a vez
de outra
mulher
ser
a escrava” (1)



Sinopse
(2)

Durante a festa do casamento de Carmine, Mamma Roma canta para os noivos. Logo compreendemos que ela pretende atingir o marido recém-casado, que também é seu ex-cafetão. Quando ela cantarola frases sugerindo a cegueira da recém-casada esposa, esta é chamada a responder em forma de canto. Já lemos na epígrafe acima qual foi a resposta que Mamma Roma cantarolou para a mulher (imagem acima; abaixo, à direita, mãe e filho olham para o cemitério em frente ao apartamento). Em torno daquele banquete de casamento encontramos gente simples. Agricultores que, como um senhor reclama que durante um brinde, chamam pejorativamente de caipiras. Desde os primeiros momentos do filme percebemos que existe uma grande tensão social por baixo daquela festa cheia de risadas e de uma linguagem bem liberal e cheia de ironias. O choque entre essa gente do campo e a nova mentalidade dos grandes centros urbanos é que constitui o pano de fundo dessa estória.

O bem que
Mamma Roma
quer para seu
filho acabará
por destruí-
lo


Mamma Roma é uma mãe de meia idade cuja vida de prostituta está para melhorar. Pelo menos essa é a opinião dela, pois, com o dinheiro que conseguiu juntar, de uma tacada só poderá se livrar de Carmine (o cafetão) (imagem abaixo, à direita), comprar uma banca de frutas e montar um pequeno apartamento na periferia de Roma. Na nova casa, ela pretende viver com Ettore, seu filho adolescente que até então morava com parentes pobres em Guidonia, uma cidadezinha próxima a Roma. Entretanto, em pouco tempo as aspirações de Mamma Roma entrarão em choque com o temperamento do filho e sua situação como um recém-chegado. Apesar dos esforços dela para ajudá-lo a se adaptar à escola, ao trabalho, a uma motocicleta, as raízes culturais dele dificultam sua sobrevivência nesse novo ambiente. No final, febril Ettore é pego roubando e vai para a prisão. Ele não se debate mais, paralisado e sozinho em sua cela. Talvez morto, talvez esteja em outro lugar. Em Guidonia talvez. E o sonho de sua mãe se dissolve no desespero.

Pasolini e as Mães


A periferia
de Roma:
uma janela
para o futuro


As “mães de Pasolini” constroem uma ponte entre passado e futuro através dos filhos. Representam tanto a inalienável verdade das origens quanto o inquieto espírito de sobrevivência no presente. Apesar disso, como condição para se individuar, o filho deverá se relacionar como um “Outro” em relação à sua mãe. Entretanto, ao agir nessa direção, as qualidades de doadora de vida da mãe tornam-se inacessíveis a ele – o que constitui uma grande perda para o filho. A relação entre Mamma Roma e seu filho Ettore será o primeiro exemplo dessa problemática na filmografia do cineasta italiano.

Ao contrário do primeiro filme de Pasolini, Accattone, Desajuste Social (Accattone, 1961), que se ocupava somente das prostitutas de rua na periferia de Roma (embora houvesse duas mães, Ascenza e Nannina), em Mamma Roma (1962) ele adiciona a maternidade e o conflito de gerações à temática das classes desprivilegiadas do pós-guerra na Itália. Pasolini mostra o conflito entre o passado e o presente nessa família de dois, na mesma periferia da Roma do início da década de 60 do século passado.

A outra mãe do filme é Bruna, que representa a Mãe Jovem (Madre Fanciulla) da cultura marginal da favela em Roma. Isso quer dizer que ela reflete o ideal poético pasoliniano da mulher jovem, rústica e de uma simplicidade charmosa. Enquanto o futuro de Mamma Roma aponta para os valores do centro da cidade, Bruna ocupa um espaço antigo e anônimo fora de Roma não muito diferente de Guidonia, a cidade onde Ettore foi criado. É justamente nesses campos abandonados em torno do conjunto habitacional que vive com sua mãe que Ettore encontra Bruna. Ela se torna sua única amiga e paixão, influenciando a relação entre Mamma Roma e o filho. Bruna não é exatamente uma mãe no sentido biológico do termo, ela representa sua mãe simbólica.

Close na Mãe 


Algumas coisas
se aprendem

desde criança!




Em Mamma Roma, as figuras maternas ainda representam importantes símbolos de inocência e autenticidade. No início do filme, durante a festa de casamento de Carmine, Mamma Roma insiste em perguntar a um garotinho se ele ama sua mãe, no começo ele dá um tapa no rosto dela (imagem acima), mas em seguida responde que sim. Carmine, rapidamente, fala para o garotinho: “Bata, moleque! É assim que se tratam as mulheres” (3). Antes de chegar a ele, Mamma Roma pergunta a todos o que são as crianças. Na seqüência seguinte, ela se encontra com Ettore no parque. Na passagem da criança pequena para Ettore, Mamma Roma recupera sua identidade de mãe, construindo a possibilidade de uma vida honesta em família – portanto, uma vida pura.

Mamma Roma também é uma Mãe Jovem (Madre Fanciulla), que na adolescência se prostitui para escapar da pobreza e de uma família opressora. Porém, a opressão ainda está lá, no esforço de seu ex-cafetão em mandá-la de volta para as ruas e destruir suas esperanças de uma vida honesta. De acordo com Pasolini, a consciência social dela fica evidente em suas aspirações materiais, embora não tenha ainda adquirido completamente a falsa consciência moral que caracterizaria a burguesia. Apesar de ela ter conseguido alguma liberdade em relação à Carmine e um emprego decente, não se inseriu completamente no mundo do centro da cidade. Essa inabilidade em mergulhar no presente e se livrar do passado a torna inocente aos olhos de Pasolini. De fato, Pasolini considerou que todos os grupos subalternos (jovens, velhos, mulher ou homem, ocidentais ou não) são genuínos.

Por dois motivos, em primeiro lugar esses grupos são expostos a diferentes formas de exclusão da sociedade. Em segundo lugar, seus modos de interação são anteriores aos comportamentos altamente conformistas de consumidores (que caracterizam as culturas ocidentais nas décadas posteriores a Segunda Grande Guerra). Não existe, para esses grupos, uma chance de escapar da opressão. Por essa razão, Mamma Roma sempre acaba subjugada pelo passado. Seja devido à perseguição de Carmine, ou os problemas de Ettore.

“Para além desses detalhes narrativos, Pasolini também expressa a inocência de Mamma Roma estilisticamente ao capturá-la em [closes] frontais, durante momentos chave do filme. Para Pasolini, este tipo de tomada tinha o efeito de suspender o sujeito para longe de uma experiência dolorosa ou ambiente deprimente, sugerindo que [Mamma Roma] de fato pertence há outro tempo e lugar, ou para indicar que a significação de seus pensamentos e ações num momento particular transcende a realidade do local. Esse tipo de filmagem em [close] é uma das técnicas características de Pasolini, que ele empregou muito durante toda sua carreira. Considere, por exemplo, as tomadas aproximadas de Stella em Accattone, Desajuste Social, ou a jovem Madonna em O Evangelho Segundo São Mateus [Il Vangelo Secondo Matteo, 1964], que está de pé diante de João quando ele entende que ela está grávida. Outro exemplo desse tipo de close simbólico acontece no casamento na seqüência de abertura em Mamma Roma, quando [ela] canta sobre sua liberdade em relação à Carmine. Outros exemplos incluem o momento em que ela vê seu filho pela primeira vez [no carrossel]; a vez que ela vai à igreja para ‘explorar’ oportunidades sociais para Ettore; a hora que ela pede ao padre que encontre um emprego para Ettore; o momento que ela chora enquanto olha Ettore trabalhando; e, finalmente, o momento em que ela descobre que Ettore morreu e olha pela janela, enlouquecida de desespero” (4)

Mães-Filhos e Elefantes


Ettore  não  está  pronto
para   mudar,  os  ideais pequeno-burgueses  da  mãe   o   atingem   como 
uma tonelada de tijolos



Após a festa de casamento de Carmine, Mamma Roma se aproxima de um parque onde encontra Ettore pela primeira vez. Ele está no carrossel, mas quando ela vai chamá-lo ele some – uma vida que gira e volta ao mesmo lugar, prefigurando sua vida e seu desaparecimento no final. Mas a mãe descobre onde o rapaz está e tenta alcança-lo, então Mamma Roma vê Ettore roubar de uma barraca do parque. Ainda que com a melhor das intenções, Mamma Roma começa a impor ao filho seus desejos. A subjetividade dos dois começa a se fundir, mas com a dominância dela, o que acaba gerando um profundo conflito psicológico e cultural nele, que a mãe nunca será capaz de resolver.

O impulso de diferenciação dele em relação à mãe onipotente se manifesta em sua simultânea atração/repulsão ao presente que ela apresenta e o passado, que faz o papel de útero metafórico. Ettore procura satisfazer sua mãe (vai para a escola, vai trabalhar, sai com a mulher que ela escolheu), mas ele nunca assimilará verdadeiramente os desejos dela. As imagens criadas por Pasolini mostram essa divisão emocional, como na cena do carrossel, ou quando Mamma Roma vai olhar Ettore no emprego de garçom que ela arrumou para ele (5).

Mamma Roma compra uma moto para ele, mas isso não é apenas um presente. O veículo é um símbolo de riqueza através do qual ela deseja que Ettore experimente as recompensas do trabalho duro e das metas materialistas como um incentivo para ganhar mais – é quando ela diz ao filho que um dia todos terão inveja dele, em função de seu progresso material. É exatamente neste ponto que a diferença cultural entre os dois vem à luz. Ainda no passeio de moto, Mamma Roma perguntou se ele não gostaria de ser um cavalheiro. Ettore respondeu que todos os cavalheiros são estúpidos, filhinhos de papai, e acreditam serem donos do mundo só porque têm algum dinheiro.


Ettore sente-se
estranho tanto em
relação  ao  centro
de  Roma  quanto

à periferia


Ela critica o pensamento de esquerda do filho, sem perceber que esses sinais de autonomia do filho ainda são adolescentes – como se nota pelo rápido fim da discussão em função do prazer do passeio de moto. Este é um dos momentos em que o filme faz notar o que liga e o que separa os dois: os objetivos materiais de Mamma Roma (seus olhos no futuro) e a estagnação de Ettore (seus olhos no passado). Numa primeira versão do roteiro, Ettore sonha que sua mãe está sendo atacada por um bando de elefantes e ele não consegue livra-la. Entretanto, na versão final, é o contrário que acontece, Mamma Roma e a nova sociedade que ela abraçou são os elefantes que espremem Ettore e sua diferença cultural (6).

Em vários momentos podemos ver Ettore em atos de resistência, como quando ele vende o disco antigo da mãe, com o qual tiveram alguns momentos de dança. Além disso, temos a decisão dele de sair da escola, escolher seus próprios amigos e continuar com Bruna. No final do filme, quando ele descobre que a mãe foi prostituta, destrói os planos dela completamente: declarando sua autonomia, ele rouba, vai preso, e acreditamos que ele morre. Mas ele morre chamando pela mãe e pedindo para voltar para Guidonia (o passado), às suas genuínas raízes culturais e de uma existência pobre que Mamma Roma originariamente representava. Ettore não consegue se diferenciar da mãe, o que teria permitido a ele apropriar-se das virtudes dela de forma construtiva. Entretanto, como ele não conseguiu se libertar, perpetuou-se a fantasia da onipotência maternal.

Roma é a Mãe



A verdadeira
prostituta
é Roma




O nome composto “Mamma Roma” nos remete a um ser ao mesmo tempo privado e público. Ela é a mãe de Ettore, mas também “Mãe” de Roma. Especialmente para “filhos” como Ettore, que cresceram na fronteira entre os mundos do presente e do passado. “Mamma Roma” é uma união de palavras que articula a mãe biológica com a noção maior de cidade/comunidade. O bem estar da sociedade está implicado na identidade de Mamma Roma, seus sonhos pequeno-burgueses colocam a sociedade em perigo: assim como Ettore não consegue criar ou recuperar sua autenticidade cultural através dela, a sociedade não pode alcançar sua própria autenticidade.


Cada vez que abriam
a janela do apartamento
e  olhavam   para   Roma,
o  bem    estar    daquela
relação ficava a
balado



Aquilo que Pasolini considera como o mais genuíno substrato social (os pobres e marginalizados) foi cooptado, não conseguiu alcançar o progresso final de uma transformação ideológica. “Mamma” “Roma” carrega várias outras dicotomias: passado x presente, subproletariado x pequena burguesia, cultura marginal x cultura de massa. Mamma Roma representa, ao mesmo tempo, um passado inocente (Madre Fanciulla, falta de consciência política) e um presente corrupto que se manifesta em seus interesses pequeno-burgueses (casa, igreja, amigos respeitáveis, bens materiais). Mas ela também incorpora o conflito de classes, por seu desejo de livrar-se do passado e subir socialmente. Mamma Roma também está dividida entre a cultura burguesa do centro da cidade e a cultura marginal de suas raízes subproletárias (7).



No primeiro
apartamento  em
Roma
, a vista dava
para o cemitério



Em duas caminhadas, onde Mamma Roma parece se dirigir às pessoas que surgem e desaparecem, mas no fundo é um monólogo, podemos perceber sua luta contra as forças que desejam derrubá-la. Na primeira, ela ainda está otimista sobre seu futuro e de seu filho. O contratempo que Carmine criou (se prostituir por duas semanas) não a abalou. Na segunda caminhada, Mamma Roma está mais resignada e seu andar mais lento e irregular. Se no primeiro caso ela comentava sobre suas origens e os motivos que a levaram à prostituição, no segundo está centrada nos obstáculos que não estavam nos planos (a interferência de Carmine e os problemas de Ettore na escola e no trabalho).

Na segunda caminhada, ela anda, anda, mas não chega a lugar algum. Ela fala, fala, fala, mas não conclui nada. Nenhuma das duas caminhadas a conduz para fora do mundo subterrâneo do subproletariado e na direção do futuro pequeno-burguês que ela almeja. As três prostitutas do filme representam o subproletariado em vários graus de assimilação cultural em relação ao discurso dominante: como as comunidades de classe baixa em torno de 1960 reagiam em relação ao simbolismo de Roma, aos ideais burgueses que gradualmente penetram os espaços urbanos (modernos projetos de conjuntos habitacionais) e as mentes (o desejo por bens materiais e maior espaço social).

“Mamma Roma claramente abraçou a ética moral e material da cultura dominante; Bruna perde-se num estado de adolescência ambíguo, mantendo-se enraizada num passado inconsciente conduzido pelo instinto; e Biancofiore está eqüidistante, dando e recebendo de cada domínio de maneira a existir confortavelmente. De muitas formas, a abordagem de Biancofiore é o mais prático, uma vez que ela não está nem totalmente limitada por um passado opressivo nem totalmente dirigida para um futuro intangível. Ela vive aqui e agora e, apesar de alguns comentários cínicos, aparenta estar relativamente satisfeita” (8)

Bruna e Biancofiore 

“Estou aqui 
para isso! Para
fazer favores
às pessoas”
(9)

Biancofiore  




Mamma Roma está decidida a afastar Bruna de Ettore, para isso pede ajuda a Biancofiore. Ao contrário de Bruna (imagem ao lado), que é apenas uma “garota fácil”, Biancofiore é uma prostituta (acima), embora as duas compartilhem uma personalidade despreocupada em relação à vida que levam. Biancofiore deverá transar com Ettore e tentar fazê-lo esquecer Bruna. Durante um breve tempo ela consegue, mas logo ele volta seu interesse para Bruna, ainda que em parte como resposta ao fato de que sua mãe desaprova a relação (10).

Biancofiore garante que Ettore esqueceu Bruna, ele até disse que a levaria ao zoológico para ver elefantes – sabemos o que elefantes poderiam significar neste filme. Mamma Roma também utiliza os serviços de Biancofiore para, com a ajuda do cafetão dela, armarem uma situação para chantagear um dono de restaurante que Mamma Roma descobriu na igreja. Já que ela não conseguiu que o padre lhe ajudasse a pedir um emprego de garçom para Ettore, ela armou essa situação e conseguiu o que a sociedade (na pessoa de um representante de Deus) não lhe deu.

Bruna pode ser “fácil”, mas Mamma Roma mostrou claramente como o machismo era uma moeda corrente naquele lugar. É só lembrar da cena onde o bando de desocupados, vizinhos de Ettore e Bruna, questionam o rapaz. Eles sabem para onde Ettore a está levando, no muro ao fundo existe uma porta, lá Bruna costuma fazer sexo com seus escolhidos. O bando critica a atitude de Ettore, que na verdade está apaixonado, como se ele quisesse apenas monopolizar o corpo dela. O bando não vai permitir que sua escrava sexual seja tirada deles. Além disso, para voltar à mãe de Ettore, Carmine não parou de insistir para que Mamma Roma voltasse a ser sua escrava. No primeiro caso, desejam um corpo. No segundo caso, o dinheiro que um corpo de mulher pode conseguir.

Ao contrário de Mamma Roma, Bruna não está dividida entre dois mundos, ela pertence à periferia de Roma. Embora ela possa ser enquadrada na categoria de Mãe Jovem (Madre Fanciulla), já sabemos que ela não é uma mãe no sentido biológico. Ela apenas compartilha com Mamma Roma aquela pureza antiga. A primeira vez que Ettore a encontra, ela está cuidando de um pequeno menino. Tempos depois, Ettore a presenteia com um cordão com a imagem da Nossa Senhora e o Menino. Ao contrário de Mamma Roma, Bruna não fica empurrando Ettore em sua direção. Ela representa uma mãe subproletária antes de acordar para a consciência de classe.

Diferentemente de Mamma Roma, ela vive o dia-a-dia nos terrenos abandonados que circundam o conjunto habitacional de moradias populares onde todos moram, como se estivesse imune à vida no centro da cidade. Mamma Roma e Bruna representam dois mundos opostos. Tanto quanto os sonhos de Mamma Roma, Bruna pode acabar dificultando uma individuação saudável de Ettore. Foi Bruna quem contou a ele que sua mãe era prostituta, uma atitude típica do autoritarismo de sua própria mãe em relação à Bruna.

Ettore acaba por rejeitar as duas mães. Bruna ainda vem perguntar se está com raiva pelo que ela revelou - Ettore a derruba. Agora ele recusa o dinheiro de sua mãe. Sua condição física se deteriora, com febre, ele tenta roubar um rádio num hospital, é preso e levado para uma enfermaria. Entrar em crise e quer sair dali quando ouve alguém cantarolar a mesma música do disco antigo de sua mãe que ele vendeu – e com o qual haviam compartilhado alguns bons momentos. Amarrado em uma mesa, imobilizado, Ettore chama pela mãe e pede para voltar para Guidonia (11). Aqui Pasolini não é objetivo, Ettore não fecha os olhos. Então ele pode estar morto ou catatônico (12) (A cena foi inspirada em Cristo Morto, de Andréa Mantegna, 1430-1506). A diferenciação de Ettore (quando ele se desliga delas para construir seu próprio eu) chegou tarde. Ele não foi capaz de alcançar a conexão vital com as origens puras da vida através das duas mulheres de sua curta existência.

Encarar a paisagem na
janela,  depois  do fim de
Ettore
, é a hora da verdade entre  aquela  mulher  e  a 
cidade que ela acreditava
que  ia  salvar  vidas


Notas:

1. “Fiore de merda,/ io me ‘so Iliberata de ‘na corda,/ adesso tocca a ‘n’ altra a fà la serva!”. SITI, Walter; ZABAGLI, Franco (eds) Pier Paolo Pasolini per il Cinema. Milano: Mondadori, 2 vols. 2001. Vol. 1, p. 158.
2. RYAN-SCHEUTZ, Colleen. Sex, the Self, and the Sacred. Women in the Cinema of Pier Paolo Pasolini. Canada: University of Toronto Press, 2007. P. 46.
3. “Menaje, ‘a ragazzì! Le donne cosi se pijano”. SITI, Walter; ZABAGLI, Franco (eds). Op. Cit., vol. 1, p. 159.
4. RYAN-SCHEUTZ, Colleen. Op. Cit., pp. 49-50.
5. Idem, pp. 51 e 238n9.
6. Ibidem, p. 53.
7. Ibidem, p. 55.
8. Ibidem, pp. 91-2
9. SITI, Franco, ZABAGLI, Franco. Op. Cit., vol. 1, p. 213.
10. RYAN-SCHEUTZ, Colleen. Op. Cit., p. 89.
11. Ibidem, p. 57.
12. SITI, Walter; ZABAGLI, Franco (eds). Op. Cit., vol. 1, p. 261. 


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