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Roberto Acioli de Oliveira

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28 de nov. de 2018

De Crápula a Herói


“O último refúgio de um canalha é o patriotismo”

Samuel Johnson (1709-1784), escritor e crítico inglês 

Esta frase é atribuída  a  Johnson por seu biógrafo,  James Boswell.  O  escritor
se refere 
  a um  patriotismo  negativo,  que  atribuiu  pejorativamente  aos  “patriotas  autoproclamados” 
em geral, que distinguia do “verdadeiro” patriotismo, o qual defendia e acreditava existir

Às Vezes Acontece
Vigarista e trapaceiro, Bardone vive de pequenos expedientes para tirar dinheiro das pessoas durante a ocupação da Itália pelos nazistas na Segunda Guerra Mundial – o país já havia sido invadido pelas tropas aliadas. Covarde, seu alvo preferido são as mulheres e os velhos. Contudo, Bardone tem um vício, jogos de azar. Certo dia acaba fazendo amizade com um coronel alemão cujo carro estourou o pneu - Bardone se apresentou como Grimaldi, engenheiro. Estava aplicando mais um de seus golpes quando é finalmente apanhado. Para azar de Bardone, o chefe de polícia é justamente o coronel Müller, a quem enganou diretamente ao dar uma identidade falsa – sentença: fuzilamento. Mas o trambiqueiro está com sorte, o nazista lhe oferece um milhão de liras e um salvo-conduto para a Suíça, em troca ele deverá fingir ser um líder da resistência antifascista recentemente morto – fato que será escondido de todos. É assim que o vigarista assume a identidade do general Della Rovere.
Então Bardone vai para a prisão como della Rovere, com a tarefa de descobrir a identidade do homem que faz o contato com a resistência, devendo entregá-lo à Müller para receber sua recompensa. Durante sua estada na prisão, Bardone fica chocado com as frases escritas nas paredes de sua cela por outros que ali estiveram e sabiam que seriam fuzilados. Aos poucos o vigarista será corroído pelo remorso de trocar sua vida de escória da sociedade pela de corajosos guerrilheiros. Depois de ser torturado pelos alemães, Bardone supera sua crise de consciência e assume o lado dos resistentes contra o invasor. No final, não entrega o nome do contato e acaba por vontade própria sendo fuzilado como general Della Rovere.

Resistência sem Militares


 Se  no  imediato pós-guerra a Resistência antifascista italiana era
 vista como um fato político-organizacional, nos filmes dos anos 1960
 vigora o prisma emotivo e moralista, daí a perda de credibilidade

Evidentemente, faz sentido inserir De Crápula a Herói (Il Generale Della Rovere, 1959), de Roberto Rossellini, dentre os filmes da década de 1960 que retornaram ao tema da luta antifascista da Resistência contra o invasor nazista na Itália, assunto que havia sido recorrente nos filmes italianos produzidos entre 1944 e 1946. Mariarosaria Fabris explica que a temática da Resistência foi abandonada em 1947, num momento politicamente instável do país, para ser retomada em 1951 por Carlo Lizzani, com seu A Rebelde (Achtung! Banditi!), quando as forças conservadoras já haviam se restabelecido no poder (1). Entre 1959 e 1961, Rossellini realiza a transição definitiva a um cinema histórico de caráter didático (2). Muitos, especialmente os críticos de esquerda, questionaram os filmes realizados nesta fase como um retorno a certa dramaturgia mais convencional anterior ao Neorrealismo (3). Já em 1966, podia-se ler a seguinte crítica sobre De Crápula a Herói:

“O filme, no entanto, decepcionou. Rossellini acreditava poder retomar seu discurso sobre a luta antifascista iniciado com Roma, Cidade Aberta (Roma Città Aperta, 1945) e continuado em Paisà (1946), mas, na realidade, a crônica sincera daqueles dois filmes era substituída por uma história mitificada e, na opinião de Mario Alicata, falsificada: ‘é realmente uma falsificação da Resistência; a partir do momento em que cria o mito desse general do exército, o qual [...] resulta esperado por todos os participantes da Resistência como o homem decisivo para a situação, se afasta daquelas características graças às quais a Resistência italiana se diferencia das demais. Aquele era um filme que teria servido muito bem se tivesse querido interpretar a Resistência francesa, na qual também a classe operária lutou, teve tantos heróis e tantos mártires, foi um fenômeno popular, na qual, porém, persistiu a direção da velha classe dirigente, personificada pelo general De Gaulle, enquanto a característica da Resistência italiana foi que os chefes da Resistência, os chefes militares, os ‘quadros’, saíram das massas populares, dos partidos políticos, e os militares [...] aceitaram aquela direção’” (4)


 De Crápula a Herói  forma  trilogia  de  retorno ao tema da guerra, 
cuja segunda parte, Era Notte a Roma (1960), não foi elogiada pela
crítica  (5), por  apresentar  uma  visão  estereotipada da Resistência
  a terceira parte virá com a série para tv A Idade do Ferro (1965(6)

É neste contexto que surge De Crápula a Herói, dividindo o Leão de Ouro no Festival de Veneza com A Grande Guerra (La Grande Guerra, 1959), realizado por Mario Monicelli. Desta forma, o Fascismo, a guerra e a Resistência retornam à cena. Contudo, de acordo com Fabris, as décadas que se passaram não foram capazes de permitir a retomada destes temas a partir de um ponto de vista mais apropriado, os filmes realizados entre 1959 e 1963 propõem uma visão estereotipada da Resistência, sem a devida reinterpretação crítica. Pelo contrário, se antes a Resistência era vista como um fato político-organizacional, nos filmes dos anos 1960 ela seria vista mais através do prisma emotivo e moralista. O historiador de cinema e crítico Lino Micciché sugere uma explicação para o retorno dessa temática:

“A floração de uma corrente cinematográfica, que variadamente se inspirava em fatos, episódios e questões políticas dos anos dramáticos da ditadura, da guerra fascista, da Resistência e da queda do regime, não era somente um expediente de produção, mas tinha, certamente, ligações precisas com o debate político que naquela época de transição existia no país. As ambições neocapitalistas e as esperanças reformadoras confluíram na necessidade comum de liquidar historicamente o fascismo, por um lado, como extrema ratio [última solução] do paleocapitalismo [o primeiro estágio de desenvolvimento de um sistema capitalista] que tinha caracterizado a jovem sociedade italiana dos primórdios do século XX, depois de Versalhes [local do acordo dos vencedores da Primeira Guerra Mundial, no qual a Itália saiu insatisfeita, uma das raízes do Fascismo], e, por outro, como a fase de um choque frontal, e sem possíveis tréguas conciliatórias, entre burguesia e proletariado... Estava implícito nessas novas tendências nacionais e internacionais que o fascismo fosse transformado em história e que fosse representado com o desencanto psicológico e o distanciamento crítico de uma sociedade, nacional e internacional, que se julgava definitivamente protegida em relação àquela experiência histórica” (7)

O Insignificante Redimido


“Nunca teria acreditado que fosse tão fácil morrer”

 Nas paredes da cela, Bardone encontra frases de membros 
da Resistência  que  sabem  que  serão  fuzilados em breve

Visto por outra perspectiva, quando realizou De Crápula a Herói, Rossellini já havia deixado para trás clássicos neorrealistas como Roma, Cidade Aberta e Paisà, sem falar nos filmes do “ciclo Ingrid Bergman” como Viagem à Itália (Viaggio in Italia, também conhecido como Romance na Itália, 1954). O início de sua fase de documentários históricos para televisão, com India: Matri Bhumi (que também teve uma versão para cinema, 1959), que apareceu no mesmo ano, ainda seria entremeado com alguns filmes para cinema até 1961. Com a reconstrução do pós-guerra, não havia mais como filmar as ruínas de prédios bombardeados. Além disso, de acordo com Peter Bondanella o olhar de Rossellini em relação à guerra havia mudado consideravelmente desde 1945, agora está tingido de uma consciência irônica de que os sacrifícios feitos durante o tempo de guerra não levaram à primavera que seus personagens sonharam em Roma, Cidade Aberta.

“Quando sua parceria com Ingrid Bergman terminou, ele realizou O Medo (La Paura, 1954), filme do qual ele parece estar ausente. Pouco tempo depois foi para a Índia, onde reencontrou sua autoconfiança, juntamente com seu potencial expressivo e uma virgindade visual que o permitiu responder a mais de uma das questões que havia perguntado a si mesmo durante os anos anteriores. Seu retorno à Itália e o laçamento de De Crápula a Herói, agraciado com o Leão de Ouro em Veneza, o permitiu recuperar a reputação que perdera entre público e crítica. Era uma vez mais aclamado como um mestre do cinema italiano. A luta pela libertação [durante a Segunda Guerra] e a guerra civil [depois do conflito], temas que reprimiu por uma década, agora retornam como inspiração central para os diretores italianos, no momento em que o país está atravessando uma fase de importante transformação e crescimento democrático” (8)

Rossellini optou por não se concentrar nas implicações políticas da luta contra o invasor alemão, apresentando-nos um exemplo do tema do choque entre realidade e aparência, através da transformação da personalidade de Bardone. Durante um bombardeio próximo da prisão, o vigarista está tremendo de medo e acaba levando todos os detentos a gritarem pedindo para sair dali. Ele percebe o pânico e, apresentando-se como general Della Rovere, aos gritos conclama os prisioneiros a mostrarem coragem diante do invasor nazista. A seguir, será torturado como eles. Ao receber as cartas endereçadas ao Della Rovere verdadeiro (enviadas pela esposa, que acredita que está vivo), Bardone será engolido pelos dramas pessoais do general, além de interagir com os detentos como se fosse ele. Gradualmente, Bardone emerge de sua original condição de delator insignificante e vai se transformando na figura ilibada de Della Rovere (9). Em 1962, Glauber Rocha encaixou Bardone uma mística de Rossellini:

“Em Il General Della Rovere o caminho que leva o Crápula a se converter em Herói não é a consciência política sistematizada, mas a consciência múltipla forçada pela violência, amor, morte, respeito ao homem e principalmente pela solidão. O solitário prisioneiro numa cela nua, onde apenas inscrições de condenados se projetam como fantasmas naqueles dias, compreende o valor do homem. Sua política é mística e implica uma negação do ser comprometido por esquemas exteriores. Quando o crápula compreende a importância do heroísmo – que surge da necessidade coletiva – ele se converte em herói, mas porque ser herói é buscar a salvação de outra espécie que não a cristã. Se [Bardone] procurava a salvação econômica na Itália conflagrada pela guerra, agora, diante da imensa fortuna (um milhão de liras e um salvo-conduto para a Suíça), na solidão do cárcere, prefere salvar a consciência adquirindo a personalidade heroica do General della Rovere, um Mito, nova existência mesmo atingida pela morte. O comandante alemão não entende o novo herói. Rossellini talvez não o entenda também e é por isso que o close do herói morto [no final] não surge na tela. Como Brecht, Rossellini deixa que o espectador seja um crítico. Atingir nova existência além da vida (para quem não acredita no Deus bíblico reduzido ao Deus católico ou protestante) é a origem de um misticismo que, no caso rosselliniano, poderia ser chamado de misticismo social” (10)


Rossellini considerou De Crápula a Herói um filme insatisfatório (11)
Aquela persona o domina, até que Bardone se torna a pessoa que pretendia inicialmente apenas fingir que era. Ele chega a descobrir a identidade do guerrilheiro, mas agora já está transformado e não irá revelar, preferindo morrer com os outros patriotas. Sua execução, concluiu Bondanella, representa sua última trapaça. Através deste retrato de um criminoso insignificante simpático que assume a identidade de um personagem corajoso, Rossellini apresenta uma marca de heroísmo bastante distinta daquela que emana da luta maniqueísta entre o bem e o mal presente em Roma, Cidade Aberta
Segundo o ponto de vista feminista de Marga Cottino-Jones, é sintomático que com o fim do ciclo Ingrid Bergman, Rossellini parece ter perdido o interesse em retratar a luta das mulheres por autoconsciência e tenha retornado aos heróis masculinos, como em De Crápula a Herói, e, posteriormente, seguido pela via dos documentários históricos, todos centrados em personagens masculinos. Ainda assim, admite que a abordagem que Rossellini realizou das questões femininas é considerada única no cinema italiano das décadas de 1940 e 1950, influenciando seus colegas conterrâneos (12).
Desta forma, as conquistas políticas da Resistência antifascista são colocadas implicitamente em questão: apenas o ato de sacrifício pessoal de Bardone parece ter qualquer sentido para Rossellini, a causa pela qual Bardone morre não chega a chamar nossa atenção. Segundo Bondanella, como os melhores personagens dos filmes cômicos daquele período (início dos anos 1960), Bardone é um personagem problemático. Anti-herói, ambivalente, é mais apropriado para as incertezas de uma nova era do que para o período do imediato pós-guerra, quando fáceis escolhas morais maniqueístas encontraram campo extremamente fértil para florescer. 
Essa capacidade de atuar em papéis múltiplos num mesmo filme, apresentando personagens com temperamentos e moral distintas, acompanha a carreira do ator Vittorio De Sica faz tempo. Em 1937, atuou em Os Apuros do Senhor Max (Il Signor Max, direção Mario Camerini, 1937), quando apareceu como jornaleiro humilde que assume a identidade de um homem rico da alta sociedade. Em 1940 ele mesmo dirigiu um filme, Madalena, Zero em Comportamento (Maddalena... Zero in Condotta, 1940), onde atuou em três papéis, avô, pai e filho (13).

Atuação e Autenticidade


Rossellini não escolheu Vittorio De Sica por acaso.  A tensão entre
realidade  e  aparência  em De Crápula a Herói lembra Os Apuros
do Senhor Max,  onde  o  mesmo  ator  se  passa por um jornaleiro
 pobre que assume em segredo a identidade de um homem rico (14)

De acordo com Marcia Landy, em De Crápula a Herói, Rossellini utilizou a imagem de estrela de cinema de Vittorio De Sica para ilustrar a questão do elemento de teatralidade na vida e na ficção. Neste filme, as várias identidades de deste ator introduzem a questão de como determinar a atuação da estrela: como falsificada e inautêntica, ou, pelo contrário, confiável, real, heroica e “verdadeira”. O Bardone apresentado por De Sica é um jogador compulsivo, trapaceiro galanteador e colaborador dos nazistas com o objetivo de assegurar sua própria sobrevivência (15).
Sabemos que com o passar do tempo ele vai assumindo outra identidade. Contudo, na opinião de Landy, não é possível saber realmente se Bardone se assume como Della Rovere apenas para tentar sobreviver (uma vez que as tropas aliadas já estavam tirando a Itália das mãos dos alemães) ou se havia mesmo “incorporado” o guerrilheiro antifascista. A razão desta impossibilidade seria o fato de aqui a utilização da persona de De Sica estar ligada à impossibilidade, na relação entre a vida social e o estrelato, de identificar a persona “real” e sua autenticidade e motivos para atuar – traduzindo: não dá para saber quando uma estrela de cinema/televisão está atuando ou sendo ela mesma. 
De Crápula a Herói confunde ainda mais as fronteiras entre realidade e artifício ao apresentar De Sica, ator identificado com o papel de duplicação de personagens e representação em muitos filmes. Além disso, o filme apresenta elementos identificados com sua biografia, incluindo seu vício em jogatina, o comportamento mulherengo e sua identificação com a política de esquerda. Com tudo isso, o filme acaba questionando nossa crença numa identidade fixa e contribui para repensar o realismo. No fim de contas, não importa mais se Bardone se converteu ao heroísmo, mas se ele adotou outra persona socialmente aceitável, que se conforma às expectativas do comportamento heroico.
Para Landy, isso ainda quer dizer que no Neorrealismo que ela ainda reconhece em De Crápula a Herói envolve concepções do real distintas daquelas dos filmes sentimentais anteriores a este movimento. Citando Gilles Deleuze em Cinema 2 – A Imagem Tempo (capítulo 6), Landy conclui que “as ‘potências do falso’ são uma característica inevitável do mundo do cinema posterior à Segunda Guerra Mundial, que transferiu seu foco do ‘absolutamente verdadeiro’ para a contemplação de sua fabricação” (16).

Leia também:


Notas:

1. FABRIS, Mariarosaria. O Neo-Realismo Cinematográfico Italiano. São Paulo: Edusp, 1996. Pp. 38-42.
2. APRÀ, Adriano. Introduction à l’Encyclopédie Historique de Rossellini. In: APRÀ, Adriano (Org.). La Television Comme Utopie. Paris: Cahiers du Cinéma, 2001. P. 9.
3. FORGACS, David. Introduction: Rossellini and the Critics. In: FORGACS, David; LUTTON, Sarah; NOWELL-SMITH, Geoffrey (Eds.). Roberto Rossellini, magician of the real. London: British Film Institute, 2000. P. 5.
4. FABRIS, M. Op. Cit., pp. 50-1.
5. APRÀ, Adriano. Rossellini’s Historical Encyclopedia. In: FORGACS, David; LUTTON, Sarah; NOWELL-SMITH, Geoffrey (Eds.). Op. Cit., . 143.
6. FABRIS, M. Op. Cit., p. 41.
7. Idem, p. 42.
8. BRUNETTA, Gian Piero. The History of Italian Cinema. A guide to Italian film from its origins to the twenty-first century. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 2009. P. 134.
9. BONDANELLA, Peter. Italian Cinema. From Neorealism to the Present. New York/London: Continuum, 3ª ed., 2008. Pp. 162-3.
10. ROCHA, Glauber. Op. Cit., p. 213.
11. LANDY, Marcia. Stardom, Italian Style: Screen Performance and Personality in Italian Cinema. Indiana: Indiana University Press, 2008. P. 118.
12. COTTINO-JONES, Marga. Women, Desire, and Power in Italian Cinema. New York: Palgrave MacMillan, 2010. P. 81.
13. LANDY, M. Op. Cit., p. 56.
14. BONDANELLA, P. Op. Cit., p. 17.
15. LANDY, M. Op. Cit., p. 118-9.
16. Idem, p. 119.

31 de mai. de 2017

Antonioni Muito Além das Nuvens


 “No final dos anos 1970,  almejando  realizar filmes que, 
pela enésima vez, ninguém queria produzir, Antonioni escreveu
narrativas para o Corriere della Sera,  posteriormente reunidas
em Quel Bowling sul Tevere (1983), e começou a pintar”

Carlo Di Carlo (1)

Quatro Nuvens

Ferrara: Um cineasta em busca de novos temas passeia pela cidade quando percebe duas pessoas ao longe. Silvano é engenheiro e parece estar perdido quando pede indicação de um hotel para a moça que passa de bicicleta, separados pela arquitetura do local, ele está sob o céu, enquanto Carmem passa por uma espécie de túnel formado pelo segundo andar do prédio e as arcadas que o sustentam. Ela indica o caminho e os dois se reencontram no hotel. Apesar do visível interesse dela, Silvano resolve não entrar no quarto dela. No dia seguinte, Carmem se foi sem se despedir. Dois ou três anos se passaram até que se encontram novamente no final de uma sessão de cinema. Desta vez Silvano vai até a casa dela, mas na hora de transar contentar-se em deslizar sua mão milímetros acima da pele de Carmem. Ele vai embora, ela está na janela e trocam um breve olhar, Silvano vira de costas e vai embora. Neste momento o cineasta vira a esquina e passamos a acompanhar sua caminhada, que termina num parque de diversões vazio na beira do mar Adriático. (imagem acima, o cineasta chega à Ferrara e começa a perambular em busca de personagens como um detetive de filme noir)
Portofino: Continuando sua busca por um personagem, agora o cineasta perambula pela cidade no litoral do mar Adriático, observa uma mulher misteriosa que passa próximo dele, que a segue até o destino, uma loja onde a moça trabalha. O cineasta está justamente à procura de uma mulher introvertida como ela, mas hesita por alguns instantes em contatá-la e fica olhando através da vitrine. Entra na pequena loja e fica seguindo a moça de um lado para o outro, levando-a a suspeitar de alguma coisa, então ele deixa o local se disser nada. Naquela tarde ela o aborda e diz que matou o pai com doze facadas dentro daquela loja, e decidiu trabalhar lá para exorcizar a lembrança. Depois de uma conversa longa, eles transam e o cineasta vai embora. A seguir, sozinho o homem reflete sobe as doze punhaladas e decide que para sua história duas ou três são suficientes. (imagem abaixo, primeiro encontro de Silvano e Carmen em Ferrara; perto dali, o cineasta observa, toma notas e tira fotografias)


(...) Além  das  Nuvens  é  familiar, (...)  exceto pela onipresença
da  [trilha  musical].  Como  em  Zabriskie  Point  e  Identificação
 de Uma Mulher, Antonioni confiou em estrelas do rock (...)”  (2) 

Paris: Roberto encontra a italiana Olga, sua futura amante, numa cafeteria. A mulher se aproxima dele e conta uma estranha história de carregadores Incas no México que, durante uma viagem, param de tempos em tempos sem nenhuma razão. Questionados pelo chefe da expedição, respondem que andaram muito rápido devem esperar suas almas que ficaram para trás. A conclusão de Olga: “nós também corremos atrás de muitas coisas e perdemos nossa alma”. Olga e Roberto ficam juntos por três anos, durante os quais ele mente para Patrizia, sua esposa, que sabe da amante e tenta trazê-lo de volta ao casamento sem sucesso. Ao chegar em casa, Carlo encontra o apartamento vazio, sua esposa o abandonou, levou todos os móveis e colocou para alugar. Toca o telefone, breve discussão, ela decreta: “não me procure!”. Em busca de outro lugar para morar, Patrizia bate na porta de Carlos e os dois náufragos do casamento conversam perambulando pelo apartamento moderno com paredes de vidro. O telefone dela toca, ela decreta: “não me procure!”. Patrizia largou o marido por causa da amante dele, enquanto a esposa de Carlos o trocou por um amante. Agora eles formam um casal.
Aix-en-Provence: Na cena seguinte um casal parece brigar bem próximo da linha férrea no campo, justamente no momento que o trem passa em alta velocidade. Lá dentro, o cineasta divaga em seus pensamentos. Uma passageira entra na cabine e atende ao telefone celular: “Já te disse, não me chame mais!”. O trem atravessa a região em frente ao Monte Sainte-Victoire, tornado célebre em função de um quadro pintado por Paul Cézanne. Noutro ponto da paisagem, um homem pinta a mesma montanha enquanto conversa com uma mulher a respeito da natureza das cópias. Incluída agora na paisagem uma usina nuclear. Corte para o cineasta, que admira uma cópia do quadro de Cézanne no saguão do hotel. Passa por ali um rapaz que a seguir procura puxar conversa com uma moça. Ela está com pressa e segue para a igreja sem dar muita atenção ao galanteador. Na igreja, ele dorme durante o canto gregoriano e a perde de vista. Mais tarde, ele a reencontra e voltam a falar sobre estar vivo. No fundo, ele quer que a moça o permita entrar em sua vida. Na despedida, ele pergunta se pode vê-la no dia seguinte, ao que ela responde: “amanhã vou entrar para o convento”. Enquanto o rapaz se retira desconcertado sob a chuva, reencontramos o cineasta. Ele assiste a cena e ouvimos seu pensamento falando: “a profissão do diretor é muito particular”. A partir daí, volta para o hotel e assistimos ao desfile da câmera por várias janelas onde assistimos várias pessoas vivendo suas vidas. Numa delas, o vulto do diretor de cinema, logo recuando e desaparecendo na penumbra. (imagem abaixo, prólogo da última parte, ao fundo o Monte Sainte-Victoire tornado célebre pelo pintor Paul Cézanne; à esquerda, parte do quadro pintado pelo homem que queria repetir a pincelada do pintor; entre ambos, uma usina nuclear contrasta com a paisagem. É bom lembrar que Antonioni nunca foi contra o progresso tecnológico)

O Homem Moderno e o Cineasta


Lançado nos Estados Unidos apenas em 1999, em geral a crítica
elogiou,  mas  referindo-se a personagens com obsessões românticas
buscando uma verdade fugidia. Para Murray Pomerance, na obra de
 Antonioni não existe verdade fugidia,  apenas mais complexa  (3)

Murray Pomerance insere Além das Nuvens (Al di là delle Nuvole, 1995) numa reflexão em relação à modernidade, mostrando como certos interesses de Antonioni se encaixam aqui e afirmando que este filme constitui um longo ensaio a respeito dos sintomas e possibilidades da vida moderna, especificamente em relação à capacidade das pessoas para se relacionarem. Tornar-se visível para alguém é uma tarefa complexa, quando se torna mais importante saber o que se vai projetar para os outros do que aquilo que somos para nós mesmos. Pomerance acredita que o filme de Antonioni é sobre essas escolhas que fazemos “na hora de aparecer” para alguém, e seria uma análise superficial concluir que Além das Nuvens é sobre amor. Na opinião de Pomerance, os personagens estão mergulhados em nostalgia. Um lugar estranho do passado onde se tornam visitantes e acabam por se afastar daquilo que lhes é familiar, de modo que nos movemos mais rápido do que nossas almas e nos posicionamos fora de nós olhando para nós mesmos com os olhos de um desconhecido bem intencionado. Pomerance insiste que é essa “turbulência doce” que define o toque de Silvano sem tocar a pele de Carmen; na cena de amor entre o cineasta e a moça em Portofino, sozinhos-juntos; Carlo e Patrizia navegando na memória de seus casamentos, suas mobílias perdidas e seus sonhos traídos; Niccolo em Aix, fugindo de alguém também em fuga. Aqui, a milenar relação do toque é substituída pela promessa de uma busca (4).

“Como quando voamos acima das nuvens [e] nos sentimos como se estivéssemos ‘além’ da agitação da sociedade abaixo, fora de alcance e, de fato, desesperadamente, senão também delirantemente, incapazes de fazer contato; e sentindo que nosso movimento é dependente de nossos status como desconhecidos [outsiders]. Deste modo, todos os personagens nas quatro histórias que Antonioni filmou para Além das Nuvens estão separados uns dos outros e, portanto, da presença direta e compartilhada. Todos eles estão, em algum sentido profundo e evocativo, sozinhos. Talvez seja o caso de que nisso eles se assemelham e até espelham a condição de qualquer pessoa, sempre presa num ou noutro lado de uma substância quase imaterial que mantém as pessoas afastadas da raça humana. Não podemos conhecer plenamente o mundo, mesmo que possamos reconhecer suas superfícies, e então as superfícies se tornam o mundo: uma temática que Seymor Chatman atribui ao cinema de Antonioni. Muito perspicaz Gilberto Perez escreve sobre um tipo de separação na visão da câmera de Antonioni, na medida em que ‘nós observamos o homem e a mulher do ponto de vista de um estranho que de alguma forma chegou até eles’. Mas não é isso que tenho em mente quando invoco a separação, uma vez que estranhos também tem casas, e todos os estranhos podem imaginar um país onde não sejam nem separados daqueles a quem eles olham nem separados dos rituais do fluxo da vida. Tenho em mente muito mais um tipo de nostalgia por um passado irrevogável e inesquecível (...)” (5) (imagem abaixo, o cineasta na penumbra enquanto assiste às pessoas vivendo suas vidas, cena final de Além das Nuvens)


“A profissão do diretor é muito particular”

Do monólogo final de Além das Nuvens

Peter Brunette propõe perspectiva distinta de Pomerance e dá voz a certas críticas vindas dos Estados Unidos por ocasião do lançamento de Identificação de Uma Mulher (Identificazione di una Donna, 1982) reprovando a autobiografia mais explícita. Se em Blow Up - Depois Daquele Beijo (Blow Up, 1966) e Profissão: Repórter (Professione: Reporter, 1975) verifica-se um sutil conexão entre o cineasta e seu alter ego na tela, no caso de Identificação a ligação é complemente óbvia, tornando o filme menos interessante. Como em Além das Nuvens (embora isso não seja muito evidente), o protagonista é também um cineasta, envolvido numa busca obsessiva por duas mulheres. Reaparecem muitos dos temas e técnicas típicos de Antonioni, amarrados por cenas de sexo como nunca se viu em seus filmes anteriores. Na opinião de Brunette, a melhor análise de Identificação de Uma Mulher foi produzida por Andrew Sarris, para o Village Voice: “Antonioni sempre esteve lá, na tela, mas tínhamos a tendência a confundir seu reflexo com um retrato do Homem Moderno, com todos os seus fios desconectados. Contudo, agora que o diretor fica nu diante de nós, a ausência de narrativa convincente plausível drena seu filme confessional da necessária tensão para prender nossa atenção” (6). Brunette sugeriu que essa conexão entre personagem e criador é ainda mais flagrante em Além das Nuvens, onde vários personagens emitem frases de Antonioni em suas muitas entrevistas (7). Em seu diário sobre as filmagens, Wenders observa que se chegou a avaliar a possibilidade de Antonioni assumir o papel, mas ele se negou, insistindo para que encontrassem alguém mais jovem (8). Numa entrevista em 1970, o cineasta admitiu que buscar a si mesmo em cada filme é o que faz um diretor de cinema, simplesmente porque cada um deles é parte da viagem de auto descoberta, e que geralmente nascem da desordem interior em cada um (9). E completou, sem nenhum receio de se expor:

“Meus filmes são sempre trabalhos de pesquisa. Não me considero um diretor que já dominou sua profissão, mas alguém que continua sua busca e estudando seus contemporâneos. Estou procurando (talvez em cada filme) por traços de sentimentos nos homens e, claro, nas mulheres também, num mundo onde esses traços foram enterrados para abrir caminho a sentimentos de conveniência e de aparência: um mundo onde os sentimentos foram [transformados em relações públicas]. Meu trabalho é como escavar, é pesquisa arqueológica entre os materiais áridos de nossa época. Foi assim que eu comecei meu primeiro filme e é isso que ainda estou fazendo” (10) (imagem abaixo, filme dentro do filme, Carmen e Silvano foram ao cinema ver como se faz com uma paixão do fim do mundo)

Entre Quatro Nuvens


 Acaba de terminar Urga - Uma Paixão do Fim do Mundo 
 (Urga,  1991); os primeiros créditos apresentam os dubladores, 
o que é típico do cinema italiano. Na primeira história, Silvano
reencontra Carmen logo depois de uma sessão  de  cinema

Além das Nuvens nasceu doze anos antes, a partir de quatro histórias que Antonioni havia apresentado em Quel Bowling sul Tevere (Einaudi, 1983). A primeira história está em Cronaca di un Amore mai Esistito, e começa com um convite para está “além das nuvens”, já que se inicia com um diretor de cinema olhando para um mar de nuvens pela janela do avião que o leva para... Ferrara, especialmente Comacchio, uma de suas comunas, às portas do Mar Adriático. Aldo Tassone observa que o título original remete ironicamente àquele de seu primeiro longa-metragem, Cronaca di un Amore (1950, Crimes da Alma). Uma intriga típica de Ferrara, disse ele. Quer dizer, ligada a um tipo particular de “apatia”, de “loucura” características daquela cidade. No texto em questão, Antonioni inicialmente descreve seu interesse em realizar um filme sobre aquela Ferrara do passado, “mas segundo uma cronologia imaginária, onde acontecimentos de uma época se misturam com aquele de outro período, porque, para mim, Ferrara é isso”. História de um casal, estranha para aqueles que não conhecem essa cidade, apenas um nativo poderia compreender um relacionamento que durou onze anos sem nem mesmo existir (11). A renúncia de Silvano ao corpo de Carmem antecipa aquela da moça do quarto episódio. De acordo com Aldo Tassone, o episódio seguinte é o mais enigmático, contudo também mais o cinematográfico (12). (imagem abaixo, contraste do cinza da praia adriática e o azul de Portofino)


O alter ego de Antonioni caminha no parque de diversões
vazio, naquela praia cinzenta do Adriático, encontrando um postal
 de Portofino. Somos arremessados para a Riviera italiana

A segunda história tem origem em La Ragazza, il Delitto, e se passa em Portofino. No extremo oposto de Comacchio, a comuna de Portofino está localizada na província de Gênova, no Mar de Ligúria. O cineasta perambula por uma passagem estreita até ser praticamente atropelado pela mulher que caminha apressadamente, a quem focalizará a partir de então. Ele observa a moça acintosamente pela vitrine e depois dentro da loja onde ela trabalha. Talvez ache que se trata de um assediador, e o clima vai ficando mais pesado pelo fato de o homem nada dizer enquanto a encara. Mas sabemos que ele só está procurando por uma atriz, em Quel Bowling sul Tevere Antonioni esclarece que se ela atraiu “sua” atenção isso é normal: “Um dos aspectos de minha profissão é observar pessoas no contexto das situações de sua realidade cotidiana” (13). O interlúdio entre o episódio de Ferrara e de Portofino foi realizado por Wim Wenders, num estilo perfeitamente antonioniano. No começo do primeiro, depois de sair do avião o cineasta passeia pelas ruas de Ferrara munido de uma máquina fotográfica. No final do episódio, o reencontramos numa espécie de estação balneária na costa do Adriático. Na opinião de Tassone, o local vazio no vento de outono nos remete a Os Boas Vidas (I Vitelloni, 1953), de Fellini. Num bar vazio, o diretor de cinema acha um cartão postal de Portofino que parece mostrar para nós. Em superposição, daquela praia sob um céu cinzento, vazia com águas agitadas do Adriático, passamos para a baía plácida de Portofino, esverdeada (no postal é azulada) e rodeada por montanhas. 


Para  Aldo  Tassone,  a  3ª  parte,  que se passa no apartamento
parisiense com paredes de vidro, é um fascinante poema visual

Originalmente, o curta ambientado em Paris deveria ser baseado na história Não me Procure (Due Telegrammi, na versão italiana do livro), mas Antonioni teve de mudar de rumo porque não teve acesso às duas torres gêmeas que aparecem no texto, optando por contar a história da ruptura de dois casamentos (14). A terceira história intercala dois capítulos do livro, La Ruota e Non mi Cercare. No primeiro, uma mulher humilhada tenta resgatar o marido das mãos da amante. Em certo momento, o marido deseja se livrar das duas e recomeçar a vida. Como por milagre, a amante morre num acidente, mas ele acaba sozinho e num grande vazio interior. No filme, sabemos que a amante não sofre acidente e a esposa encontra forças para abandonar o marido. O vazio também está presente na segunda história. Ao abandonar seu marido, uma mulher leva todos os móveis. Surpreso, Carlo chega de viagem e encontra o apartamento vazio, povoado apenas com uma série de ruídos – o livro se refere ao charme dos ruídos da vida cotidiana. O telefone toca, ele discute e a mulher decreta: “não me procure!”. No filme, que começa pelo flashback do primeiro encontro entre Olga (a amante) e Roberto (o marido de Patrizia), Antonioni e Tonino Guerra (um dos seis roteiristas de Além das Nuvens) imaginaram um encontro entre os protagonistas traídos dos dois episódios. Olga é uma espécie de Lulu moderna, o papel da vamp do cinema mudo interpretada por Louise Brooks, em A Caixa de Pandora (Die Büchse der Pandora, direção Georg Wilhelm Pabst, 1929), que era muito apreciada por Antonioni, sendo evidenciado pela roupa, o corte de cabelo (embora não na cena do primeiro encontro), e a decoração expressionista do pequeno apartamento, quadros de cores vivas, colcha roxa, paredes azuis.

“(...) A segunda parte, situada no apartamento ‘de vidro’, é um fascinante poema visual a respeito do vazio, digno do final de O Eclipse (L'eclisse, 1962): a janela, estreita e longa aberta sobre um ângulo dos tetos de Paris, as esplêndidas perambulações dos dois locatários-fantasmas, filmados às vezes em seus reflexos (paredes de vidro listradas pela chuva criam feitos visuais estranhos), traduzem de maneira sugestiva sua paisagem interior, não são simples – estéreis – preciosidades de um cineasta-pintor. Fanny Ardant [(a esposa de Roberto)] tinha razão de comentar [no Festival de] Veneza que Antonioni descreveu aqui o choque do encontro homem-mulher como um fenômeno de ordem cósmica, ‘como a colisão de dois planetas’. Estranhamente, entre os quatro intérpretes [(Ardant, Patrizia; Chiara Caselli, a amante de Roberto; Jean Reno, o marido traído; Peter Weller, Roberto, o marido de Patrizia)], o menos convincente parece ser o norte-americano [(Weller)]” (15)


Em  Ferrara,  as  arcadas  que  parecem  seguir  ao  infinito  evocam
o pintor metafísico preferido de Antonioni, Piero della Francesca (16)

No quarto e último curta-metragem de Além das Nuvens, Questo Corpo di Fango, aparece o único interlúdio (dos quatro filmados) assinado por Wenders (fora as breves sequências do diretor de cinema que servem como elo entre os curtas que compõem o filme). Nele acompanhamos a discussão entre os personagens de Marcello Mastroianni e Jeanne Moreau em torno da cópia do quadro de Cézanne, assim como a breve interação entre Moreau e o diretor de cinema no hotel – portanto, é Wenders quem propõe essa citação do casal de A Noite (La Notte, 1961). Como sabemos de repente o protagonista dessa história irrompe na cena do hotel e então, só então, o pequeno filme se inicia. Antes, porém, mais uma frase de ligação, entre os curtas. Ainda no trem, o cineasta está em sua poltrona quando uma mulher senta-se próximo a ele. O telefone celular dela toca, “não me procure!”, dispara a mulher antes de desligar o aparelho. A história, que Tassone considera a mais austera e original de Além das Nuvens, surgiu para Antonioni quando teve acesso ao diário de uma freira de clausura que muito o impressionou. O cineasta pensou em realizar um filme intitulado Padecer ou Morrer, lema de Santa Teresa de Ávila, fundadora da Ordem Católica das Carmelitas. Como ele mesmo indica no início do conto, em Quel Bowling sul Tevere, Antonioni explicou que não tinha nenhum interesse pelo ascetismo, mas seu interesse pelo irracionalismo o fez se perguntar o que leva as pessoas a serem capazes de optar pela clausura monástica. Refletir a respeito do mistério dessa experiência foi o que levou Antonioni a criar esse breve episódio da última noite mundana de uma futura religiosa.

“(...) Cada episódio desse filme-milagre (a enésima interrogação a respeito do enigma do mundo através da crônica de quatro amores impossíveis: amor-desejo, amor-ruptura, amor-paixão, amor-sublimação) reserva invenções de alta categoria: o amor em pantomima pelo introvertido Silvano (episódio de Ferrara), a intrigante batalha de olhares mudos entre o cineasta-inquisidor e a parricida (episódio de Portofino), a deriva dos dois náufragos do casamento no apartamento vazio (terceiro episódio). Dentro de seus limites, relacionados ao estado de saúde do autor, em alguns momentos Além das Nuvens nos parece quase mais comovente e vivo que o filme anterior, o qual Antonioni dirigiu ainda com boa saúde, Identificação de Uma Mulher: presença de intérpretes mais qualificados [...], um acompanhamento musical talvez excessivo para um diretor de cinema que ama o silêncio [...]. Michelangelo descobre aqui sua capacidade de trazer à vida e vibrar as almas e as paisagens. Que se trate do interior de uma pensão anônima ou de uma butique, de um apartamento ultramoderno ou de uma igreja, lugares esplêndidos da Ferrara antiga, ou das ruelas graves de Aix-en-Provence, o olho mágico do pintor Antonioni consegue dar uma alma a coisas inanimadas” (17) (imagem abaixo, no hotel em Aix-en-Provence o cineasta olha para uma reprodução do famoso quadro de Cézanne com o Monte Sainte-Victoire)

Nostalgia, Nudez e uma Nuvem da Alemanha


 “Devo dizer que Wim [Wenders] é um anjo. 
 Um  dos  anjos  que  saiu  dos  filmes  dele”

Enrica Antonioni,  comentando  a  respeito da participação 
do cineasta alemão nas filmagens de Além das Nuvens (18)

Do ponto de vista do contexto do cinema italiano, é como se Além das Nuvens só pudesse mesmo ter nascido em 1995. A década de 1990 se iniciou com muitos prêmios internacionais para o cinema da península. Com exceção de Fellini, falecido em 1993, a vida profissional dos grandes mestres do cinema italiano caminhou sem percalços naquela década e com uma produtividade alta. Mesmo Antonioni, com metade do corpo paralisado e problemas de fala realizou Além das Nuvens. Apesar disso, Gian Piero Brunetta lembra que os laços entre as gerações de cineastas italianos começam a se romper já no final da década anterior, agora os novos nomes de referência são Nanni Moretti, Giuseppe Tornatore, Gabriele Salvatores, Francesca Archibugi e Carlo Mazzacurati. Em parte, isso tem relação com o fato de que Roma começa a perder seu lugar hegemônico como capital do cinema italiano para outras cidades espalhadas pelo país. Contudo, concluiu Brunetta, toda essa pujança revelou um lado negativo na ausência de imaginação e de diálogos bem escritos (19). Quanto a Antonioni, dois elementos novos que se pode notar em seus filmes já desde a década de 1980 são a trilha sonora musical e a nudez. Se no auge de sua produção podíamos encontrar um cineasta desinteressado, na verdade totalmente avesso, à utilização de trilhas musicais, em Além das Nuvens o acompanhamento musical é onipresente, difícil de encontrar em seus filmes além de Identificação de Uma Mulher, realizado a mais de uma década de distância - antes disso, as exceções são Zabriskie Point (1970) e, talvez, Blow Up, Depois Daquele Beijo. Do ponto de vista das relações sexuais na tela, Além das Nuvens e O Perigoso Encadeamento das Coisas (Il Filo Pericoloso delle Cose, episódio de Eros, 2004) também são exceção à regra.

“A mais de oitenta anos, convertido ao ascetismo (ver o quarto episódio de Além das Nuvens), terá Antonioni esquecido o charme do corpo feminino? A segunda história, situada em Portofino, imediatamente desmente essa suspeita: a cena tórrida de amor entre John Malkovich (o diretor de cinema em busca de personagem para uma história) e a deliciosa Sophie Marceau (a vendedora misteriosa da butique de moda) é a mais ‘ousada’ jamais filmada por Antonioni. O esteta de Ferrara teve de esperar ‘voltar das palavras’ para ousar tratar o nu com uma franqueza, uma simplicidade que até mesmo desequilibrou seu ‘assistente’ faz tudo Wim Wenders” (20)


Depois de revelar ao cineasta que deu  doze  facadas no pai,
a mulher da segunda história,  em Portofino, transa com ele. A cena
 de  nudez não existia no texto original em Quel Bowling sul Tevere. 
Teria  o  pudico  Antonioni,  aos  85  anos,  cedido  à  moda?

Questionamento de Aldo Tassone (21)

Devido ao AVC sofrido em 1985, os financiadores exigiram que outro cineasta participasse, o qual poderia assumir o projeto caso a saúde de Antonioni não mais o permitisse trabalhar. Dentre todos os italianos, o alemão Wim Wenders, que já fazia parte de suas amizades, foi escolhido por Antonioni para ocupar o posto. O alemão dirigiu os fragmentos de ligação entre as histórias, que acompanham um cineasta passeando por Ferrara, Portofino, Paris e Aix-en-Provence em busca de inspiração visual e locações para seus próximos trabalhos (22): a cena inicial no avião voando entre as nuvens; numa praia deserta; no trem para a França; cenas meditativas nas ruas de Ferrara; no hotel Cardinal em Aix-en-Provence; a cena em que os personagens de Marcello Mastroianni e Jeanne Moreau (o casal de A Noite, que Antonioni realizou em 1961) discutem a possibilidade de reproduzir a pincelada de Cézanne ao pintar o monte Sainte-Victoire. Wenders tinha grande estima por Antonioni, embora fosse um sentimento mútuo, isso não impediu que o italiano reclamasse à sua maneira (uma vez que estava com problemas de fala devido à sequela do AVC) em relação à interferência do alemão. Certa vez Antonioni cortou fora quase todas as imagens propostas por Wenders e substituiu por sua própria edição (23). Wenders escreveu em seu diário:

“Estava completamente convencido de que um diretor como Antonioni, apesar de sua idade e deficiência, seria capaz de rodar o filme que tinha tão claro em sua mente. Parecia-me totalmente intolerável que alguém de sua estatura fosse privado de rodar um filme apenas por não conseguir falar [...]. Era óbvio que podia compreender tudo o que se dizia, e que mentalmente estava atento como sempre. Nem sequer havia perdido seu senso de humor; simplesmente não podia falar, exceto uma dúzia de palavras básicas em italiano como sim e não, olá, depois, embora, fora, amanhã, vamos, vinho e comer” (24) (imagem abaixo, em várias oportunidades Antonioni prefere filmar os reflexos)


“Irène  Jacob,  esplêndida  interprete  do  quarto  episódio
de Além das Nuvens, comparou Antonioni durante as filmagens
com um ‘maestro’ que não tem necessidade da palavra” (25)

Em junho de 1985, por ocasião de sua última entrevista antes da doença, Antonioni já havia elogiado o trabalho de Wim Wenders. Tassone lhe perguntou o que achava do Cinema Novo Alemão, afirmando que a obra de Wenders devia muito a filmes como O Grito (Il Grido, 1957), A Noite e Zabriskie Point. Depois de elogiar a iniciativa alemã, Antonioni classificou Werner Herzog e Wenders no topo da lista, ressaltando que o segundo tinha a “vantagem” de ter os pés no chão, enquanto o primeiro era mais “genial”, no sentido de um pouco “louco” (considerando suas histórias e personagens um pouco bizarros, sempre entre realismo e surrealismo). Wenders, que ama a obra de Yasujiro Ozu (1903- 1963), reconheceu sua dívida com a obra de Antonioni – Tassone estranhou que a imprensa especializada nunca tenha sublinhado as analogias existentes entre Alice nas Cidades (Alice in den Städten, 1974) e O Grito, ou entre Paris, Texas (1984) e Zabriskie Point. De acordo com Tassone, a relação nem sempre foi idílica entre Wenders e Antonioni durante as filmagens. Enciumado em relação ao que considerava seu canto do cisne, Antonioni não admitiu interferências ou discussões. Wenders publicou um diário da empreitada onde descreveu a relação impossível entre dois cineastas de países e gerações distintas. Para Antonioni, disse Wenders, o alemão aceitou compromissos que jamais teria sustentado para sua própria obra. As vezes, continuou, a pressão era insuportável, mas Wenders a aceitava ao perceber até que ponto Antonioni era rígido consigo mesmo. O filme significava tudo para o italiano, completou o alemão: relações pessoais, gentileza, nada disso contava. Por outro lado, conclui Wenders, uma das qualidades d cinema de Antonioni é justamente essa distância, esse olhar glacial (26).

“A relação entre o ‘tirânico’ comandante Antonioni e seu super assistente experimentou outras dificuldades: a cineasta alemão, convencido de um filme a quatro mãos, planejou igualmente filmar – além do prelúdio e da conclusão – quatro cenas de ligação entre os episódios, quatro breves aparições de Marcello Mastroianni no papel de um homem comum, nos locais onde em seguida ocorreria a ação. Dessas quatro, restou apenas uma (em homenagem à Mastroianni e a coprodução italiana [- Além das Nuvens é uma coprodução entre França, Itália e Alemanha]), o que foi uma boa coisa, porque, ainda que realizadas num estilo tendencialmente ‘antonioniano’ por Wenders, corria-se o risco de sobrecarregar o filme. O dócil e generoso cineasta alemão não protestou mais do que isso: ‘Estou contente de ter colaborado para a elaboração desse filme, de ter mostrado que Antonioni pode tranquilamente filmar tudo sozinho’, nos disse Wenders, ‘Michelangelo tem, sobretudo, necessidade de um organizador, de uma ‘voz’, de alguém que o ajude a criar um clima no local de filmagem’” (27) (imagem abaixo, Ferrara, nos primeiros instantes da chegada do cineasta, primeiro episódio)

Ao Céu e Além 


 Na Itália, Além das Nuvens foi sucesso de bilheteria em 1995 (28) 

Michelangelo Antonioni foi um cineasta contemporâneo de si mesmo ou, como definiu Dominique Païni, um cineasta do presente e no presente. Ele não procurava respostas em sua época, mas a construção pontos de vista, perspectivas inéditas, ao mesmo tempo espaciais, morais e secreta e sutilmente ideológicos – algo que certos intelectuais de esquerda não compreendiam ou muito pouco, como Franco Fortini, que reprovava no cineasta sua “coisificação e marienbadismo”, assim como uma complacência estética – a referência foi a O Ano Passado em Marienbad (L'Année Dernière à Marienbad, direção Alain Resnais, 1961). À exceção de O Mistério de Oberwald (Il Mistero di Oberwald, 1980), nenhum de seus filmes é ambientado no passado, mas na própria época de sua realização. Isso quer dizer, conclui Païni, que o cineasta não realizou filmes de costumes. Sendo assim, é possível encaixar seus filmes em cada decênio da segunda metade do século XX. Os anos 1950 e as marcas da guerra ainda recente em Crimes da Alma, Os Vencidos (I Vinti, 1953), A Dama Sem Camélias (La Signora senza Camelie, 1953), As Amigas (Le Amiche, 1955) e O Grito; os anos 1960 e a reconstrução econômica, em A Aventura (L'avventura, 1960), A Noite e O Eclipse, e seu reverso doente em O Deserto Vermelho (Il Deserto Rosso, 1964); os anos 1970 e suas utopias pop em Blow-Up - Depois Daquele Beijo, Zabriskie Point e China (Chung Kuo - Cina, 1973); os anos 1980 e o retorno das dúvidas ideológicas, coloridas com individualismo, em Profissão: Repórter e Identificação de Uma Mulher; os anos 1990, sentimentais e nostálgicos em Além das Nuvens; os anos 2000, e o milenarismo marmóreo em Lo Sguardo di Michelangelo (2004) (29). Em 2015, Maria Luisa Pacelli, então diretora do Museu Michelangelo Antonioni em Ferrara, resgatou uma fala do cineasta para irritar os dogmáticos que pretendem determinar o real objetivo de sua obra:

“Quando pediam para Michelangelo Antonioni explicitar o significado de seus filmes, esclarecer o que quis dizer e resumir os motivos de um trabalho determinado, ele respondia assim: ‘o caminho que um cineasta percorre para realizar um filme é repleto de erros, dúvidas, equívocos; a coisa menos natural que podemos pedir a esse mesmo realizador é que ele fale sobre isso. No meu caso [...], minhas observações servirão, no máximo, para precisar um estado de alma particular, uma consciência vaga. Em suma, prefiro responder assim a tal pergunta: no momento da realização do filme, tais e tais acontecimentos ocorreram no mundo, eu vi tais e tais pessoas, eu li tais e tais livros, eu vi tais e tais quadros, gostava de X, detestava Y, eu não tinha dinheiro, eu dormia pouco...’” (30)


Quando  Silvano  chega  no  hotel  não  vemos  letreiro
na fachada. À noite, quando eles se despedem no corredor, 
 lá  estão  as  letras  de  neon.   Erro   de   continuidade?

Organizado em quatro partes autônomas, Além das Nuvens dá início a um tríptico, seguido pelo média-metragem O Perigoso Encadeamento das Coisas, e o curta Lo Sguardo di Michelangelo. Segundo Païni, o título Além das Nuvens insiste sobre esse sonho contínuo na obra de Antonioni: escapar da atração de um planeta definitivamente decepcionante. A trilogia utópica, assim chamada por Païni, esgotou o assunto, seja com o voo do estudante sobre o deserto em Zabriskie Point, ou a perambulação do repórter em Barcelona, em Profissão: Repórter. A nave espacial seguindo na direção do sol ao final de Identificação de Uma Mulher revela o desejo de ultrapassar as nuvens, a ambição celeste do cineasta. Por tudo isso, Païni acha curioso que a seguir Antonioni, em Lo Sguardo di Michelangelo, retorne àquilo que na cultura pictórica italiana está em confronto com o céu: a pedra – mais especificamente, as esculturas em mármore de Miguel Ângelo Buonarotti (1475–1564).

“Os céus e o mármore! Muito antes da pintura conquistar as leis decisivas da representação modelada e racional do mundo através da perspectiva, não distinguia, ou bem pouco, as nuvens e os rochedos, o informe celeste e o informe telúrico. Sendo assim, o laço operado pela obra antonioniana possui um valor hermenêutico em certos aspectos: o olhar de Michelangelo Antonioni foi um operador teórico dimensionando o movimento de sua obra como um todo. É neste sentido, sem dúvida, que Gilles Deleuze argumentou que a obra antonioniana revela uma ‘objetividade crítica’” (31)

Do Deserto ao Jardim


“Alguém disse certa vez que palavras,
 mais do que qualquer outra coisa, servem
 para esconder nossos sentimentos (...)

Michelangelo Antonioni, 1961 (32)

Michelangelo Antonioni nasceu em Ferrara, mas como o filho pródigo que retorna, a cidade seria retratada apenas duas vezes na obra do cineasta, em Crimes da Alma e Além das Nuvens, seu primeiro e seu último longa-metragem. Evidentemente, sabemos que Ferrara já havia sido mostrada também em O Deserto Vermelho. Contudo aqui a cidade aparece apenas como um contraponto à Ravenna, ainda que esta não seja lembrada como algo melhor, senão um porto frio, feio e desumanizado, uma espécie de sinônimo do deserto do título do filme. Ferrara aparece juntamente com a Patagônia (Argentina) e uma ilha edênica sem localização definida são apresentadas enquanto contrastes complementares. No começo do filme Giuliana, a esposa confusa de Ugo, acompanha Corrado, amigo de seu marido, até Ferrara em busca de trabalhadores para seu projeto na Patagônia. Localizada próximo da margem do Pó, rio mítico para os neorrealistas, e para Antonioni também, já que nessa sequência ele retorna à região do documentário Gente do Pó (Gente del Po, iniciado em 1943, lançado em 1947), curta-metragem que foi sua estreia na direção, assim como às locações de O Grito. Por outro lado, em O Deserto Vermelho, Ferrara não se apresenta com o brilho de cartão postal que apresenta a cidade importante que floresceu entre os séculos XV e XVI, cujos governantes, os Duques de Este, foram os patronos de poetas como Ludovico Ariosto e Torquato Tasso – a cidade também foi lar de representativa comunidade judaica (33). (imagem abaixo, exemplo de “tempo morto”, Antonioni filma por nove segundos a porta fechada por onde sairão os protagonistas do último episódio)


Ao contrário  de  muitos intelectuais ocidentais notórios que
 reportam  de  suas  viagens  apenas  o  que  corresponde  a  seus
sonhos e desejos, Antonioni registra sem julgar, sem explicar

Dominique Païni (34)

Os intelectuais referidos por Païni são Carlo Lizzani, Joris Ivens, Jean-Paul Sartre e Alberto Moravia – ela parou por aqui
porque uma lista seria impossível. Embora a frase acima esteja falando especificamente do documentário que Antonioni realizou
sobre  a  China  em  1973,  poderíamos nos indagar qual é a postura do cineasta em relação a Ferrara de Além das Nuvens

Portanto, como conclui Victoria Kirkham, Ferrara não passa de um satélite de Ravenna em O Deserto Vermelho. Uma cidade do interior considerada apenas a partir de sua periferia, nos blocos brancos dos prédios de conjuntos habitacionais da classe trabalhadora, próximo aos quais se alinham aquelas torres de alta tecnologia das instalações de radar, que se erguem como robôs monstruosos. Nada lembra o elogio a Ferrara de O Jardim dos Finzi-Contini (Il Giardino dei Finzi-Contini, 1972), aonde Vittorio De Sica chega muito mais próximo do centro histórico reconhecível nos cartões postais - filme baseado em romance homônimo de Giorgio Bassani, que também participou do roteiro. Agora limitado pelos efeitos de um acidente vascular cerebral ocorrido em 1985, Antonioni retorna à cidade de sua juventude dez anos depois e a filma em Além das Nuvens envolta nas tonalidades da bruma de inverno. Para Bruno Racine, a história de um amor que não consegue florescer é talvez a obra de Antonioni mais próxima de Giorgio Bassani (1916-2000), escritor nativo de Bolonha que adotou Ferrara em sua vida e seus escritos, embora a fuga de Silvano na primeira história carregue a marca de Antonioni (35) - no mapa da Itália, Bolonha, Ferrara e Ravenna formam uma espécie de triângulo geográfico e cultural. “O último trabalho [em longa-metragem] do grande cineasta nos oferece um curto poema sobre a ‘loucura tranquila’ própria a Ferrara, que apenas os nativos da cidade podem compreender. Uma visão de lirismo suave e desesperado que Bassani não teria repudiado” (36). Ou, ainda melhor, nas palavras de Aldo Tassone:

O Horizonte dos Acontecimentos, primeira das novelas publicadas por Einaudi em 1983, série de reflexões angustiantes a respeito das sequelas de um acidente de avião, se concluem com uma exortação para olhar ‘além das nuvens’. Apesar de suas imperfeições, o filme em ‘esboço’ de Antonioni é um apaixonante convite para olhar ‘além’. Convite ainda mais urgente por vir de alguém que voltou do além para nos fazer refletir e sonhar mais uma vez” (37)


Leia Também:



Notas:

1. Di CARLO, CARLO. Mon Long Voyage avec Antonioni. In: PAÏNI, Dominique (org.) Antonioni. Paris: Flammarion, 2015. Catálogo de exposição. P. 31.
2. CHATMAN, Seymour; Duncan, Paul (Ed.). Michelangelo Antonioni. Filmografia Completa. Köln: Taschen, 2004. P. 177.
3. POMERANCE, Murray. Michelangelo Red Antonioni Blue: Eight Reflections on Cinema. Berkeley: University of California Press, 2011. P. 33.
4. Idem, pp. 7, 33.
5. Ibidem, p. 33.
6. BRUNETTE, Peter. The Films of Michelangelo Antonioni. New York: Cambridge University Press, 1998. P. 25.
7. Idem, pp. 24-5.
8. CHATMAN, S.; Duncan, P. (Ed.). Op. Cit., p. 191n71.
9. ANTONIONI, Michelangelo. A Talk With Michelangelo Antonioni on His Work. In: COTTINO-JONES, Marga (Ed.). Architecture of Vision. Writings and Interviews on Cinema. USA: University of Chicago Press, 1996. P. 99.
10. Idem, pp. 97-8.
11. ANTONIONI, M. That Bowling Alley on the Tiber. Tales of a Director. New York/Oxford: Oxford University Press, 1986. P. 43.
12. TASSONE, Aldo. Antonioni. Paris: Flammarion, 2007. Pp. 329-30, 332, 335-9.
13. ANTONIONI, M. 1986. Op. Cit., p. 82.
14. CHATMAN, S.; Duncan, P. (Ed.). Op. Cit., p. 176.
15. TASSONE, A. Op. Cit., p. 338.
16. Idem, p. 330.
17. Ibidem, p. 342.
18. Michelangelo Antonioni, Lo Sguardo che ha Cambiato il Cinema, direção Sandro Lai, s/d. Documentário nos extras do DVD de A Noite, distribuído no Brasil por Versátil Home Vídeo, 2004.
19. BRUNETTA, Gian Piero. The History of Italian Cinema. A guide to Italian film from its origins to the twenty-first century. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 2009. Pp. 299-300.
20. TASSONE, A. Op. Cit., p. 332.
21. Idem, p. 334.
22. CHATMAN, S.; Duncan, P. (Ed.). Op. Cit., p. 172.
23. POMERANCE, Murray. Op. Cit., p. 6.
24. CHATMAN, S.; Duncan, P. (Ed.). Op. Cit., p. 181.
25. TASSONE, A. Op. Cit., p. 78.
26. Idem, pp. 77, 421-2.
27. Ibidem pp. 77-8.
28. POMERANCE, Murray. Op. Cit., p. 32.
29. PAÏNI, Dominique. Op. Cit., pp. 15, 25.
30. Idem, p.1.
31. Ibidem, p. 25. DELEUZE, Gilles. Cinema 2: A Imagem-Tempo. Tradução Eloisa de Araujo Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 1990. P. 15.
32. ANTONIONI, M. 1996. Op. Cit., p. 21.
33. KIRKHAM, Victoria. The Off-Screen Landscape: Dante’s Ravenna and Antonioni’s Red Desert. In: IANNUCCI, Amilcare A. (Ed.). Dante, Cinema & Television. Toronto: University of Toronto Press Incorp., 2004. Pp. 109, 112.
34. PAÏNI, Dominique. Op. Cit., p. 115.
35. RACINE, Bruno. Antonioni, Bassani et Ferrara. In: PAÏNI, D. (org.). Op. Cit., p. 161.
36. Idem, p. 164.
37. TASSONE, A. Op. Cit., p. 343.

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