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Roberto Acioli de Oliveira

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30 de set. de 2017

O Neorrealismo Italiano e os Afro-Americanos


(...) Paradoxalmente,  é  possível  encontrar  mais  representações
de  soldados  afro-americanos  em  quatro  anos  de  cinema  italiano
 do pós-guerra do que em toda a história do cinema americano (...)” 

Shelleen Greene, escrevendo em 2013 (1)

Um Negro Vale Mais que Mil Palavras

Em Milagre em Sant’Anna (Miracle at St. Anna, 2008), o cineasta norte-americano Spike Lee contou a história de quatro soldados negros do exército dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial, durante a invasão da Itália pelas tropas aliadas contra o nazifascismo. Escrevendo em 2013, Shellen Greene observa que até então ainda seria necessário buscar no cinema italiano outras representações do soldado negro norte-americano. De fato, seria preciso esperar a chegada do cinema neorrealista italiano do imediato pós-guerra para o encontrarmos nas telas na posição de protagonista. Greene analisa quatro títulos onde isso acontece, Paisà (1946), Viver em Paz (Vivere in Pace, direção Luigi Zampa, 1947), Perdidas (Tombolo, Paradiso Nero, direção Giorgio Ferroni, 1947) e Sem Piedade (Senza Pietà, direção Alberto Lattuada, 1948). De acordo com Greene, a presença do soldado negro norte-americano evoca vários aspectos da história italiana, do tráfico de escravos desde a Roma antiga até o colonialismo na África. Para Greene, a negritude é utilizada nestes filmes para evidenciar certo discurso racial italiano, numa época em que o país buscava construir uma nação homogênea étnica e racialmente. Greene articula a situação do negro nos Estados Unidos da época (ainda completamente racista) e a divisão racializada entre norte e sul da Itália, onde o norte é industrializado e branco, enquanto o sul é pobre, culturalmente atrasado e seus habitantes associados à África (que de fato fica a poucos quilômetros) – é conhecida a cena de Rocco e seus Irmãos (Rocco e i suoi Fratelli, direção Luchino Visconti, 1960), em que a família Parondi, camponeses pobres, chega ao conjunto habitacional em Milão vindos da Sicília quando, ao ver a cena, uma mulher exclama: “África!” (2). (imagem acima, Kitzmiller em Dolina Miru; abaixo, Dots Johnson em Paisà)


“Voltar para casa! Voltar para casa? Eu não quero voltar para casa!
Minha  casa  é  uma cabana velha  miserável  com  latas  na  porta!”

Joe para Pasquale, pouco antes de o garoto roubar-lhe as botas
De acordo com Greene, a primeira representação do soldado afro-americano no cinema neorrealista se encontra em Paisà. Realizado por Roberto Rossellini, o filme aborda a relação direta entre italianos e soldados norte-americanos durante a invasão da Itália e no imediato pós-guerra. Greene se concentra no segundo episódio, onde encontramos Joe um oficial da polícia militar dos Estados Unidos nas ruas de Nápoles. Interpretado por Dots M. Johnson (que realmente se chamava Hylan Johnson), seu papel em Paisà fazia parte de um movimento mais amplo de artistas afro-americanos que optaram pela Europa para se afastar da violência racial vivida em seu país – outros nomes são Paul Robeson, Richard Wright e James Baldwin. Joe está bêbado quando é encontrado e vendido (como nos tempos do comércio de escravos) pelos trombadinhas mirins e golpistas nas ruas de Nápoles, já livre dos alemães, mas ainda em estado caótico. No meio da confusão, o pequeno Pasquale arrasta o trôpego Joe consigo, até que se deparam com uma apresentação de teatro de marionetes apresentando uma disputa entre um cristão e um muçulmano – os árabes invadiram a península no século IX, o que talvez tenha contribuído para a heterogeneidade racial da população do sul do país. Joe sabe que ao retornar para os Estados Unidos reencontrará apenas a pobreza e o racismo. Pasquale não entende nada que Joe está falando, pois não sabe inglês e tem seus próprios interesses gerados por sua própria condição de pobreza: roubar as botas de Joe. 

“[Sentado no monte de escombros com Pasquale], o [soldado] sonha com um retorno triunfante para os Estados Unidos como um herói de sucesso, completo com desfile, mas, assim que vai ficando mais sóbrio [de seu porre], sua alegria se transforma num desespero trágico, já que começa a compreender que enquanto homem negro nos Estados unidos, ele é pouco mais do que os moleques de rua em Nápoles (‘Voltar para casa! Voltar para casa? Eu não quero voltar para casa! Minha casa é uma cabana velha miserável com latas na porta!’). Quando ele adormece, Pasquale rouba suas botas (...)” (3) (imagem abaixo, Joe está cercado por crianças-assaltantes que o vendem uns para os outros)


Com exceção de Dots Johnson em Paisà, a maioria
dos afro-americanos que participaram de filmes neorrealistas
eram  soldados   do   exército  dos  Estados  Unidos

Embora de modo geral os italianos do sul fossem vistos pela população do norte como “não brancos”, em Paisà não se verifica solidariedade entre os soldados negros e os sulistas. Ainda de acordo com Greene, a relação entre Pasquale e Joe reitera muitos estereótipos raciais a respeito da natureza infantil e animalesca dos negros. Em Paisà convergem opressão racial e de classe, uma vez que o racismo sofrido por Joe em seu país se vê minimizado pela visão da devastação econômica sofrida pela população italiana – especialmente aqueles que já eram pobres. Segundo Greene, esse deslocamento funciona também como uma espécie de neutralizador da experiência colonial da Itália na África (na Líbia e Etiópia), que permitiu ao neorrealismo apresentar os italianos como vítimas inocentes do regime de Mussolini e da devastação da guerra. A presença de Joe como que enfatiza a brancura daquela população do sul da Itália, considerada racialmente inferior.

“(...) Enquanto o discurso a respeito da Questão Meridional e a divisão Norte/Sul construíram a Sicília e o sul como entidade não branca, espaços não ocidentais no interior de uma nação ocidental, Paisà, e o episódio napolitano em particular, concebem, em ultima analise refutando, a solidariedade entre os norte-americanos negros e os italianos do sul. O sofrimento vivido por Pasquale durante a guerra é menos conectado à experiência do racismo vivida por Joe do que à experiência de guerra vivida pelas populações italianas do centro e do norte da Itália. Como sublinha Angelo Restivo, em Paisà a imagem recorrente do mapa da Itália se transforma progressivamente num bloco branco homogêneo na medida em que os aliados avançam em direção ao norte. Deste modo, Paisà oferece em nível figurativo um modelo da unificação italiana baseado na experiência coletiva do movimento da Resistência, que dá vida a uma brancura compartilhada pela comunidade nacional” (4)


“Exceto  por  seu  tema  de  guerra  e  locação de filmagem, 
Viver em Paz está mais próximo em estilo da comédia tradicional
do que de qualquer das obras primas do Neorrealismo (...)” 

Peter Bondanella (5)

Com exceção de Dots Johnson, a maioria dos afro-americanos que participaram de filmes neorrealistas eram soldados do exército dos Estados Unidos. John Kitzmiller, por exemplo, que se tornaria o ator afro-americano de maior sucesso no cinema italiano do pós-guerra, foi engenheiro e capitão do 92º Regimento de Infantaria. Como Dots, em 1947 Kitzmiller estreia no papel de um Joe, em Viver em Paz – “Joe” era então qualquer soldado norte-americano. Desta vez o soldado ianque negro está ferido quando é encontrado em território ocupado pelos alemães, sendo protegido por uma família. As duas crianças que descobrem Joe querem saber como uma pessoa negra faz para perceber que está sujo! O veterinário que trata de Joe responde que ele é apenas bronzeado, e que em condições normais poderia ser confundido com as crianças. O avô da família, que foi soldado na Líbia durante as aventuras colonialistas italianas na África, toma Joe por um dos africanos utilizados pelo colonizador. Inicialmente passivo, Joe fica bêbado e revela sua natureza violenta (selvagem), bem na hora que a família tenta escondê-lo de um soldado alemão. Mas este também está de porre e reage bem quando Joe arrebenta a porta e dá de cara com ele. Os dois começam a dançar, contagiando a família italiana. Posteriormente, as ações de Joe levarão à morte o alemão e tio Tigna, o chefe da família. Para Greene, o filme parece sugerir que o comportamento excessivo de Joe é perdoado por ser considerado alguém de natureza primitiva, o que também justifica tanto o colonialismo italiano quanto a opressão sofrida pelo negro nos Estados Unidos. Para Peter Bondanella, o cineasta Luigi Zampa aborda de maneira tragicômica e burlesca o material que Rossellini abordou em Roma, Cidade Aberta e Paisà (6).

“O enredo [de Sem Piedade] é ousado para a época – a história de um caso de amor inter-racial entre Jerry, um soldado negro norte-americano, e Angela, uma prostituta italiana. O filme é ambientado em torno de uma representação realística da vida na Livorno do pós-guerra, um grande depósito de suprimentos para os norte-americanos e para o contrabando e o mercado negro italianos, mas a informação na abertura sublinha mais o clima melodramático do que documental: Essa não é a história de duas raças. Mas de duas pessoas que se encontraram na Itália depois da guerra. Homens e mulheres esqueceram a compaixão e abandonaram a doçura em sua desesperada luta pela sobrevivência. Mas existe pena e devoção no coração de um G. I. [soldado norte-americano]. Essa é sua história” (7) (imagem abaixo, cartaz de Ângelo, o Mulato)


O receio de
uniões mistas e
 de crianças mestiças é
 visível em Ângelo, o Mulato,
 que conta a história do filho
 de   um   soldado  afro-
 americano  com
uma  italiana

Naquele mesmo ano, Kitzmiller atua em Perdidas e, no ano seguinte, Sem Piedade, filmes que iluminam a dupla natureza do soldado negro norte-americano: por um lado passiva e inocente, de outro, violenta e incontrolável. Nos dois filmes esta ambivalência acontece em função do corpo da mulher branca. No primeiro filme, Kitzmiller é Jack, um sargento do exército que está metido em contrabando na área de Livorno. Jack deseja Anna, namorada do bandido Alfredo, e filha de Andrea, um ex-policial das forças armadas italianas na África. Tudo acontece em torno do bosque Tombolo, zona de periferia onde moram soldados afro-americanos com suas namoradas, prostitutas e bandidos. Andrea morre tentando salvar Anna desse submundo e também desse negro que quer violentá-la. Na opinião de Greene, este tema é utilizado para racionalizar aquilo que na maior parte das vezes eram uniões inter-raciais consensuais que levariam ao nascimento de mestiços. O medo de uniões mistas e de crianças mestiças também pode ser observado em Ângelo, O Mulato (Il Mulatto, direção Francesco De Roberts, 1950), que conta a história de um menino mestiço (Ângelo) filho de um soldado afro-americano com uma italiana – Angelo Maggio, o ator mirim, ainda apareceria nas telas em mais quatro filmes até 1954. Lançado no dia seguinte da proclamação da república italiana, O Mulato tenta aderir ao processo de integração do cidadão italiano negro, mas, em ultima análise, se recusa a fazê-lo, num país empenhado na fabricação de uma população branca homogênea. Durante as filmagens de Sem Piedade, Lattuada reclamou que os tiros em torno de Kitzmiller não estavam realistas o suficiente, então foi contratado um atirador experiente utilizando balas de verdade. Segundo Tulio Kezich, em toda sua carreira no cinema o ator jamais iria ter outra experiência com tal descarga de adrenalina (8). (imagem abaixo, Kitzmiller em Sem Piedade)


Sem Piedade  reflete  uma  mensagem  neorrealista
típica de irmandade humana que, neste filme, transcende não
apenas fronteiras nacionais, mas raciais também (...)

Peter Bondanella (9)

Em Sem Piedade, Kitzmiller é Jerry, um policial militar afro-americano prisioneiro do submundo do crime de Livorno na tentativa de salvar Angela, uma jovem obrigada a prostituir-se. O subtítulo do filme, Goodbye, Otello, sublinha ao mesmo tempo o reconhecimento e a recusa das relações inter-raciais entre afro-americanos e italianas. Enquanto as outras mulheres namoram e se casam com os negros, relação entre Jerry e Angela é assexuada e fraternal. De fato, a ambivalência de Angela em relação a Jerry se revelará fatal. No final conclui Greene, Sem Piedade torna-se a história de uma opressão compartilhada por exilados africanos e italianos, simbolizada pelos braços entrelaçados de Jerry e Angela. Uma exceção ao final platônico ou trágico envolvendo as relações inter-raciais no cinema italiano da época foi Il Peccato di Anna (direção Camillo Mastrocinque, 1952). Lançado quando o pico da presença dos afro-americanos nas telas italianas já havia passado (e o ápice do Neorrealismo também), o filme apresenta a trans-nacionalidade deles no pós-guerra. John Rutherford, interpretado pelo ator e bailarino negro Ben E. Johnson, vai à Roma interpretar o papel principal numa encenação de Otelo, onde se apaixona por Anna, uma aspirante a atriz que tenta o papel de Desdemona Segundo Greene, Rutherford pode ter sido inspirado no ativista afro-americano pelos direitos civis Paul Robeson, que em 1930 foi o primeiro ator negro a interpretar o papel de Otelo na Grã-Bretanha.

“(...) Com particular riqueza de sombra, Il Peccato di Anna explora a variedade de reações em relação às uniões inter-raciais na Itália dos anos 1950, do clichê da curiosidade sexual e do fetichismo às proibições em torno do casamento misto, e ao mito intemporal do negro como predador sexual. Encenado como espetáculo dentro do filme, Otelo se torna o veículo para a exploração cultural do racismo e do desejo inter-racial. Como Otelo, Rutherford é um distinto e erudito homem cosmopolita que luta contra os estereótipos que o veem, enquanto negro, como sexualmente hipertrofiado, animalesco e violento” (10) (imagem abaixo, Kitzmiller em Perdidas)


 Frantz Fanon,  de  ascendência afro-francesa, estudou 
a  neurose  vivenciada  pelos  negros em contextos onde
o homem branco  e  a  sociedade branca predominam

Alberto, tutor de Anna, descobre que Rutherford havia sido preso pelo estupro de uma mulher branca e procura separar o casal. Em Il Peccato di Anna, o papel do soldado negro é ocupado por Willian Demby, verdadeiro autor do estupro, escritor e subordinado ao 92º Regimento de Infantaria dos Estados Unidos, de serviço na Itália durante a Segunda Guerra Mundial – no mesmo ano, Demby também atuará em Europa 51 e Inveja, episódio de Os Sete Pecados Capitais, ambos sob direção de Roberto Rossellini. Bêbado e atormentado pela culpa por ter causado a prisão de Rutherford, Sam personifica uma visão negativa do soldado afro-americano na Europa. Greene ressalta que, apesar de provada a inocência de Rutherford, ele e Sam ecoam das teorias da subjetividade dos negros no pós-guerra, tempo de descolonização da África, de reivindicação da negritude e das investigações de Frantz Fanon sobre a neurose vivida pelos negros em contextos onde o homem branco e a sociedade branca prevalecem – o trauma psicológico de um negro em Native Son (1940), romance de Richard Nathaniel Wright, receberá uma versão para cinema no mesmo ano de Il Peccato di Anna. No filme alemão Toxi (direção Robert A. Stemmle, 1952), que aborda a situação da miscigenação na Alemanha do pós-guerra, a pequena afro-alemã foi deixada na porta de uma família branca, forçando-os a confrontar seus limites. Quando tudo parecia bem, o pai dela (um soldado negro afro-americano) aparece para levá-la aos Estados Unidos. O filme foi lançado na época em que a primeira leva de filhos de soldados negros e mulheres alemãs entram na escola. Até então, na história do cinema alemão desde cedo os negros sempre existiram (inclusive durante o Nazismo), mas invariavelmente como um Outro exótico ou inferior (11). (imagem abaixo, Kitzmiller em Mulheres e Luzes)


Nos filmes de Federico Fellini onde o negro
aparece, ele  é  apenas  parte  da  encenação

Kitzmiller também foi Johnny, o músico de jazz que aparece do nada tocando seu trompete durante uma madrugada em Mulheres e Luzes (Luci del Varietà, 1951), primeiro filme de Federico Fellini, ainda que codirigido com Alberto Lattuada – Fellini havia contribuído com o roteiro e a história de Sem Piedade, no qual sua esposa, Giulietta Masina, também atuou. Apesar da aparição muito breve de Kitzmiller, Greene percebe em Mulheres e Luzes o modo como a negritude será apresentada por Fellini em filmes como Noites de Cabíria (Le Notti di Cabiria, 1957), A Doce Vida (La Dolce Vita, 1960) 8 ½ (Otto e Mezzo, 1963) e Satyricon de Fellini (Fellini - Satyricon, 1968). Nestes filmes, o negro não possui papel, tornando-se apenas parte de uma encenação estilizada que sublinha o estranhamento do protagonista branco. Para Greene, essa utilização pouco estudada da negritude nos filmes de Fellini se estende até seu último filme, Ginger e Fred (1986), que apesar de tudo foi a primeira representação do imigrante africano na Itália dos anos 1980. 

“Kitzmiller morreu em 1965, mas não antes de ter se tornado o primeiro artista de origem africana a vencer o prêmio como melhor ator no Festival de Cannes, por seu papel como soldado afro-americano atrás das linhas inimigas durante a Segunda Guerra Mundial no filme Iugoslavo Dolina Miru (literalmente, o vale da paz, direção France Štiglic, 1956), e não antes de haver alcançado o reconhecimento internacional por sua interpretação como Quarrel, o marinheiro jamaicano do primeiro filme de James Bond, O Satânico Dr. No (direção Terence Young, Dr. No, 1962). Durante toda a sua carreira, que apenas no cinema italiano conta mais de quarenta filmes, Kitzmiller foi explícito em relação a sua desilusão pelos papeis estereotipados que lhe ofereceram, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, incluindo o amigo preto Quarrel, aquele que ironicamente o tornou mais famoso. Embora a carreira de Kitzmiller, tristemente interrompida, não tenha terminado propriamente no cinema italiano, gostaria de considerar Dolina Miru como parte de seu trabalho na Itália do pós-guerra” (12) (imagem abaixo, cartaz de Dolina Miru)


Enquanto
estavam escondidos
dos  nazistas,  Jim  faz
uma  boneca  negra 
 para Lotti
Dolina Miru é a história de duas crianças órfãs, o sloveno Marko e a alemã Lotti. Os dois escapam de uma instituição e caminham em busca de um vale de paz onde acreditam morar o tio de Marko. No meio do caminho aparece Jim (Kitzmiller), um piloto negro norte-americano cujo avião foi abatido em território inimigo. Ele se torna o protetor das duas crianças enquanto busca o exercito de libertação iugoslavo. Quando chegam onde acreditam ser o tal vale, acabam no meio de uma batalha entre alemães e iugoslavos. Jim se une aos últimos e as crianças continuam sua busca pelo vale da paz. Greene insiste em considerar este um filme italiano apenas devido ao fato de que foi realizado na Slovênia, uma região reivindicada pela Itália desde seu processo de unificação no final do século XIX. Na opinião de Greene, a presença do soldado afro-americano cria um paralelo entre o racismo nos Estados Unidos e a opressão italiana sobre os slovenos e outras minorias. Enquanto estavam escondidos dos nazistas, Jim faz uma boneca negra para Lotti, que se apropria dela numa espécie de inversão do teste da boneca utilizado em 1954 no processo Brown contra Conselho de Educação para interromper a segregação legalizada – até então, em boa para dos Estados Unidos havia separação entre negros e brancos nas escolas públicas; a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu que a segregação racial neste caso é inconstitucional. Dos vários exemplos que poderiam ser citados no que diz respeito aos Estados Unidos, um filme como Imitação da Vida (Imitation of Life, direção Douglas Sirk, 1959) mostra bem a dimensão do problema racial: ambientado na década de 1950, uma filha branca renega e esconde sua mãe negra e pobre para ser aceita pela sociedade branca norte-americana.


Leia também:

Notas:

1. GREENE, Shelleen. Buffalo Soldiers on Film. Il Soldato Afroamericano nel Cinema Neorealista e Posbellico Italiano. In: De FRANCESCHI, Leonardo. L’Africa in Italia. Per una Controstoria Postcoloniale del Cinema Italiano. Roma: Aracne editrice, 2013. P. 93.
2. Idem, pp. 93-105.
3. BONDANELLA, Peter. Italian Cinema. From Neorealism to the Present. New York/London: Continuum, 3ª ed., 2008. P. 45.
4. Greene, S. Op. Cit., p. 97.
5. BONDANELLA, P. Op. Cit., p. 77.
6. Idem.
7. Ibidem, p. 79.
8. KEZICH, Tullio. Federico Fellini. His Life and Work. New York/London: I.B. Taurus, 2006. P. 105.
9. BONDANELLA, P. Op. Cit., p. 81.
10. Greene, S. Op. Cit., p. 100.
11. FENNER, Angelica. Race and Reconstruction in German Cinema. Robert Stemle’s Toxi. Toronto, Buffalo, London: University of Toronto Press, 2011. Pp. 14-5.

12. Greene, S. Op. Cit., p. 102.

31 de out. de 2015

Mastorna: Federico Fellini e o Outro Mundo

“Vou acabar com você se não fizer esse filme”

Ultimato do produtor Dino De Laurentiis para Fellini (1)

Só Mais Um Sonho

Entre Julieta dos Espíritos (Giulietta degli Spiriti, 1965) e Toby Dammit (episódio de Histórias Fantásticas, 1968) ocorreu um intervalo na obra do cineasta italiano Federico Fellini, no qual ele esteve muito doente e delineou o roteiro de um filme que jamais realizaria – existe uma estranha simbiose entre seu problema de saúde e esse roteiro. Toda uma sequência de acontecimentos, que se estendeu por décadas, assombraria todas as tentativas de transformar o roteiro em filme. Sequência de eventos que, por si só, daria outro filme (imagem acima, sonho de Fellini referindo-se à Mastorna, desenhado por ele mesmo, em 9 de setembro de 1978; o texto que o acompanha se encontra na nota 18). De fato, Fellini já havia quase feito isso quando realizou 8 ½ (Otto e Mezzo, 1963), quando contou a história de Guido  e sua crise de inspiração e criatividade - ao mesmo tempo em que era pressionado pelos compromissos assumidos. A importância deste roteiro não filmado é declarada pelo próprio Fellini:

“Estou certo de que, sem esse Mastorna, eu não teria imaginado Satyricon de Fellini [1969] ou, pelo menos, não o teria imaginado tal como realizei. Muito menos o Casanova de Fellini [Il Casanova di Federico Fellini, 1976] ou A Cidade das Mulheres [La Città delle Donne, 1980]. Mesmo Ensaio de Orquestra [Prova d’Orchestra, 1978] e E La Nave Va têm uma pequena dívida com Mastorna“ (2)
A vontade de realizar este filme parece ter renascido, pois já estava em germe desde a década de 40, com o falecimento de Ernest Bernhard (1896-1965) - psicanalista junguiano que, a partir da década de 60 do século passado, ouvia Federico Fellini relatar seus sonhos. Traumatizado com o morto, o cineasta sonhou com ele. O doutor estava em sua casa morto quando Fellini se aproxima para olhar, então o velho levanta o braço, segura os pulsos dele e diz, “não pense que eu estou morto, eu nunca vou morrer”. Quando Bernhard morreu em 1965, Fellini interrompeu as filmagens de Julieta dos Espíritos e foi até a casa do amigo prestar seus respeitos. Lá chegando, a primeira surpresa, o homem que atende a porta era o mesmo que em seu sonho fazia o mesmo gesto. Na opinião de Kezich, em seu leito de morte Bernhard ofereceu uma lição final para Fellini: “Sofra sua morte plenamente consciente”. (imagens abaixo, no lado superior, A Cidade das Mulheres e Satyricon; a seguir, E La Nave Va e Casanova)


No verão daquele ano, o cineasta escreveria um roteiro atormentado em parceria com Dino Buzzati que deveria ser uma espécie de ilustração da última parábola de seu mestre. Assim começou a se materializar Il Viaggio di G. Mastorna (A Viagem de G. Mastorna), embora Kezich tenha sugerido que o fruto mais tangível e imediato dessa relação com Bernhard tenha sido o lendário Livro dos Sonhos de Fellini - compilação de seus sonhos que o cineasta ilustrou através de sua também lendária mestria no desenho de figuras e caricaturas (3).

Fellini já havia se mudado de Rimini para Roma em 1939 quando teve um sonho que o marcou. De acordo com Kezich, o sonho era uma mistura de alívio e cinismo, amor e arrependimento – talvez porque Fellini havia torcido para que a família o deixasse viver uma vida independente em Roma. No sonho, ele voltava para Rimini e entrava no Grande Hotel. Então o porteiro comentou que lá havia um casal com o mesmo sobrenome dele. Fellini os reconheceu mesmo que estivessem de costas no terraço, olhando para o mar, ainda que eles não se parecessem realmente com o futuro cineasta. Fellini sacode os ombros como quem diz, “e daí?”. Ele via o casal apenas como um homem e uma mulher, não como figuras arquetípicas do pai e da mãe. Esta cena seria incluída no roteiro de Mastorna (4). 

Ao explicar que várias situações acabaram sendo excluídas ou ficando de fora da versão final de Roma (1972), Fellini faz um comentário sobre a morte que pode dar a impressão de que talvez já tivesse conseguido compreendê-la como um fenômeno mais natural. Supondo, naturalmente, que a exclusão de uma representação da morte tenha sido puramente casual:

“(...) Também ficou de fora a sequência sobre o cemitério de Verano. Em Roma, a morte sempre tem um aspecto familiar, como se fosse um parente. Alguns romanos dizem ‘vou ver meu pai, vou ver meu tio’, e então se descobre que foram ao campo-santo. Até nisso vemos uma projeção do tipo funcionalismo, burocracia; mesmo com a morte encontramos recomendações, sempre existe um cunhado no paraíso que pode dar uma mão. O que acaba com a angústia, a ansiedade neurótica da morte: basta pensar que os romanos a chamam de ‘comadre seca’ (5). Comadre, ela também é meio parente. E há outras expressões: ‘foi visitar as parreiras’, ‘está preparando a terra para o grão-de-bico’. Nesse grão-de-bico encontramos o habitual tema da comida. Até no campo-santo Roma tem um aspecto de grande apartamento no qual se pode passear de pijamas e arrastando os chinelos. Mas não rodei esta sequência” (6) (imagem abaixo, Amarcord)

A Novela do Filme


  “(...) Ao fazer filmes de minhas memórias, 
 minhas  memórias  são  substituídas  pelas
 memórias  dos  filmes  que  eu  fiz  delas”

Federico Fellini (7)

Kezich conta que a ideia por traz daquilo que se tornaria Il Viaggio di G. Mastorna remonta aos últimos meses antes de Fellini trocar Rimini por Roma. Nessa época ele devorou um pequeno romance do escritor Dino Buzzati intitulado Lo Strano Viaggio di Domenico Molo (A Estranha Jornada de Domenico Molo), publicado em 1938 – O Deserto dos Tártaros (Il Deserto dei Tartari, 1940), outro romance de Buzzati, adaptado pelo cineasta Valerio Zurlini em 1976. É a história de um garoto de 12 anos de idade que morre e vai para um limbo onde julgamentos são realizados e punições aplicadas. A criança embarca numa odisseia no além, e, tendo aprendido o segredo da vida, ao invés de ir para o Céu volta para a Terra (8). 

“Após a conclusão de Julieta dos Espíritos, Fellini pretendia filmar um trabalho provisoriamente intitulado Il Viaggio di G. Mastorna. Escrito originalmente durante o verão de 1965 com Dino Buzzati (1906-72), o enigmático escritor italiano de pequenas histórias misteriosas que muitas vezes foi chamado de o Franz Kafka italiano, o filme foi assolado por numerosos problemas. Os argumentos habituais com produtores relutantes que caracterizou a maioria das criações anteriores de Fellini agora passaram para segundo plano [em função de] sua rara síndrome Sanarelli-Schwartzman. A vida onírica de Fellini também entrou em crise, e muitos sonhos deste período evidenciam um bloqueio de inspiração artística e a impossibilidade de realização de Mastorna. Tem sido sugerido que Fellini sentiu ser impossível realizar Mastorna porque o tema do filme era, em última análise, sobre a natureza da morte, e seu protagonista músico foi estreitamente identificado pelo diretor com ele mesmo” (9)

Fellini procurou Buzzati em 1965 propondo uma parceria, baseados no romance do escritor italiano eles escreveriam juntos o roteiro de Il Viaggio di G. Mastorna – outros roteiristas se sucederiam nessa tarefa. Buzzati aceita, mas uma série de contratempos, apenas os primeiros numa longa série de eventos e sonhos bizarros, impediria a pareceria – que ainda assim chegou a durar por mais de um ano, apesar da crescente percepção de Fellini quando a suas diferenças de estilo em relação ao escritor. Nas palavras de Kezich, Fellini escreveria um longo tratamento para o filme em forma de carta para o produtor italiano Dino De Laurentiis. Após muita especulação, Fellini decidiu que Guiseppe Mastorna seria um violoncelista – um instrumento, como diria Fellini, com cintura feminina.

“A carta passa a descrever o começo do filme: um avião voa para dentro de uma tempestade, o piloto perde o controle e os passageiros entram em pânico. Então, subitamente, tudo fica terrivelmente quieto. Eles pousam silenciosamente na praça de uma cidade desconhecida, à sombra de uma catedral gótica. Os passageiros saltam do avião e caminham no vento e na neve em ruas mal iluminadas até um ônibus. Fellini diz que vai tentar representar ‘uma experiência mística, inefável, [e] transmitir a sensação de totalidade’, mas ele ainda não tem nenhuma ideia sobre o final. Apesar do tema melancólico, o diretor insiste que o filme será cômico – regressando à ilusão que ele manteve em 8 ½” (10)

De Laurentiis, que estava esperando um filme de ficção científica, deveria recusar, mas não o fez. O produtor se ressentia de não ter produzido A Doce Vida (La Dolce Vita, 1960), então não queria cometer o mesmo erro. Durante muitos anos, De Laurentiis iria esperar em vão por Mastorna. Certa vez, alguém mencionou que Gustavo Rol, paranormal e amigo de Fellini (assim como de Buzzati), teria colocado um aviso no bolso do cineasta: “não faça esse filme”. Dino De Laurentiis se manteve calmo, considerava Fellini apenas um “bebê grande que acredita na paranormalidade” (11). (imagens abaixo, Amarcord)


“Por décadas Fellini seria muito reservado ao se referir a Il Viaggio di G. Mastorna, por duas razões um tanto paradoxais. Primeiramente, ele continuou a pensar que poderia realizar o filme algum dia e, portanto, manteve o enredo em segredo. Segundo, uma espécie de medo supersticioso rastejou para dentro do projeto. De vez em quando, num momento de confusão, o diretor listaria os infortúnios em torno de Il Viaggio di G. Mastorna. Incluindo as perdas sofridas ao longo de constantes desvios, e cogitar fantasias surpreendentes sobre o que resultaria disso” (12)
O roteiro revela uma série de elementos de filmes que Fellini viria a realizar posteriormente. Uma vez que falhava cada tentativa de colocar o projeto para frente, o cineasta utilizava partes dele em outros projetos. Por exemplo, o motel em Ginger e Fred (1985) e muitos detalhes de Amarcord (1973) – o cinema Fulgor, a velha escola, o padre que ensina religião, o professor de filosofia De Cercis, a vizinha Margherita (Bianchina), assim como várias falas dos pais de Titta. Bernardino Zapponi indica também uma relação entre os bordéis de Mastorna e os de Roma (13).

De acordo com o roteiro, antes de se dirigir para o aeroporto G. Mastorna está reunido com seu grupo numa grande mesa em U, ele assiste a um filme sobre sua vida desde quando era um feto. O passaporte dele para um mundo melhor só será concedido depois de assistir a si mesmo na tela enquanto mostra a língua para um cachorro através da janela de um carro entalado no tráfego. O grupo em torno da mesa aplaude: esse foi o gesto mais pessoal de G. Mastorna em toda a sua vida. Então segue para o aeroporto num ônibus não muito diferente daquele no qual Ginger e Fred chegam. Durante o transporte, explica Kezich, ele conhece um casal, um homem e uma mulher tão repletos de perdão que qualquer relação entre os três seria possível, mesmo homossexual – ainda que o roteiro não sugira isso. 

Após esse voo final, o avião pousa num vale cercado por grandes montanhas. Dois funcionários da alfândega estão lá (um dos atores desejados por Fellini para esses papéis terminaria fazendo o papel de Teo, o tio maluco, em Amarcord; aquele que sobe numa árvore e fica gritando: “Eu quero uma mulher!”). Uma aeromoça conduz G. Mastorna através da noite fria e brilhante. A jornada termina com uma caminhada em Florença num dia ensolarado, ele está ansioso para chegar a tempo no ensaio da orquestra – com Ensaio de Orquestra, sugere a dificuldade de o italiano assumir os riscos da liberdade, não somente ao nível individual, mas também em relação à “orquestra Itália”.

“Impulsionado neste projeto pela emoção da morte recente do Dr. Bernhard, Il Viaggio di G. Mastorna é o destino de Fellini depois de uma estrada atormentada. É uma metáfora que amplia o significado de 8 ½ e Julieta dos Espíritos num sopro de serenidade cósmica: aceitando-se a si mesmo, faça amizade consigo, ou vida simples obriga aceitar o passado, presente e futuro, assim como dar boas vindas à morte como dá boas vindas à vida. Uma sem a outra não tem sentido” (14) (imagem abaixo, Ensaio de Orquestra)

O Italiano Voador


 “(...) Mastorna marca  o  início  de  uma
 nova  etapa, mais morosa e pessimista”

Àngel Quintana (15)

A ideia de um homem que podia voar acompanharia Fellini desde sua infância – ou como ele mesmo disse, durante toda a sua “vida criativa”. Embora o cineasta tenha dito que detestava viajar de avião, em seus sonhos ele adorava voar, confessou que se sentia livre e que isso lhe dava a mesma sensação eufórica de quando está realizando um filme. Fellini disse que a inspiração original para Mastorna surgiu de sua visita à catedral da cidade alemã de Colônia, onde ouviu a respeito de um monge medieval que podia voar à vontade – mas não sua própria vontade. O monge só voava quando a vontade de um espírito (que não era o seu próprio) desejava. Portanto ele não tinha controle sobre seu dom especial, sendo muitas vezes transportado para situações inapropriadas das quais tinha dificuldade em se desvencilhar. “Assim como eu”, confessou Fellini, “meu personagem [G. Mastorna], tinha o problema de ter medo de voar” – talvez por esse motivo o roteiro começa com um pouso de emergência, que poderíamos considerar um acidente aéreo (16). Apesar de sua capacidade de voar, seu desconforto com aviões parece ter sido outro fator determinante em relação à Mastorna:

“Eu me lembro de me perguntar por que pessoas velhas, quando suas vidas vão perdendo o valor, ficam com mais medo de voar, e agora isso aconteceu comigo. Eu nunca gostei, e uma quase fuga me deixou mais certo que mesmo G. Mastorna não foi feito para voar. Agora, acho que pegar um vôo me preocupa mais do que nunca, porque me preocupo antecipadamente. Na hora que chego ao meu destino, realmente já fiz a viagem várias vezes. Pior ainda, a dor física que sinto agora não me permite uma fuga rápida. Isso me deixa plenamente consciente de cada momento no avião. Eu não posso mais escapar de algumas jornadas, como costumava fazer em minha mente. Parece que não consigo encontrar um lugar para mim” (17) (imagens abaixo, restos dos cenários de Mastorna em Diário de um Cineasta, A Director’s Notebook, 1969)


Noutra oportunidade Fellini contou a Charlotte Chandler que a ideia para Mastorna surgiu em 1964, no momento do pouso de avião em que viajava para Nova York. Era inverno, numa visão repentina Fellini visualizou o avião batendo na neve. Por sorte, confessou o cineasta, era apenas uma visão. Da mesma forma, G. Mastorna estaria num avião que realiza uma aterrissagem de emergência durante uma nevasca. O avião pousa nas proximidades de uma catedral gótica (inspirada pela catedral de Colônia), Mastorna segue de trem pelo que parece uma cidade alemã (novamente inspirada em Colônia) até um motel. Fellini segue sua descrição dizendo que lá havia um cabaré com apresentações estranhas e um festival gótico na rua. G. Mastorna se sentiu perdido na multidão e não conseguia ler as placas porque estavam escritas numa língua estranha. Ao encontrar a estação ferroviária, reparou que alguns trens encolheram enquanto outros cresceram até o tamanho de prédios. Por alguns segundos G. Mastorna fica feliz porque encontrou um amigo, mas logo se lembra de que ele havia morrido há alguns anos. Então começa a imaginar que talvez o avião tivesse se espatifado na neve e ele estivesse morto também. Em 9 de setembro de 1978, Fellini voa em sonho até Mastorna:

“As mesmas velhas vibrações e subida vertical de meu corpo em direção ao céu noturno. Eu voo, e sei que estou uma vez mais vivendo essas misteriosa experiência. Eu me elevei a grandes alturas no céu noturno. Eu peço para ver ‘Mastorna’, ele, seu rosto, o personagem inalcançável com o qual eu fui obcecado por mais de vinte anos, o perseguindo e sendo perseguido por ele. Subitamente, surge uma enorme fotografia, enquadrada por uma borda escura: ela retrata um homem usando chapéu e segurando uma mala numa das mãos. Ele tem um bigode negro e seus olhos são negros, velados. É Mastorna! Parece a mim que a fotografia (de cor sépia) o mostra no meio do saguão de uma grande estação de trem. No mesmo instante que eu, esmagado de emoção, reconheço meu protagonista, a vibração cessa. Eu não estou mais voando e tenho a exata sensação de acordar num quarto enorme, simples e vazio, no qual Giulietta está de pé ao meu lado bloqueando minha visão do pé da cama (onde aparece a fotografia de Mastorna) ao levantar um lençol ou guardanapo na frente de meus olhos. Ela faz isso três ou quatro vezes, e duas garotinhas à minha direita parecem se divertir, rindo inocentemente do que está acontecendo comigo” (18)

Desde a infância Fellini voava durante muitos de seus sonhos. Dos seus sonhos, aparentemente era desses que mais gostava. Algumas vezes, disse ele, tinha asas gigantes, tão grandes que podiam ser vistas por todo mundo e eram até desajeitadas. Outras vezes ele nem precisava de asas, levantava vôo com sua força interior. Às vezes tinha um destino, em outras ocasiões estava somente explorando. Como seus colaboradores e amigos sabiam que Fellini detestava voar de avião, perguntaram a ele porque queria fazer um filme sobre um homem que podia voar. Então o cineasta respondia que era uma metáfora e eles ficavam quietos. E por falar em metáfora, Fellini admitiu que a coisa se complicasse quando em seus próprios sonhos ele não podia mais voar. Fellini concluiu que o motivo devia ser porque estava muito gordo. O próximo problema é que o cineasta nunca teve disciplina para fazer dietas. Então desabafou numa entrevista a Chandler, provavelmente já na década de 90:

“Agora Mastorna nunca irá voar. Eu acredito que poderia ter sido meu melhor filme se pudesse tê-lo realizado. E agora, uma vez que eu sei que não o farei, posso continuar acreditando que teria sido meu melhor filme. Vivo apenas em minha mente, ele nunca me desapontará” (19) (imagem abaixo, Toby Dammit, 1969)

Morrer, Dormir, Talvez Sonhar


 “(...)  Morte  é  alguma  coisa  de  que  todos  nós  falamos
literariamente;    nunca   discutimos   sobre   ela   como   se
fosse  real.   Podemos   inventar   milhares  de  representações. 
 Podemos   ler   todos  os    testemunhos.  Contudo,  no final, 
 é algo que nunca iremos verdadeiramente compreender”

Federico Fellini (20)

Depois que G. Mastorna concluiu que poderia estar morto, ele não luta e aceita seu destino. O pior já passou, não há mais agonia, tensão ou dilemas. Como nas históricas de ficção científica, ele explora universos alternativos, encontrando sua avó, seu avô que nunca conheceu e bisavós que haviam morrido muito antes dele nascer. G. Mastorna gostou muito deles. Invisível, ele também visitou Luisa, sua esposa. Fellini contou que deu a ela o mesmo nome da esposa de Guido em 8 ½ porque era assim que o cineasta a via. G. Mastorna a encontra na cama com seu novo homem, aparentemente ela superou bem a perda. Ele não está chocado com isso, mas sim com não se importar. 

Fellini admite que um importante fator para atrapalhar a realização do filme foi sua doença em 1966. Admitiu também que isso tenha relação com seu medo de realizar essa tarefa. Ele considerou a hipótese de que o próprio filme o estivesse matando, por não desejar ser realizado! Seja lá qual for o motivo, concluiu Fellini, no começo de 1967 ele se convenceu de que estava mortalmente doente. Quando sentiu os primeiros sintomas, estava em casa e tomou precauções para que sua esposa Giulietta Masina não encontrasse seu corpo morto, caso o pior acontecesse. Já no hospital, Fellini sentia muitas dores. Contudo, em sua opinião o pior é que perdeu seus sonhos e fantasias, sendo deixado “com o terror da realidade”:

“Tentei ligar na imaginação para me transportar a outro local mais agradável. Mas a realidade era muito forte e meu próprio medo, do qual eu desejava escapar, me aprisionava com seu controle forte sobre minha mente. Eu sabia que não estava pronto para morrer. Eu tinha tantos filmes por fazer. Irrequieto, tentei fazer um em minha mente. Mesmo nos melhores momentos nunca fui capaz de visualizar um dos meus filmes na totalidade, como seria, eventualmente, antes de começar a filmar. Desta vez, não conseguia criar nem mesmo uma parte de meu filme. Eu não consegui distrai nem a mim mesmo. Portanto, privado de meu refúgio, meu santuário de sonhos acordado, me senti nu, vulnerável, sozinho. Quando comecei a receber cartas sentimentais, até visitas, de pessoas zangadas comigo quando eu tinha boa saúde, tive ainda mais certeza de que o fim havia chegado. Estar num hospital reduz você ao status de ser uma coisa; não para você, é claro, mas para os outros. Falam sobre você na terceira pessoa. Enquanto estão em sua presença se referem a você como ‘ele’. Quando você está doente, não importa quantas pessoas o visitem, não importa quantas pessoas cuidem de você, você está sozinho. É esse tipo de momento quando você é forçado a descobrir se é ou não uma boa companhia” (21) 

Fellini se confessava fascinado pela experiência de quase morte. Segundo ele, nesse momento entre a vida e a morte algumas pessoas seriam capazes de captar os segredos da vida. Mas o preço é a morte. Foi isso que ele imaginou para G. Mastorna. Fellini sabia muito bem que várias pessoas chegadas acreditavam que ele ficou supersticioso em relação ao filme, que se identificou com G. Mastorna e que ele tinha medo de morrer caso completasse Mastorna. Fellini admitiu também que se identificou com G. Mastorna da mesma forma que ocorreu com Guido. Mas o cineasta insistiu em dizer que a verdadeira razão, além de acreditar que caso falasse sobre a história ela poderia perder a mágica, está na canibalização do filme para alimentar outros projetos – a ideia principal se manteve intacta, mas ele teria de reescrever todo o resto: “Quando eu estava dirigindo Mastroianni como Guido [em 8 ½], às vezes senti como se estivesse [dando ordens para mim mesmo]” (22). (imagem abaixo, Ginger e Fred)

“Fellini sempre se sentiu atraído pelo mistério da morte e sua impossível encenação. Para o final de 8 ½, ele teve a ideia de filmar o além como uma viagem de trem, mas acabou substituindo-a por um desfile celebrando a vida. Em Il Viaggio di G. Mastorna, ele tem a intenção de filmar uma aterrissagem nesse nada que é a morte, mas o filme jamais será realizado. E mesmo que em Toby Dammit ele mostre o ritual que supõe morrer, apenas na sequência final de Casanova de Fellini ele filmaria o além de forma visionária” (23)

De acordo com Jean-Max Méjean, numa das raras mortes de personagens nos filmes de Fellini, o louco/acrobata que foi vítima de Zampanò em A Estrada da Vida (La Strada, 1954), não há morbidez nem melodrama – aparentemente, Gelsomina morre de desgosto no final. Na cena final de A Trapaça (Il Bidone, 1955), parece que Augusto morre, mas isso não fica absolutamente claro. Não deve ser por acaso que, juntamente com Noites de Cabíria (Le Notti di Cabiria, 1957) (que começa com a prostituta Cabiria quase morrendo afogada), estes dois filmes compõem o que Peter Bondanella chamou de Trilogia da Graça ou da Salvação, onde Fellini apresenta um “cristianismo existencialista”. Méjean insiste que as poucas mortes nos filmes de Fellini são reservadas a personagens secundários, ainda que importantes dentro da simbologia de cada filme. A morte do outro serve como rito de passagem do protagonista para a idade adulta ou a velhice. Na opinião de Méjean, a morte da mãe de Titta em Amarcord, por exemplo, dá ao filme uma dimensão mais grave (24).

Em Satyricon, Encolpio partirá para o mar logo depois que Ascilto foi assassinado nos pântanos quando buscava sua virilidade logo depois da morte de Eumolpo. Num dia de farra, este último lhe havia revelado certos mistérios de Elêusis. Em Os Boas-Vidas (I Vitelloni, 1953), é a partida de Moraldo daquela cidade do interior (na costa do Mar Adriático) que é vivida como uma morte. Para Méjean, antes de tudo, trata-se da morte da cidade da infância de Moraldo, que abandona o mar e a mãe – Moraldo seria o primeiro alter ego de Fellini, que fez exatamente isso quando trocou Rimini por Roma. Sem falar nos mortos que ressuscitam como num sonho iniciático. Como Guido em 8 ½, que reencontra seus pais e lhes faz perguntas. Além disso, conclui Méjean, pouco se vê a morte. Sabemos da morte de Gelsomina em A Estrada da Vida bem depois, assim como Toby Dammit, só vemos a garotinha brincando com a cabeça dele e a corda manchada de sangue. Ou ainda o pai de Marcello Rubini em A Doce Vida, que teve um problema qualquer, mas acabou nem morrendo.

“O duplo de Fellini não morre: nem Moraldo, nem Marcello, nem Guido. Como se Fellini, supersticioso, tivesse desejado afastar de si as representações de sua própria morte através daquela de seu duplo. Sabemos que ele esteve muito doente durante os anos 60 e que é por esta razão que Il Viaggio di G. Mastorna foi adiado sine die [por tempo indeterminado]. Curiosamente, a introdução [de Mastorna] começa por uma descrição clínica do que poderia ter sido sua morte no hospital quando esteve na sala de radiologia. Presságio do necrotério, num dia quase irreal. Fellini não gosta da morte. Seu cinema é para os vivos. Nós todos estamos numa barca quase virando, mas damos graças à força dos mitos e à esperança violenta. Ironia do destino que desejou que Fellini revivesse uma última vez suas cenas de hospital e que, pelo contrário, resistisse ainda quinze dias antes de morrer. Como se, através de seu coma, ele desejasse esperar o dia do aniversário de seu casamento com Giulietta”  (25) (imagem abaixo, momento do lançamento das cinzas ao mar, E La Nave Va)

Meu Nome é Ninguém


“Para mim  não existe  uma linha divisória  entre realidade
e   imaginação.    É   verdade   que    Mastorna    é  um    filme
sobre vida depois da morte, mas meu herói perdeu alguma coisa
insignificante   para   os   outros,   mas   de    grande    importância
emocional    para    ele.     Ele    conseguiu     entrar   no    labirinto
de sua memória,  contendo  incontáveis saídas,   mas   apenas
 uma   entrada...  Eu   ainda  não   encontrei   a   entrada (...)

Federico Fellini (26)

Fellini encontrou o nome do protagonista no catálogo telefônico. Naquele momento o filme ainda se chamava apenas Il Viaggio e o cineasta ficou se perguntando quem seria este senhor cujo nome figurava na lista telefônica de Milão. Dino Buzzati, que Fellini afirmou ser capaz de encontrar nomes estranhos e ao mesmo tempo verossímeis, chegou a propor uns vinte exemplos. Antes de pronunciar o nome, o escritor soltava uma breve risada, isso divertiu Fellini durante uma meia hora, ao final da qual ele pediu o catálogo telefônico e o abriu ao acaso.

Fellini também revelou outro encontro estranho que o teria “levado à Mastorna”. Certa vez o cineasta estava na sala de espera do aeroporto de Copenhague, na Dinamarca, quando notou uma mala de metal perto dele. Ao lado da alça havia um cartão de visita onde se podia ler “J. Mastorna”. Fellini olhou para todos os lados procurando pelo dono daquela mala, foi quando o alto-falante anunciou a partida de seu vôo. O cineasta já estava no ônibus que o levaria ao avião quando pensou ter visto ao longe alguém se abaixar para pegar a mala, mas a imagem não era clara, poderia ser um negro, uma mulher... (27). Depois tantos adiamentos de Mastorna, Fellini comentou numa entrevista que estava considerando a hipótese de transformar o filme numa história em quadrinhos (28) (imagem abaixo, 8 ½)

Entre Sonhos e Pesadelos


“A recusa da realidade desagradável foi a base [do  gosto célebre
  de   Fellini]     pela     mentira.    Ele     mentia     para     si     mesmo, 
 assim    como    para    os    outros,    por     delicadeza,      por      pudor,  
por   uma    espécie   de   ‘encenação   total’:   criar    em   torno   de   si
 um  mundo   acolhedor   e   doce.  Alguns   não   compreenderam  isso, 
julgaram-no mal,  e  Fellini   tinha  uma  reputação de   duplicidade. 
Mas   mentira   é   uma   coisa,   hipocrisia   é   outra.   A  hipocrisia
pressupõe   uma  vulgaridade  totalmente   estranha   a   Fellini”

Bernardino Zapponi (29)

Mastorna seria filmado em preto e branco (e algum contraste com cores escuras), na primavera de 1966 começa a busca por locações e rostos (atores e atrizes). Certo dia Fellini teve um terrível devaneio, a catedral de Colônia (na Alemanha) estava desabando sobre ele – quando acordo, o cineasta reparou que havia pulado quatro metros de distância de onde estava. Fellini ficou perplexo, assustado, refletindo-se na busca pelo ator principal. Fellini disse que não queria se repetir e evitou chamar Marcello Mastroianni (muitas vezes considerado o alter ego do cineasta). Parece que na época circulou a sugestão de que Mastorna fosse uma contração de Mastroianni ritorna (Mastroianni retorna), uma coisa que Fellini pretendia evitar – de qualquer forma, o ator não estava disponível.

Curiosamente, ressaltou Kezich, Fellini demonstrava abertamente ciúmes pelo fato de Mastroianni estar trabalhando para outra pessoa – o cineasta chegou a tentar convencer alguns amigos a não ir aplaudir Mastroianni! Outros nomes cogitados foram Lawrence Olivier, Steve McQueen e Giorgio Strehler – perto do final de sua vida, na segunda metade da década de 90, este grande ator de teatro chegou a propor que sua estreia na direção de cinema poderia ser realizando Il Viaggio di G. Mastorna. Fellini tem um sonho com Olivier e Ugo Tognazzi em 26 de junho de 1967:

“Eu fui falar com Lawrence Olivier para o papel em Mastorna. Vendo ele em pessoa, falando com ele, estou convencido de que é a pessoa ideal para o papel. Que belo rosto! Que humanidade! Abraçamo-nos chorando como se ambos soubessem que não há maneira de trabalharmos juntos. ‘Talvez’, disse Sir Olivier, seu rosto cheio de lágrimas, ‘se você puder adiar o filme até abril’. Mas então ele balança a cabeça como que dizendo que mesmo que isso aconteça não poderia honrar o compromisso. Que pena! Eu insisto, me arrependendo amargamente de todas as dúvidas e preocupações que tinha tido em relação à escolha de tal ator. Olivier [também está realmente chateado], ele se afasta, logo deverá estar no palco, dá adeus mais uma vez e então desaparece. Em meu sonho, Tognazzi aparece sentado na mesa conosco, seu rosto mais fino, nítido, não parece tão ruim quanto antes” (30)

Depois de pensar em convidar o comediante italiano Totó (31), Fellini acabou optando por Mastroianni mesmo. Ainda assim, o cineasta não parece confortável com a situação:

“Em 14 de setembro, Fellini registra um pesadelo em seu livro. Um trem parte as 8:30 (uma referência à 8 ½ talvez?), e, ainda que Fellini já estivesse na estação, ele o perde – exatamente como Mastorna. O diretor consegue saltar num dos degraus de desembarque e se agarra perigosamente do lado de fora do trem em alta velocidade, mas ele não pode saltar [ou] abrir as portas para entrar. A última palavra é ‘Socorro!’ Teria sido esse sonho o que levou Fellini a enviar uma carta registrada naquele dia mesmo a De Laurentiis, explicando sua perda de entusiasmo pelo filme” (32) (imagem abaixo, bordel barato em Roma)


Kezich conta que De Laurentiis agiu exatamente como o produtor no final de 8 ½, que ameaçou: “Vou acabar com você se não fizer esse filme” (33). O tempo passa e já estamos em 1967 quando Fellini anuncia que estúdios norte-americanos estão interessados em Mastorna e voa para Londres em busca de atores ingleses. Como Mastroianni está ocupado novamente, Fellini escolhe Enrico Maria Salerno para o papel principal. De Laurentiis manda seus advogados para tentar costurar um acordo, cineasta e produtor se encontram e se reconciliam, enquanto seus advogados esperam nos carros – De Laurentiis tem outra versão para o episódio. Novamente, o começo das filmagens é adiado – uma nova equipe teria de ser reunida, já que a original se dispersou em outros trabalhos.

De Laurentiis acha que Salerno simplesmente não é conhecido o suficiente para estrelar Mastorna e continua sonhando com um ator norte-americano. O produtor se irrita com Fellini porque este já começa a anunciar seu próximo projeto, Satyricon de Fellini, com um rival de De Laurentiis, o produtor Franco Cristaldi. Nova discussão entre Fellini e De Laurentiis leva à escolha do ator Ugo Tognazzi para substituir Mastroianni – o cineasta não está feliz com a decisão. Fellini ainda tentou colocar o ator Vittorio Gassman no lugar de Tognazzi. Gassman não disse nem que sim nem que não, mas deixou claro para Fellini que ele não poderia fazer isso com seu grande amigo Tognazzi (34). A data de início das filmagens se aproxima e Fellini fica cada vez mais nervoso e insone. Começa a registrar sonhos loucos em seu livro, repleto de sinais de parada, barreiras, cruzamentos de nível, alfândegas, catástrofes e a palavra auguri (boa sorte) partida ao meio. Fellini chegou a sonhar com o ator duas vezes (em 22 e 28 de maio de 1967):

1) “Dominado pelas mesmas velhas dúvidas dilacerantes sobre Tognazzi, eu pensei que uma maneira de resolver o problema sério de sua cara de macaco poderia ser vê-lo viver como uma das muitas encarnações bestiais de Mastorna que o protagonista encontra durante suas viagens. ‘Mastorna abre uma porta’, eu pensei, ‘e dentro ele vê (a si mesmo) Tognazzi. Em outras palavras, um personagem com essa cara que vive lá, vive lá dentro’ (...)”

2) “Na cozinha, eu sei que Giulietta está dizendo a Tognazzi que eu mudei de ideia a respeito dele e que ele não é bom para o filme. Mais tarde, Tognazzi me chama, como um covarde eu ainda quero dar-lhe alguma esperança porque eu não tenho coragem de dizer a verdade para ele. Mas ele começa a chorar. ‘Por que você está chorando’, lhe perguntei. ‘Porque você não me quer em seu filme!’, responde Tognazzi. Agora eu estou num grande avião, os motores já estão roncando, em poucos segundos a aeronave se moverá. Para onde estou indo? Para Londres? Para Milão? Talvez para Londres. De repente, eu decido não ir, quero saltar, me deixem! A comissária de bordo me dá meu paletó e minha mala, a porta ainda está aberta. As escada ainda está lá fora, mas outros passageiros chegam correndo exatamente quando estou para sair. Sem querer, a comissária bloqueia a saída, a escada está repleta de passageiros atrasados... e o avião começa a se mover nesse exato momento. As escadas se afastam. Eu ainda tenho tempo de pular? Ou eu serei forçado a sair? Cada fração de segundo que passa deixa minha decisão mais impossível. A tomarei a tempo? O sonho termina aqui... Estou dentro do avião em movimento, os motores rugem, a porta está aberta... Eu ainda posso alcançar as escadas se pular” (35)

Quando não faltava mais nada, Fellini fica gravemente doente. De Laurentiis está cético e manda seus próprios médicos para investigar, que o surpreendem ao sugerir que pode ser câncer. Todos os amigos querem visitar Fellini no hospital, até mesmo Papa Paulo VI envia uma mensagem – alguns anos antes, enquanto ele era bispo em Milão, recusou-se a receber Fellini, considerado pecador público por causa de A Doce Vida; o cineasta teve vários problemas com a Igreja ao longo de sua carreira, outro caso famoso aconteceu contra Noites de Cabiria. Muita gente se juntou ao coro que sugeriu se tratar de uma “doença tática” de Fellini, quando veio o diagnóstico de pleurite aguda. No hospital ele sonha de novo, desta vez um homem é engolido pelo tubo de respiração e o cineasta se pergunta: “quando o verei novamente?”. Fellini está bem disposto e até ri quando é informado sobre a internação de De Laurentiis com apendicite. Mas a recuperação do cineasta é lenta, até que seu tratamento será modificado depois que um médico (antigo amigo de escola de Fellini) o diagnostica com a síndrome de Sanarelli-Schwartzman. Agora com o tratamento correto, em pouco tempo Fellini está fora do hospital. (imagem abaixo, bordel caro em Roma)


De volta ao problema do protagonista, o norte-americano Paul Newman é mandado por De Laurentiis ao encontro do cineasta, para discutir sua eventual participação em Mastorna. Enquanto isso, Ugo Tognazzi pretende processar Fellini depois que leu nos jornais que o cineasta está com tognazzite (uma alergia à Tognazzi). Tempos depois, Fellini está tranquilo o suficiente para começar a escrever suas memórias para o livro La Mia Rimini, que servirá de base para base de Amarcord. Em agosto de 1967, Fellini assina um contrato de cinco anos com De Laurentiis que tomará o lugar de Il Viaggio di G. Mastorna – uma cláusula obriga Fellini a devolver o dinheiro investido até agora por De Laurentiis, algumas centenas de milhões de Liras. No mesmo dia o cineasta sonhou que foi decapitado enquanto dirigia ao tentar salvar algumas crianças. De acordo com Kezich, ele salvará seus futuros filmes (suas crianças) ao decapitar o motorista (G. Mastorna), assim como o protagonista de Toby Dammit, adaptação de um conto de Edgar Allan Poe em que um homem aposta sua cabeça com o diabo. 

Agora foi a vez de De Laurentiis ficar com ciúmes, já que o episódio foi produzido por outra pessoa, Alberto Grimaldi, que se mostrou até mesmo disposto a comprar os direitos de Mastorna (pertencentes à De Laurentiis). Kezich conta que, quando De Laurentiis pegou o cheque, se ajoelhou e disse, “São Gennaro existe e está de pé diante de mim, e seu nome é Alberto Grimaldi”. Posteriormente De Laurentiis acrescentaria, “nem mesmo São Gennaro realizaria o milagre real de conseguir que Fellini faça esse filme” (36). Mastroianni está com tempo novamente e não falta mais nada. Quando parece que tudo vai dar certo Fellini, nos termos de Kezich, tira a máscara: ele realmente não quer fazer o filme. Oferece então uma série de alternativas, uma delas é Satyricon, mas o cineasta será salvo pelo gongo, o dinheiro francês lhe convidou para realizar Toby Dammit. Pouco antes de partir para a realização de Satyricon, Fellini faz um epitáfio para Il Viaggio di G. Mastorna através de um documentário chamado Diário de um Cineasta (A Director’s Notebook, 1969).

Escrito por Fellini em parceria com Bernardino Zapponi, o pequeno documentário apresenta o que restou dos cenários de Mastorna, incluindo o avião e a catedral gótica – tudo isso ainda estava na chamada Dinocittà, terreno do estúdio cinematográfico de Dino De Laurentiis. Neste filme, que segundo Zapponi chamou de “merdinha”, o cineasta insere um bando de hippies morando naquele cenário, que vira uma cidade chamada Mastorna. O Diário é inspirado na passagem entre Mastorna e Satyricon, Zapponi contou que Fellini ainda tentou convencer Grimaldi (o produtor que sucedeu De Laurentiis na “saga Mastorna”) a realizar Mastorna ao invés de Satyricon. Grimaldi respondeu que simplesmente não queria ouvir falar desse filme (37).

“Contudo, Diário de um Cineasta não é a solução para o problema de Il Viaggio di G. Mastorna. Não obstante, entre um contrato e outro, Fellini consegue reembolsar Grimaldi e finalmente em 1971 possui integralmente os direitos [do filme]. Em 1976, depois de Casanova de Fellini, ele começa a falar sobre ressuscitar Mastorna com o escritor Tonino Guerra, mas uma ressurreição refinada e atualizada. Todavia, uma vez mais o diretor se depara com obstáculos que toma por avisos em código para não continuar. Certo dia, quando estava debatendo [a respeito da] história com Tonino num escritório na via Sistina, ele recebe uma chamada telefônica transmitindo notícias ruins. Altura em que ele fecha o roteiro, o atira dentro do armário e tranca a porta. Ele não falará novamente sobre o filme que, certa vez, Buzzati queria chamar La Dolce Morte (A Doce Morte). Numa entrevista, Federico concluiria que ‘Mastorna, como a relíquia de um navio submerso no fundo do oceano, alimentaria todos os meus filmes que vieram depois’” (38)



Mastorna: Federico Fellini e o Outro Mundo foi publicado originalmente na revista online dEsEnrEdoS (ISSN 2175 - 3903), ano IV - número 14 - edição julho-agosto-setembro de 2012.

Notas:

1. KEZICH, Tullio. Federico Fellini. His Life and Work. New York/London: I.B. Taurus, 2007. P. 272.
2. GRAZZINI, Giovanni. Fellini par Fellini. Entretiens Avec Giovanni Grazzini. Paris: Flammarion, 1984. P. 136.
3. KEZICH, Tullio. Op. Cit., pp. 24, 224-5.
4. Idem, p. 24.
5. A Comadre Seca, em italiano La Commare Secca, é também o título do primeiro filme realizado pelo cineasta italiano Bernardo Bertolucci, em 1962. Ambientado na periferia de Roma, o roteiro foi escrito pelo poeta e também cineasta Pier Paolo Pasolini. No Brasil, o filme receberia o título A Morte.
6. FELLINI, Federico. Fazer um Filme. Tradução Mônica Braga. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. P. 192.
7. CHANDLER, Charlotte. I, Fellini. New York: Random House, 1995. P. 372.
8. KEZICH, Tullio. Op. Cit., pp. 266-80.
9. BONDANELLA, Peter. The Films of Federico Fellini. New York: Cambridge University Press, 2002. P. 28.
10. KEZICH, Tullio. Op. Cit., p. 268.
11. Idem, p. 272.
12. Ibidem, p. 269.
13. ZAPPONI, Bernardino. Mon Fellini. Paris: Éditions de Fallois, 2003. P. 90.
14. KEZICH, Tullio. Op. Cit., p. 270.
15. QUINTANA, Àngel. Federico Fellini. Paris: Cahiers du Cinéma, 2007. P. 54.
16. CHANDLER, Charlotte. Op. Cit., pp. 70, 165-7, 289-90, 317.
17. Idem, p. 365.
18. BOARINI, Vittorio; KEZICH, Tullio (Eds.). Federico Fellini. The Book of Dreams. New York: Rizzoli, 2008. P. 540.
19. CHANDLER, Charlotte. Op. Cit., p. 291.
20. PETTIGREW, Damian. I’m A Born Liar. A Fellini Lexicon. New York: Harry Abrams Inc., 2003. Pp. 52-3.
21. CHANDLER, Charlotte. Op. Cit., p. 167.
22. Idem, p. 290.
23. QUINTANA, Àngel. Op. Cit., p. 74.
24. BONDANELLA, Peter. Op. Cit., p. 24; MÉJEAN, Jean-Max. Fellini, un Rêve, une Vie. Paris: Éditions du Cerf, 1997. Pp. 63-7.
25. MÉJEAN, Jean-Max. Op. Cit., p. 67.
26. PETTIGREW, Damian. Op. Cit., p. 97.
27. GRAZZINI, Giovanni. Op. Cit., pp. 135-8.
28. PETTIGREW, Damian. Op. Cit., p. 97.
29.  ZAPPONI, Bernardino. Op. Cit., pp. 14-5.
30. BOARINI, Vittorio; KEZICH, Tullio (Eds.). Op. Cit., p. 511.
31. FELLINI, Federico. Op. Cit., p. 171.
32. KEZICH, Tullio. Op. Cit., p. 272.
33. Idem.
34. ZAPPONI, Bernardino. Op. Cit., pp. 89-90.
35. BOARINI, Vittorio; KEZICH, Tullio (Eds.). Op. Cit., pp. 508, 509.
36. KEZICH, Tullio. Op. Cit., p. 278.
37. ZAPPONI, Bernardino. Op. Cit., pp. 28, 30, 31.
38. KEZICH, Tullio. Op. Cit., pp. 279-80.

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