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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

27 de out. de 2010

O Cinema Político de Valerio Zurlini





“Se a África ainda está
como está, ou vocês não
nos  ensinaram  nada ou
teria  sido  melhor   que
não  o  tivessem   feito”


Resposta de Lalubi ao oficial holandês
que sugeriu que a África sem os europeus
se  entregou  à  barbárie  do  genocídio





Novamente os Sádicos Europeus

Estamos na África negra ao sul do deserto do Saara, mas poderia ser lá também. Os europeus ainda se encontravam em suas colônias africanas na década de 60 do século passado quando começam a irromper movimentos que levam à independência da maioria dos países africanos que por séculos estiveram sob as botas de ferro das mais variadas nações européias – que abaixo do equador rasgaram todos os seus princípios de igualdade, fraternidade, liberdade e democracia em nome de seus interesses econômicos. Lalubi, é um dos líderes de um desses movimentos de libertação nacional. Prega a não violência e o direito a autodeterminação de seu povo. É caçador por militares europeus no que parece ser o antigo Congo belga. Nos momentos iniciais do filme, sucedem-se imagens de seus encontros clandestinos com o povo oprimido de seu país e chacinas patrocinadas pelo invasor branco em seu encalço. São os derradeiros momentos de uma aventura colonialista sanguinária – o colonizador português resistirá até meados da década seguinte, quando uma revolução em seu próprio país libertará os portugueses da opressão e do atraso político.


Os governos
europeus falam de liberdade   e   justiça,
mas mataram todos os africanos que puderam
e ainda hoje se servem
do  caos  na  África



As tropas belgas finalmente encontram Lalubi e, como seria de se esperar de um colonizador europeu desesperado, torturam-no com requintes de crueldade típicos da arrogância européia. Também parecem neste momento os parceiros africanos dos brancos imperialistas. Sem pudores, sugerem que Lumumba deveria ser assassinado. O oficial holandês encarregado do centro de tortura parece cansado de comandar um bando sanguinário de açougueiros, mas coopera com os políticos corruptos da área porque é assim que os europeus trabalham. Simulam uma fuga de Lalubi e o matam, juntamente com o ladrão italiano com quem dividiu a cela. Sentado a sua direita, o italiano olha o corpo morto de Lalubi. No momento seguinte, ele próprio será fuzilado e cairá sobre o corpo do africano formando uma cruz. Os europeus saíram, mas continuam lá. Agora vendem armas para alimentar seus bolsos com o sangue das intermináveis guerras civis. Continuam lá e lá ficarão até que todos os africanos que sobraram se mudem para a Europa, que então fará renascer seus líderes políticos xenófobos e nazistóides. Reivindicarão “a Europa para os europeus”, até que o próximo Hitler seja parido de suas próprias entranhas e dê uma surra em todos eles novamente.

O Realismo e o Cinema Político 




No país do neo-realismo, 
era   difícil   abordar   a
história por outro ângulo





Sentado à Sua Direita (Seduto alla sua Destra, 1968), penúltimo longa-metragem dirigido por Zurlini, recebeu críticas muito negativas na época de sua estréia (1). Na superfície um filme aparentemente distante da temática zurliniana, seu conteúdo explicitamente político está perfeitamente inserido no contexto de 1968, um ano conturbado na vida política e cultural da Europa Ocidental – que falava em liberdade, mas sustentava seu crescimento econômico em grande parte com a exploração de suas colônias na África e Ásia, onde também dava asas a um sadismo racista inconfessável. O filme é uma adaptação da biografia de Patrice Lumumba (1925-1961), líder nacionalista do Congo – ex-colônia belga no centro da África. Chegou a Primeiro Ministro depois da independência, mas rapidamente foi deposto e assassinado – até hoje existem suspeitas de que os belgas foram auxiliados pelos Estados Unidos. Giacomo Martini fala de um “cinema político” de Zurlini, não apenas pelo conteúdo de Sentado à Sua Direita, mas também em função de um questionamento dos cânones neo-realistas. De acordo com Martini, o cinema de Zurlini mostrou como capturar as contradições de uma sociedade também através da metáfora, da parábola, da ironia e do paradoxo através de uma análise de caráter psicológico e existencial. De fato, no próprio Michelangelo Antonioni encontramos indícios disso.



Para falar
sobre a realidade
, um documentário sempre
será mais realista que
a ficção?




Martini está sugerindo que o cânone neo-realista, cuja importância não pode ser negada, tornou-se um fardo pesado demais para o cinema italiano, impedindo que se considerasse lícito contar a História laçando mão de elementos psicológicos e existenciais e não apenas sociológicos e políticos (2). Uma história pode ser contada a partir da alma e das dores de personagens, a dimensão privada e existencial pode servir a análise social e política sem recorrer a imagens “documentais” de forte impacto “realista”. A propósito de Antonioni, por exemplo, veja-se a mudança de clima em Profissão: Repórter (Professione: Reporter, 1975), quando o cineasta insere imagens supostamente documentais de um fuzilamento na África – embora Antonioni sempre tenha se recusado a indicar a fonte do material ou mesmo sua veracidade (3). Zurlini não faz isso em Sentado à Sua Direita, mantêm-se dentro daquela cela com Lumumba e seu amigo, o ladrão e factótum italiano. A solidão de Lumumba, líder negro africano assassinado pelas multinacionais européias, é mais importante para Zurlini do que as imagens de arquivo que muitos cineastas utilizam para marcar a “autenticidade” de um roteiro. Zurlini era um homem de esquerda, mas havia sido acusado por quase toda a crítica de fazer filmes excessivamente intimistas. O cineasta afirmou o “realismo” não é a única maneira de compreender a realidade, de contar a história de um personagem pouco importante, tragado pela condição de objeto ou instrumento de uma dimensão social cruel e contraditória (4).

Como Mostrar a Verdade Afinal?



Qual é o melhor
método para entender a
vida, suas contradições e paradoxos?





De acordo com Martini, o elemento central na obra de Zurlini, a solidão de seus personagens, dolorosa e profunda, a incapacidade de comunicar, é o produto de uma sociedade que gera injustiças e monstros. Os personagens de Zurlini, inclusive o revolucionário Lumumba, são impregnados de uma profunda e angustiante solidão. De Verão Violento (Estate Violenta, 1959) e O Deserto dos Tártaros (Il Deserto dei Tartari, 1976), a mesma solidão presente em Dois Destinos (Cronaca Familiare, 1962), se encontra em Sentado à Sua Direita. No caso de Lumumba, solidão que adquire um significado subversivo profundo na cena do cárcere e no encontro com a solidão do ladrão com quem compartilha seus últimos momentos. Na opinião de Martini, esta cena é uma das mais belas do cinema de Zurlini. A crítica afirmou que o cineasta fez um filme muito intimista. Ele respondeu dizendo que “se pode contar, ler a realidade social, também de modo diferente daquele ‘realista’, talvez contando a vida ‘privada’ de um personagem pouco importante ou representativo, mas sempre objeto e instrumento de uma dimensão social cruel e contraditória” (5).


A solidão
de Lalubi contamina
e  d
á   força   ao  tema
político em Sentado
à Sua Direita




Do ponto de vista de Martini, desde Quando o Amor é Mentira (Le Ragazze di San Frediano, 1954) até Dois Destinos, encontramos personagens que apontam para a existência de uma dimensão social precária, marcada por injustiças antigas e novas. Em Dois Destinos, o conflito de classes transparece num drama familiar privado. “Se é verdade que no cinema de Zurlini é dominante o drama dos sentimentos pessoais, não podemos esquecer que a contextualização na qual a história se desenvolve representa um ato de denúncia de uma sociedade onde as divisões e as injustiças são dominantes” (6). Martini ressalta que em Sentado à Sua Direita podemos encontrar todo um complexo de problemáticas que a esquerda sempre condenou: colonialismo, racismo, os mercenários, o poder econômico das multinacionais, a violência do capitalismo contra as aspirações de liberdade e independência do povo africano e de líderes como Lumumba.


Considerado
sob o âng
ulo da
solidão de Lalubi
, o filme não se distancia muito do restante da obra
de Zurlini


A seguir ao assassinato de Lalubi, uma testemunha foi morta para que a farsa fosse completa – a vítima foi um terceiro companheiro de cela, que, apesar de alguns momentos de hesitação enquanto o italiano cuidava dos ferimentos do líder negro, nunca tomou partido na questão e até surrou o italiano quando este lhe pediu um pedaço de sua camisa para poder passar óleo nas feridas de Lalubi. A seguir, o grupo de mercenários belgas encontra outra testemunha. Um menino enrolado num pano branco, que foge enquanto os europeus tentam alcançá-lo com as balas da metralhadora. Mas ele consegue escapar. Obviamente, conclui Martini, esta imagem que compõe a cena final de Sentado à Sua Direita, representa a esperança, a continuidade da luta do povo negro pela liberdade – embora não devamos esquecer que o africano que permitiu a prisão de Lalubi ao delatá-lo também estava envolto num pano branco. Este final foi muito criticado como simples e óbvio demais. Era a primeira vez, disse Martini, que o sempre “apocalíptico” cinema de Zurlini esboçava uma mensagem positiva, uma esperança.





Antes
,  reclamava dos
filmes  existenciais  de
Zurlini.  Agora,  a  crítica
reclama  que  Sentado
à sua Direita é óbvio!







“Mas não poderia ser diferente, visto o caráter marcadamente ‘político’ e terceiro-mundista do filme. Era uma escolha obrigatória apenas porque o tema que o filme seu propôs não poderia se fechar com a morte do protagonista, mas tinha de deixar aberta uma fenda. Talvez hoje, se ainda fosse vivo, Zurlini mudaria aquele final, porque a história contemporânea da África demonstrou e demonstra que também a esperança era e é uma utopia. Mas aquele final permanece uma escolha justa. Porque Zurlini, decidindo fazer aquele filme, havia aceitado um modo de trabalhar ideológico e político que não lhe pertencia. Era talvez um desafio para demonstrar a si mesmo que estas questões também não lhe eram estranhas. Mas como me disse em nosso encontro, queria se misturar, confrontar-se com um clima, uma situação dominante, para responder aos críticos que o acusavam de fazer filmes ‘intimistas’” (7).

Leia também: 

Pênis e Racismo
Desinformação Já
Yasujiro Ozu e Suas Ironias
Agnieszka Holland e Seu Camaleão Judeu
O Cinema de Fassbinder e o Medo da Solidão
Crítica Cinematográfica e Mercado (I), (II)
Medo do Diferente ou Conveniência Política?
O Monstro Brasileiro de Hollywood
A Fabricação do Herói (I), (final)
O Cinema de Fassbinder e o Medo da Solidão
Fassbinder: Um Cineasta e Seu País
O Cinema e o Passado: O Caso do III Reich (I), (II), (final)
Masculinidade e Violência
Pênis Guerreiro


Zurlini e o Deserto de Nossas Vidas
As Histórias das Estórias de Valerio Zurlini
Valerio Zurlini, Ilustre Desconhecido
A Trilogia de Valerio Zurlini

Notas:

1. MARTINI, Giacomo. Zurlini e le Contraddizioni del Sessantotto in ACHILLI, Aberto; CASADIO, Giamfranco (orgs.) Elogio Della Malinconia. Il Cinema di Valerio Zurlini. Ravenna: Edizioni Girasole, 2000. P. 87.
2. Idem, p. 88.
3. BRUNETTE, Peter. The Films of Antonioni. New York: Cambridge University Press, 1998. P. 140.
4. MARTINI, Giacomo. Op. Cit., p. 89.
5. Idem.
6. Ibidem.
7. Ibidem, p. 90. 


24 de out. de 2010

Pier Paolo Pasolini: É Intolerável Ser Tolerado





Pasolini

dizia que o capital
é falsamente tolerante
.
Preferia ser condena
do injustamente a ser
tolerado
(1)






Liberdade de Expressão e Sexualidade

Pier Paolo Pasolini contou que algumas vezes foi parado na rua por gente que desejava saber quando seria lançado O Decameron nº2, ou O Decameron Proibido. O mercado cinematográfico confundiu muitas pessoas, fazendo com que se acreditasse que Pasolini teria dirigido filmes que na verdade não passavam de plágio de seus próprios filmes. O Decameron (Il Decameron, 1971), a primeira parte da Trilogia da Vida, foi seguido de várias imitações que atingiram grande sucesso frente ao público. Conhecidos também como Decamerotic, tais imitações foram classificadas como falsificações por Pasolini. A mesma coisa aconteceu, ressentiu-se Pasolini, com Os Contos de Canterbury (I Racconti Di Canterbury, 1972) (fonte das imagens deste artigo) e As Mil e Uma Noites (Il Fiore Delle Mille e Una Notte, 1974) a segunda e terceira partes da trilogia. Este último, por exemplo, foi precedido por um Finalmente... Mille e Una Notte (direção Antonio Margheriti, 1972) – como às vezes acontece na concorrência entre canais de televisão, quando lançam um programa porque sabem que o concorrente lançará. Filme direcionado apenas ao erotismo – na parte final existe até um personagem que imita o Homem sem Nome de Por Um Punhado de Dólares (Per Un Pugno di Dollari, 1964), do faroeste espaguete de Sergio Leone.


O Decameron de Pasolini
foi sua maior bilheteria e

teve oitenta denúncias por pornografia, sem falar nas cidades aonde a cópia foi seqüestrada pela justiça(2)




Mas tudo isso, explicou Pasolini em 1973 num anexo ao roteiro de Os Contos de Canterbury, é apenas o lado puramente comercial ou concorrencial (“desleal, sem vergonha, brutal”) da coisa (3). Uma concorrência desleal que, esclarece o italiano Pasolini, não é nada fora do comum, mas típica da vida italiana. Chamou atenção também para o fato de que o silêncio dos moralistas italianos em relação a essa falsificação de sua obra foi o exato oposto dos veementes protestos deles em relação à liberdade da representação sexual no Decameron e Os Contos de Canterbury. Ou melhor, protestou-se contra as obras de Pasolini, mas não contra os plágios, as falsificações puramente apelativas e sexuais de suas obras. Na opinião de Pasolini o que se pode inferir dessa atitude, seja dos moralistas e funcionários da justiça que não se importam com o caso, ou dos críticos cinematográficos (que Pasolini identifica com as “elites privilegiadas”), é que nesta sociedade da falsa liberdade sexual apenas devemos nos indignar com a liberdade sexual quando ela é liberdade de expressão (4).



Na Itália, Os Contos de
C
anterbury foi acusado de obscenidade e as autoridades tentariam por três vezes seqüestrar as cópias (5)





Pasolini chamou atenção de que a nudez e o sexo nos filmes da trilogia tenham escandalizado alguns, ao passo que o plágio direcionado à pornografia (e a pornografia em si mesma) do qual seus filmes foram vítimas não parece incomodar. De qualquer forma, comentou Pasolini, apenas as pessoas com anormalidade sexual se escandalizam com o sexo. Mas é preciso deixar claro que quando Pasolini se refere a sexo ele não está falando de pornografia. Ele mesmo afirma que o sexo é um elemento essencial de seu cinema. É urgente a necessidade, afirmou Pasolini em 1973, mostrar aquilo que por hipocrisia, medo e angústia, não mais se representava ainda que seja parte essencial da existência: o sexo justamente em seu momento existencial, corpóreo, carnal. Não deve haver limite à liberdade de expressão nesse ponto. Em sua nudez extrema e indefesa, que é parte da vida real, tem o direito de ser expresso e representado. O poeta e cineasta quer dizer que a representação do ato sexual em seus filmes é uma exigência da expressão total do real (6).




Os falsos moralistas não
toleravam Pasolini
, mas toleravam a indústria
pornográfica nascente





Portanto, a primeira conclusão de Pasolini foi que ninguém pode ser impedido de representar em sua totalidade a realidade que se experimentou. Isto deveria tornar-se um princípio, segue-se que devemos abandonar a idéia da pornografia como um crime: estão é um problema de cultura, não de lei. Assistir pornografia, definiu Pasolini, é um problema de falta de cultura dos espectadores. Mas eles não podem ser impedidos pela lei de assistirem, caso esse direito lese o princípio de liberdade (aqui o poeta-cineasta esclarece, ele se refere a pessoas adultas e, portanto, de direito e responsáveis). Enquanto Pasolini faz esses comentários, Os Contos de Canterbury está para ser julgado pela terceira vez no tribunal italiano – mais um dos tantos processos da vida do poeta-cineasta. Ele nos esclarece que, pelo menos até 1973, o artigo 529 do código penal italiano exclui a possibilidade de a “obra de arte” ser julgada segundo os conceitos de pornografia e obcenidade. Pasolini explica que fez algumas adaptações no orginal em função do comportamento do narrador (que mais “fofoca” do que narra) seria impossível de transferir para o filme – a reinterpretação fruto de sua “leitura crítica” foi questionada.



(...) Na verdade,
o corpo nu é o símbolo da
realidade
: e, de modo ainda mais direto, o sexo”

Pier Paolo
Pasolini (7)




Além disso, defende Pasolini, o filme não é uma ilustração do livro de Geoffrey Chaucer (1342-1400), mas um trabalho de autor a partir dele (8). Sendo assim, a fofoca foi substituída por elementos “mais sileciosos”. Pasolini admite que pode ter sido um erro, pois um conto imerso no falatório pode ser mais claro do que se for representado por uma imagem frontal, com uma pureza de intensidade e controno que nõ faz parte de sua natureza. A poesia então, conclui o poeta-cineasta, pode ter chegado fragmentada. Talvez, então, o filme de Pasolini não se enquandre mesmo enquanto “obra de arte”! – um conceito que Pasolini chamou de espiritualista-burguês da arte, que supõe uma sociedade onde existem círculos capazes de ter sentimentos e idéias que as massas seriam incapazes de perceber. A segunda conclusão de Pasolini é que a liberdade de expressão se justifica por si mesma, e não pela poesia – como se só ela fosse uma “obra de arte”. E Pasolini conclui afirmando ser difícil até para o mais cego dos moralistas imaginar um autor que trabalhe obcecado pelo dilema: “Ou faz poesia ou vai para a prisão” (9).


Notas:

Leia também:

Pier Paolo Pasolini e a Trilogia da Vida
Pasolini e o Sexo Como Metáfora do Poder (I), (II), (III), (IV), (V)
Quando Fellini Sonhou com Pasolini
Pasolini o Corvo Falante
As Mulheres de Pier Paolo Pasolini (I), (II), (III), (IV), (V), (VI), (VII), (VIII), (IX), (X), (XI), (XII)
A Nudez no Cinema (I), (II), (III), (IV), (V), (VI)
A Poesia e o Cinema em Tarkovski
Arte do Corpo: Veruschka e a Pele Nua
Yasuzo Masumura e os Olhos nos Dedos
Os Auto-Retratos de Francis Bacon
Arte do Corpo: HR Giger e Seus Pesadelos
Yasujiro Ozu, o Tempo e o Vazio
Isto é Hollywood!

1. NAZÁRIO, Luiz. Todos os Corpos de Pasolini. São Paulo: Perspectiva, 2007. P. 98.
2. BERTELLI, Pino. Pier Paolo Pasolini. Il Cinema in Corpo. Atti Impuri di um Eretico. Roma: Edizioni Libreria Croce, 2001. P. 247.
3. PASOLINI, Pier Paolo. Libertà e Sesso Secondo Pasolini (1973). in SITI, Walter; ZABAGLI, Franco (eds) Pier Paolo Pasolini per il Cinema. Milano: Mondadori, 2 vols. 2001. Vol. 1, p. 1567.
4. Idem, p. 1569.
5. BERTELLI, Pino. Op. Cit., p. 275.
6. SITI, Walter; ZABAGLI, Franco (eds) . Op. Cit., pp. 1570-1.
7. BOARINI, Vittorio (org.). Erotismo, eversione, merce. Bolgona: Capelli, 1974. Pp. 110-1 in BERTELLI, Pino. Op. Cit., p. 269.
8. SITI, Walter; ZABAGLI, Franco (eds) . Op. Cit., p. 1568.
9. Idem, p. 1571-2.

23 de out. de 2010

Mussolini e a Sombra de Auschwitz


“O cinema não
pode  servir  c
omo
um local de
refúgio em
relação às preocupações
do mundo real
. Noutras
palavras,  o  cinema
não é um jardim”

 

A proposta de Vittorio De Sica,
de acordo com Millicent Marcus (1
)



 

Nada Como Imaginar Que o Mundo Não Existe

Estamos em Ferrara, região ao sul de Veneza, no conturbado período vivido pela Itália entre 1938 e 1943. Aos poucos a aliança entre Benito Mussolini e Adolf Hitler se faz sentir na comunidade judaica. Entretanto, apesar do aumento das restrições à vida dos judeus imposta pelas Leis Raciais instauradas por Il Duce, a propriedade dos ricos Finzi-Contini se mantém como um refúgio fora do tempo. O extenso jardim da grande mansão é como uma espécie de Éden, o mundo exterior parece distante e irrelevante. Além disso, como fizeram contribuições em dinheiro ao partido Fascista, sentem-se seguros. Como Giorgio foi expulso do clube da cidade por ser judeu, ele aceita um convite para freqüentar a quadra de tênis naquele jardim que é praticamente uma floresta e apaixona-se por Micol (a quem já conhecia desde a adolescência), a aristocrática e inatingível filha dos donos da casa. Enquanto isso, Giampiero Malnate, outro convidado igualmente impressionado com a jovem mulher, pergunta sobre ela, mas se mantém afastado. O interesse de Giorgio por Micol é repetidamente desencorajado por ela. Durante uma viagem à França para visitar seu irmão em Grenoble, Giorgio toma conhecimento da amplitude da perseguição dos Nazistas aos judeus.






Mesmo ricos, judeus são judeus. Micol vai aprender a lição e será tarde demais








Entretanto, a hipótese bastante plausível de que a situação na Itália tenda a piorar para os judeus não impedirá Giorgio de retornar para a sua armadilha amorosa em Ferrara. Certa noite, ele descobre que Micol mantinha um relacionamento com o marxista Malnate – que morrerá nos campos de batalha da União Soviética lutando no exército italiano, a favor de Hitler e contra Stalin. Giorgio descobre o casal num canto isolado do imenso jardim da mansão. Malnate dorme, mas ela percebe a presença de Giorgio escondido na janela e faz questão de acender a luz, mostrando seu peito nu e deixando mais do que evidente o que os dois estavam fazendo ali. Finalmente, ele se liberta de sua fantasia de amor e age a tempo de sobreviver ao furação que varre a vida dos judeus italianos fora do refúgio edênico daquele interminável jardim dos Finzi-Contini. Em 1943, com a invasão das tropas aliadas na Sicília, cai o governo de Mussolini e os aliados alemães tornam-se oficialmente ocupantes e os italianos um povo dominado – Il Duce instaura a República de Salò ao norte da Itália, mas o último bastião do fascismo italiano não resistirá por muito tempo. A partir daí, os nazistas levam a cabo seu desejo satânico em relação aos judeus, jogando-os nas câmaras de gás. O filme termina com recolhimento dos judeus de Ferrara pelas autoridades, mas ficamos sabendo que Giorgio e a mãe conseguiram escapar.

Um Tema Pouco Ventilado

Judeus eram obrigados
a se anunciar
diante das  
autoridades  e  em  seus 
documentos. Além disso, 
sua presença deveria ser 
notificada à polícia pelos
proprietários de hotéis e
também  pelos  próprios
hóspedes foi decretado
pelo Partido em 1938
(2)


Juntamente com O Porteiro da Noite (Il Portiere di Notte, direção Liliana Cavani, 1974), Pasqualino Sete Belezas (Pasqualino Settebellezze, direção Lina Wertmüller, 1975) e Kapo, Uma História do Holocausto (Kapo, direção Gilo Pontecorvo, 1960), O Jardim dos Finzi-Contini (Il Giardino dei Finzi Contini, 1970) é um dos poucos filmes italianos até meados da década de 70 do século passado que tocam na questão da perseguição aos judeus durante o regime fascista de Benito Mussolini. De acordo com Millicent Marcus, isso evidencia uma “memória fraca” em relação ao Holocausto. Desta forma, não existe a possibilidade de uma comunicação entre os filmes sobre este tema na Itália como existe, por exemplo, entre os filmes dos gêneros comédia italiana e cinema político. Com a honrosa exceção de A Vida é Bela, que polemiza com os quatro filmes citados, especialmente com Pasqualino Sete Belezas por ser uma comédia. O filme de Vittorio De Sica faz uma ponte entre o grupo de filmes que abordaram o tema no início dos anos 60 e os seguintes, da metade dos anos 70. De fato, o texto original de Bassani compartilha com Kapo, Uma História do Holocausto, O Ouro de Roma (L’oro di Roma, direção Carlo Lizzani, 1961) e Andremo in Città (direção Nelo Risi, 1966) uma narrativa de romance sentimental que termina com o sacrifício da protagonista feminina às forças do Holocausto. Millicent Marcus sugere que a versão do livro de Bassani presente na versão cinematográfica de Vittorio De Sica avança num tratamento sexual mais explícito típico da década de 70 e trás para primeiro plano um cinema autoconsciente que vai além e complica o realismo menos sofisticado de seus predecessores (3).




Aos judeus seria
proibida a contratação de

funcionários não-judeus decreto de 1938 (4)








De Sica introduziu uma série de modificações na adaptação do texto de Bassani para o cinema. Talvez a principal delas foi não se confinar ao jardim, ultrapassando suas fronteiras e contextualizando a vida daquela gente nos desdobramentos das Leis Raciais promulgadas por Mussolini. A estória de Bassani acontece entre os anos de 1938-9, enquanto De Sica aprofunda os acontecimentos até seu desfecho entre 1942-3 – Bassani toca no assunto, porém apenas superficialmente. Marcus destaca dois momentos em que De Sica anuncia a necessidade de o ponto de vista cinematográfico ultrapassar os muros do jardim, e são duas cenas que se passam justamente dentro de um cinema. Por duas vezes presenciamos uma platéia assistindo um cine-jornal que mostra a guerra em andamento, também são apresentados cenas de O Triunfo da Vontade (Triumph des Willens, 1935) o tristemente famoso documentário de Leni Riefenstahl sobre o congresso do Partido Nazista de 1934. Nas duas oportunidades, os comentários de um personagem judeu incitam ataques anti-semitas, numa das vezes pela própria polícia. Desta forma, apaga-se a fronteira da ação dentro e fora da tela, os acontecimentos no cine-jornal têm conseqüências diretas naquilo que acontece na platéia. “O cinema não pode servir como um espaço de refúgio em relação às preocupações do mundo real. Em outras palavras, o cinema não é um jardim” (5).

Uma Verdade Inconveniente


Em 1938 os fascistas laçam
afinal  a  Declaração  sobre
a Raça
, na qual afirmaram
que os judeus não aceitam 

“sinceramente” o fascismo
porque é contra a política
e a psicologia hebraicas
(6)





Os judeus italianos sempre foram nacionalistas, portanto seria natural que eles vissem Mussolini a partir deste prisma. Até 1938, as relações entre italianos e judeus, pelo menos em Roma, pareciam ser bastante cordiais. No projeto de reurbanização de Roma instaurado por Mussolini entre 1925 e 1940, Il Duce pretendia restaurar grandeza do Império romano como herança do povo italiano – e no processo abrir grandes avenidas que serviriam bem aos desfiles de suas tropas e seus estandartes. Em 1934, um desses projetos tratou do problema do Circus Maximus. Se no glorioso passado Imperial fora um local para corridas de bigas, na década de 30 estava abandonado pelas autoridades e havia se tornado uma confusão de cortiços, galpões e lixões. Para resolver o problema, era necessário remover o cemitério judeu na encosta do Aventino com vista para o Circus Maximus. O cemitério já estava lotado desde 1894 e a comunidade judia permitiu que os corpos fossem exumados e transferidos para uma seção especial do cemitério principal de Roma, Campo Verano. Uma placa foi deixada no local, que hoje é o jardim municipal rosa de Roma, Rosa Comunale. Em 1904, os judeus inauguraram uma sinagoga em Roma com uma vista para o rio Tibre, apenas a uma pequena distancia da Piazza Venezia e do Monumento a Victor Emmanuel. Entre os judeus havia grande consideração por Victor Emmanuel II, que tirou Roma das mãos do Vaticano e aboliu o gueto papal, dando cidadania aos judeus. O gueto sobreviveu como um bairro, que se transformou num bairro judeu de moradia voluntária (7).




O decreto que
tratava da arianização
de salas de aula nas escolas
públicas Italianas
é de 1938
(8)





Entretanto, em 1939 a situação já havia mudado. Por ocasião das comemorações dos vinte anos de fundação do movimento fascista, uma exposição foi montada. Numa das salas, um tema sinistro era apresentado, a suposta ameaça dos maçons e dos judeus. De acordo com Borden Painter, ao contrário do Nazismo germânico, o Fascismo não possuía nenhuma doutrina racial ou anti-semitismo antes de 1938. Muitos judeus italianos apoiavam o governo de Mussolini como parte do apoio ao nacionalismo italiano, que havia garantido a eles cidadania e direitos civis quando da unificação da Itália. Após zombar das teorias raciais de Hitler em 1933, Mussolini mudou de postura em 1938, promulgando as Leis Raciais para agradar a seu aliado Adolf Hitler. O Fascismo agora afirmava claramente que os judeus (e também os negros e outros “inferiores”) eram uma ameaça à Itália – leia-se à pureza da raça italiana, herdeira dos grandes guerreiros do glorioso passado imperial. Entre 22 e 25 de setembro de 1937, Mussolini visitou seu camarada do norte em Berlim. No ano seguinte, seu amigo do norte retribuiria visitando Roma (9).





Todas  as  proposições racistas
do governo eram direcionadas
apenas aos judeus. A não ser a
decisão sobre  a  proibição dos
casamentos  entre italianos de
“raça  ariana”  e  “uma  pessoa
pertencente  à  outra  raça”
(10)






Na Mostra della Rivoluzione Fascista de 1942-43, a sala dedicada ao judaísmo e à maçonaria retratava vividamente uma ligação entre as ameaças judia e bolchevista através de fotografias, caricaturas e slogans. Continuando com seu projeto de transformação e revigoramento de Roma, Mussolini lançou uma série de projetos de recuperação (bonifica). Originalmente vinculado à drenagem de regiões pantanosas na costa do Lazio, Sicília e Sardenha, para serem transformadas em região de plantio, a recuperação era apenas a face mais visível do desejo Fascista de livrar a nação de toda uma patologia social e cultural. As campanhas de recuperação agrícola (bonifica agricola), recuperação humana (bonifica umana) e recuperação cultural (bonifica della cultura), juntamente com as leis anti-semitas, são vistas como diferentes facetas e fases de um projeto mais abrangente para combater a “degeneração” e renovar radicalmente a sociedade italiana “tirando as sementes ruins e limpando o solo”. Quando o governo de Mussolini caiu em 1943, os nazistas se transformaram em tropa de ocupação e puseram em prática lá também sua política de extermínio dos judeus. Em outubro 16 de outubro de 1943 acontece a evacuação do gueto de Roma, situação precedida pelo episódio patético da extorsão dos judeus pelo tenente coronel Herbert Kappler, chefe das SS em Roma. Ele havia recebido 50 quilos de ouro dos judeus em troca de proteção. Em uma semana, quase todos judeus de Roma já haviam sido mortos e cremados em Auschwitz (11).




Em  1938
Mussolini
escreve um artigo negando

anti-semitismo no governo
fascista, mas afirmou que o
governo tem o direito de
monitorar os judeus (12)





Os judeus conquistaram a cidadania italiana em 1848. Portanto, quase cem anos depois, em 1938, eles a perdiam novamente pelas mãos de Mussolini. Em 1933, Arnaldo Momigliano afirmou que, na Itália, os judeus sempre estiveram na vanguarda durante as lutas pela unificação do país. Disse ainda que do século XVII ao XIX, a história dos judeus italianos era essencialmente a história da formação de sua consciência nacional italiana. Mas isso não era mais forte do que a aliança entre Mussolini e Hitler. Em 1938, os judeus contavam aproximadamente 47 mil na Itália. Sarfatti observa que Mussolini já havia demonstrado um comportamento anti-semita desde 1919, quando escreveu um artigo no jornal Il Popolo d’Italia contra “os grandes banqueiros judeus de Londres e de Nova York, ligados por vínculos raciais aos judeus que, em Moscou e Budapeste, se vingam contra a raça ariana”. Entretanto, seu anti-semitismo era mais a um nível pragmático, ao sabor das circunstâncias. Em 1922, Mussolini estreitou os laços do Estado com a Igreja Católica e o crucifixo foi reintroduzido em todas as salas de aula (entre os retratos do rei e de Mussolini) – uma imagem muito recorrente nos filmes italianos que retratam o período que vai até o fim de Segunda Guerra. O crucifixo voltou também a Coliseu, ao Campidoglio e também às casernas, tribunais e repartições públicas e privadas. Mussolini insistia não haver anti-semitismo, que toda fé religiosa será respeitada, mas... particularmente a dominante – que é o catolicismo (13).

Era Preciso Dizer Alguma Coisa 





“Não sabemos contar
a  história  da  Itália”

 

Ettore Scola,
2002 (14)






Vittorio De Sica articulou sua visão crítica de que o cinema não pode ficar alheio ao que acontece fora da tela à narrativa de um amor infeliz, a uma protagonista feminina sacrificada às forças do Holocausto, a uma recordação melancólica do glamour de antes da guerra. Se para De Sica o cinema não é um jardim, Marcus afirma que em O Jardim dos Finzi-Contini ele é um altar. Mas um altar onde a mulher amada é sacrificada em nome da redenção histórica. Nas seqüências que acompanham a Páscoa dos judeus, De Sica organiza a cena do sacrifício no contexto da profecia ao final da comemoração que remete a fundação do reino de Deus na terra. Micol trouxe um cálice de Veneza que prevê o futuro, seu irmão Alberto será o interprete do oráculo (o profeta Elias) e consulta o recipiente a respeito das nuvens de guerra que se avizinham da Itália e de suas vidas: “Será longo e difícil, mas no final haverá total vitória das forças do bem”. Surge a imagem de Micol, ligando sua imagem à profecia de vitória através do sofrimento e a ovelha cujo sacrifício torna possível a celebração da sobrevivência coletiva dos judeus na Páscoa. Por sinal não deve ser coincidência a morte de Giampiero Malnate, o amante marxista de Micol, nos campos da então União soviética, paradoxalmente lutando no exército italiano aliado dos nazistas. Em Os Girassóis da Rússia (I Girasoli, 1970), De Sica havia contado a saga da esposa de um desses soldados. Ele não era dado como morto, mas também não se sabia seu paradeiro. Ela vai até lá e o encontra casado e desmemoriado. Mas ao contrário de Malnate, ele era apenas um mulherengo sem ideologia.



Em 9 de fevereiro de 1940

Benito Mussolini avisa aos
 judeus que todos deveriam 
deixar  gradualmente,  mas
definitivamente,  a  Itália (15)





A família Finzi-Contini relutava em agir face às atitudes cada vez mais anti-semitas por parte do governo. Ficamos sabendo durante o filme que os Finzi-Contini fizeram contribuições em dinheiro para o Partido Fascista, o que talvez alimentasse uma vaga sensação de segurança. A família optou por ficar no jardim, adotando uma postura de negação das evidências. Na opinião de Marcus, embora a paralisia da família pareça derivar mais de uma rendição fatalista do que de uma crença cega na justiça social, a passividade dos Finzi-Contini sugerem uma relutância elitista em adentrar a confusão da arena da realidade concreta (16). Marcus cita Il Cielo Cade (direção Andrea e Antonio Frazzi, 2000) como outro filme que, bastante tempo depois, apresentará a mesma questão. Em termos psicanalíticos, define Millicent Marcus, tal atitude sugere uma forma de negação neurótica (17). Concorrência Desleal (Concorrenza Sleale, direção Ettore Scola, 2001) é outro filme que aborda as questões do anti-semitismo na Itália. Scola fez duas afirmações poderosas a respeito de seu trabalho, inicialmente disse numa conferência em 2002 que os italianos não sabem contar a história da Itália, depois confessou que se sentia culpado de alguma forma já que mesmo sendo criança em 1938 esteve nas festividades durante a visita de Adolf Hitler àquele país.

De acordo com Scola, os cineastas italianos não conseguem construir uma ponte entre seus filmes autobiográficos e a realidade nacional mais abrangente por causa de um narcisismo que só os deixa ver a intimidade de suas vidas particulares. Para contar a história da Itália, Scola acredita que o cineasta tem de aprender a contar não a sua história, mas a história do outro. É isso que Scola imagina que faz em Concorrência Desleal, que conta a história de duas famílias (uma delas judia) e os efeitos das Leis Raciais promulgadas em 1938 em suas vidas. Dois comerciantes de roupas concorrem pela clientela, até o dia em que um deles é expulso pelas autoridades e mandado para o gueto. Na delegacia, assistimos ao chefe de polícia comentando sobe um livro que havia sido apreendido, um romance entre uma italiana e um negro – de acordo com o policial, “obra lesiva à dignidade nacional, inadmissível num país que tem seu império na África”. Concorrência Desleal revisita o evento histórico por trás de Um Dia Muito Especial (Una Giornata Particolare, 1977) – a visita de Hitler à Itália em 1938. A dona de casa Antonietta e o homossexual Gabriele são banidos das festividades, enquanto no filme anterior a aliança entre Hitler e Mussolini muda completamente a vida do comerciante judeu – que perdem todos os direitos de cidadania recebidos na época do da unificação da Itália (18).

Na opinião de Marcus, os dois filmes formam um díptico que representa a luta do próprio Ettore Scola para chegar a um acordo com a sua presença quando criança naquele dia 6 de maio de 1938. “Eu também contribui de alguma forma”, confessa Scola, “para convencer Hitler de que a Itália havia alcançado o mais alto grau da eficiência militar. Quando o Chanceler do Terceiro Reich veio visitar Roma, eu era, na verdade, um filho da loba, o mais baixo nível dos militares Fascistas, exigido de todo cidadão italiano dos dois aos sete anos de idade. Na Via dell’Impero, eu também participei na grande parada em honra de nosso convidado”(19). Em Concorrência Desleal, aos oito anos de idade Pietruccio testemunha quando seu amigo judeu Lele Della Rocca é levado com toda a família – Scola teria sete anos na época em que este tipo de evento ocorreu. A motivação de Vittorio De Sica para adaptar O Jardim dos Finzi-Contini de Bassani para o cinema obedeceu também a questões pessoais: “depois do desastre de Girassóis da Rússia, eu quis fazer um verdadeiro filme do De Sica, produzido apenas como eu queria. Eu aceitei esse tema porque sentia intimamente o problema judeu. Eu mesmo sinto vergonha porque nós todos somos culpados da morte de milhões de judeus... Eu queria, por consciência, fazer esse filme e estou feliz porque o fiz” (20).

Leia também: 

Uma Judia Sem Estrela Amarela
O Porteiro da Noite e a Cumplicidade da Vítima
As Mulheres de Mussolini, Ontem e Hoje
Uma Vida Não Tão Bela
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O Cinema e o Passado: O Caso do III Reich (I), (II), (final)
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Fassbinder: Um Cineasta e Seu País

Notas:

1. MARCUS, Millicent. Italian Film in the Shadow of Auschwitz. Toronto: University of Toronto Press, 2007. P. 48.
2. SARFATTI, Michele. Gli Ebrei nell’Italia Fascista. Vicende, Identitá, Persecuzione. Torino: Giulio Einaudi Editore, 2ª ed., 2007. P. 182.
3. Idem, pp. 29, 46, 47.
4. SARFATTI, Michele. Op. Cit., p. 182.
5. MARCUS, Millicent. Op. Cit., p. 48.
6. SARFATTI, Michele. Op. Cit., p. 163.
7. PAINTER Jr., Borden W. Mussolini's Rome. Rebuilding the Eternal City. New York: Palgrave Macmillan, 2005. Pp. 33, 148.
8. SARFATTI, Michele. Op. Cit., p. 164.
9. PAINTER Jr., Borden W. Op. Cit., pp.78-9, 139.
10. SARFATTI, Michele. Op. Cit., p. 165.
11. PAINTER Jr., Borden W. Op. Cit., pp. 86, 148.
12. SARFATTI, Michele. Op. Cit., p. 152.
13. Idem, pp. 3, 33, 55, 56-7.
14. MARCUS, Millicent. Op. Cit., p. 112.
15. SARFATTI, Michele. Op. Cit., p. 193.
16. MARCUS, Millicent. Op. Cit., p. 102.
17. Idem, p. 47.
18. Ibidem, p. 114.
19. Ibidem, pp. 114-5.
20. Ibidem, pp. 116-7. 


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