A Doce Vida e o Apocalipse Existencial Feminino
O cineasta italiano Federico Fellini pintou um retrato cruel da humanidade que vivia em torno da Via Veneto, na Roma no início da década de 60 do século passado. Em A Doce Vida (La Dolce Vita, 1959) acompanhamos Marcello, o personagem de Marcello Mastroianni, em sua vida à deriva num universo ao qual não se sente ligado, porém sem o qual não saberia mais viver. Dos muitos elementos que merecem atenção, um capítulo a parte são as mulheres de Marcello ou, talvez seja melhor dizer, as mulheres de Fellini. Neste filme, três delas se destacam: Maddalena, Emma e Sylvia (imagem acima, Mastroianni e Anita Ekberg, Sylvia, na famosa sequência da Fontana di Trevi, em A Doce Vida).
A indefinição da bem nascida Maddalena seria o efeito colateral de um meio de vida estúpido, que torna as pessoas insensíveis ao prazer exatamente pelo excesso dele. Não sabe se deseja Marcello. Ela quer ser prostituta, mas também quer um “amor normal”. Maddalena quer se casar com Marcello, mas não pretende abrir mão dos outros encontros sexuais (imagem acima, à direita, Maddalena se declara a Marcello enquanto perambulam numa espécie de labirinto; à esquerda, nos delírios de Guido, em Fellini 8 ½, sua esposa é uma faxineira prestativa e conciliadora que limpa e alimenta a todo o harém dele, completo com suas babás-prostitutas-amantes-fetiches). Maddalena quer ser ela mesma, mas não sabe onde se procurar. Em graus variados, Maddalena, Sylvia e Emma (e Marcello e os outros homens e mulheres do filme) apresentam as mesmas características. Na cena final, quando Marcello está na praia e percebe aquela menina ao longe acenando para ele, tenta falar com ela, mas não conseguem se comunicar. Uma alegoria da sociedade contemporânea? A menina simbolizaria a pureza que Marcello procura. Mas quando a encontra, não consegue compreendê-la.
Poderíamos imaginar Emma como o outro lado
de Sylvia no caleidoscópio das mulheres de Fellini?
Ao contrário de Maddalena, Emma quer prazer apenas de um homem. Entretanto, esse prazer-atenção-afeto nunca é suficiente. Marcello nunca será capaz de preencher uma falta nela que é tão profunda que impede Emma de enxergar aquele que ela diz que ama - Marcello. Mas Emma prefere tentar o suicídio a vadiar como Maddalena. Atriz famosa e bela, Sylvia flerta com Marcello – que está totalmente tomado de amores. Contudo, no final, Sylvia prefere voltar para o marido bêbado que bate nela - além disso, como Sylvia, ele pertence ao mundo de Hollywood. Marcello, por sua vez, não consegue se decidir por nenhuma delas. No fundo, talvez, queira todas, só que “suas” mulheres estão tão perdidas quanto ele.
De fato, o personagem de Marcello Mastroianni em Fellini 8 ½ (Otto e Mezzo, 1963) não apenas delira que possui um harém com todas as mulheres de sua vida (a única que trabalha como faxineira é sua esposa) como incluiu em seus devaneios momentos em que sua esposa confraterniza com sua amante (imagem acima). Em Cidade das Mulheres (Città delle Donne, 1980) o protagonista (também personagem de Mastroianni) nutre o mesmo fetiche de possuir todas as mulheres. Entretanto, em A Doce Vida Marcello não conseguiria receber afeto de Maddalena-Emma-Sylvia mesmo que tentasse, porque elas já não sabem o que é isso, ou nunca souberam – esse é um mal que aflige tanto mulheres quanto homens. No caso da Itália, e para além de Freud, as raízes de tal confusão existencial-sexual teriam sido bem plantadas anos antes.
De fato, o personagem de Marcello Mastroianni em Fellini 8 ½ (Otto e Mezzo, 1963) não apenas delira que possui um harém com todas as mulheres de sua vida (a única que trabalha como faxineira é sua esposa) como incluiu em seus devaneios momentos em que sua esposa confraterniza com sua amante (imagem acima). Em Cidade das Mulheres (Città delle Donne, 1980) o protagonista (também personagem de Mastroianni) nutre o mesmo fetiche de possuir todas as mulheres. Entretanto, em A Doce Vida Marcello não conseguiria receber afeto de Maddalena-Emma-Sylvia mesmo que tentasse, porque elas já não sabem o que é isso, ou nunca souberam – esse é um mal que aflige tanto mulheres quanto homens. No caso da Itália, e para além de Freud, as raízes de tal confusão existencial-sexual teriam sido bem plantadas anos antes.
Amarcord e a Patologia do Uniforme
Como cresceu na Itália durante a vigência do regime fascista de Benito Mussolini, talvez devêssemos considerar o comentário de Fellini a respeito da repressão sexual então reinante. Evidentemente, sexualmente falando, o mundo dos homens era muito liberal, contanto que todos eles concordassem em casar e ter filhos – os bordéis eram administrados pelo Estado. Às mulheres, restava a liberdade de optarem por serem donas de casa e mães. Considerada questão de saúde pública, o aumento da taxa de natalidade fez da demografia o maior inimigo dos donos de bares, assim como das camisinhas, do aborto e do trabalho feminino fora de casa. Sob a bandeira da luta contra o alcoolismo, Mussolini chegou a fechar 25 mil bares e tavernas. Os homens deveriam procurar outro passatempo debaixo dos lençóis. Todos os métodos contraceptivos foram condenados pelo regime fascista, ao que a Igreja se agradou. (imagem acima, Titta quase sufocando entre os seios da gorda da tabacaria em Amarcord)
Mas como fazer com que as mulheres concordassem em largar os empregos, voltar para casa e assumir os velhos papéis de mãe-esposa-arrumadeira? (1). Os industriais precisavam do trabalho das mulheres, sem esquecer que elas eram mais “maleáveis” porque menos sindicalizadas. Elaboraram-se dois princípios para a política do trabalho na Itália de Mussolini: 1) o Estado deve tutelar as mulheres enquanto mães ou futuras mães; 2) as mulheres devem trabalhar, mas seria melhor se o fizessem em casa (2). No fundo, destacou Sergio Vicini, todo o peso da política demográfica recairá sobre os ombros das mulheres. Em 1929, o programa demográfico fascista é lançado: 1) desestímulo às migrações para o exterior e para as cidades; 2) medidas de estímulo à natalidade; 3) proteção da maternidade e da infância (3). (imagens acima, Cidade das Mulheres. À esquerda, Snàporaz se diverte com imagens e vozes de mulheres no museu das conquistas femininas do Dr. Xavier Katzone; à direita, sequência do congresso feminista, a encenação mostra uma dona de casa cuidando da cozinha e dos bebês enquanto o marido, caracterizado como um monstruoso Frankenstein, aparece apenas para comer e fazer sexo; no final da encenação, a plateia grita em coro repetindo: "matrimônio, manicômio")
Mas como fazer com que as mulheres concordassem em largar os empregos, voltar para casa e assumir os velhos papéis de mãe-esposa-arrumadeira? (1). Os industriais precisavam do trabalho das mulheres, sem esquecer que elas eram mais “maleáveis” porque menos sindicalizadas. Elaboraram-se dois princípios para a política do trabalho na Itália de Mussolini: 1) o Estado deve tutelar as mulheres enquanto mães ou futuras mães; 2) as mulheres devem trabalhar, mas seria melhor se o fizessem em casa (2). No fundo, destacou Sergio Vicini, todo o peso da política demográfica recairá sobre os ombros das mulheres. Em 1929, o programa demográfico fascista é lançado: 1) desestímulo às migrações para o exterior e para as cidades; 2) medidas de estímulo à natalidade; 3) proteção da maternidade e da infância (3). (imagens acima, Cidade das Mulheres. À esquerda, Snàporaz se diverte com imagens e vozes de mulheres no museu das conquistas femininas do Dr. Xavier Katzone; à direita, sequência do congresso feminista, a encenação mostra uma dona de casa cuidando da cozinha e dos bebês enquanto o marido, caracterizado como um monstruoso Frankenstein, aparece apenas para comer e fazer sexo; no final da encenação, a plateia grita em coro repetindo: "matrimônio, manicômio")
Apesar de todo seu excesso compulsivo, Volpina aparenta
ser a menos reprimida do ponto de vista sexual
No universo das mulheres de Fellini, Gradisca talvez seja aquela que melhor incorpora o fetiche do homem uniformizado – leia-se, marido-soldado fascista. Uma das cenas mais curiosas de Amarcord (1973) é a reação de Gradisca à passagem do oficial fascista durante um desfile. Como resumiu Peter Bondanella, “Gradisca responde [à visita do líder fascista] exatamente como uma mulher responderia a um amante” (4). Pelo que foi exposto por Vicini e pelo comportamento de Gradisca, não seria difícil acreditar na lenda de que durante os discursos de Mussolini as mulheres deixavam suas roupas íntimas como prova da excitação sexual. Em certo ponto do filme, um político sugere à Gradisca que “entretenha” um príncipe – supõe-se que isso fará com que ele libere verbas para a cidade. É antológica a cena em que ela, já sob os lençóis, se dirige ao príncipe dizendo “Gradisca”, como quem diz “sirva-se”.
Outro momento digno de nota é a histeria de Gradisca durante a passagem do transatlântico de Mussolini (imagem acima; à esquerda, um tímido Titta acaricia a coxa de Gradisca, que pede a ele que pare com isso; ela o despreza tanto que nem briga com o garoto). Caso ainda estivesse vivo e ativo, o estilo anoréxico do corpo feminino na atualidade entraria em choque direto como Fellini. Mulheres gordas são uma constante em sua obra. Em Fellini 8 ½ temos a Saraghina dos delírios de infância do protagonista (imagem abaixo). Em Amarcord, os momentos de Titta com a gorda da tabacaria deixaram o rapaz acamado. Ela o desafia a suspender seu corpanzil, fica excitada e mergulha o rosto do rapaz entre seus enormes seios. Em segundos, a “grande mulher” se recompõe como se nada tivesse acontecido e solta Titta, já quase sufocando. Hilária/esclarecedora é também a sequência onde o tio de Titta, que vive num asilo/manicômio, sobe numa árvore e começa a gritar: “eu quero uma mulher!”. Apenas uma freira anã conseguirá retirá-lo de lá.
De acordo com Fellini, o Fascismo italiano engendrava uma espécie de “estado regressivo adolescente”, tanto em relação ao comportamento das massas quanto à repressão sexual. O comportamento de Gradisca, cobiçada por todos os homens da cidade, seria o exemplo mais evidente disso. No universo de Amarcord, a ninfomaníaca Volpina talvez seja a menos reprimida. No ambiente sufocante da Itália fascista, onde o líder político maior era também o “pai” e o “grande amante”, teríamos tudo para esperar que o jovem Federico Fellini se transformasse em mais um monstro... machista. As feministas consideravam suas personagens femininas fruto de uma mente machista. Em princípio, essas personagens seriam apenas o retrato de uma época. Retrato pintado por um cineasta que foi casado a vida toda com a mesma mulher.
Exceto por pequenas alterações que não modificam o texto original, Algumas Mulheres de Fellini em A Doce Vida e Amarcord foi originalmente publicado na Revista Universitária do Audiovisual, da Universidade Federal de São Carlos (RUA/UFSCar), São Paulo em 15 de outubro de 2010.
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1. VICINI, Sergio. Fasciste. La Vita Delle Donne nel Ventennio Mussoliniano. Milano: Hobby & Work, 2009. Pp. 23-4.
2. Idem, p. 44.
3. Ibidem, p. 27.
4. BONDANELLA, Peter. The Films of Federico Fellini. Cambridge: Cambridge University Press, 2002. P. 132.