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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

31 de ago. de 2016

Roberto Rossellini e a Televisão


Paradoxalmente, 
o período de maior 
atividade na carreira 
do  cineasta  italiano 
será também aquele
menos  conhecido 
(e reconhecido)

Outro Ilustre Desconhecido

“Roberto Rossellini é, talvez, o maior diretor desconhecido que já viveu” (1). Assim Peter Brunette inicia seu livro a respeito da vida e da obra do cineasta italiano. Infelizmente, a sequência do texto não é muito animadora: 

“(…) Enquanto muitos consideravam Antonioni exigente, ele sempre foi considerado ‘artístico’; Rossellini simplesmente foi considerado superficial e incapaz de realizar um filme competente. Seu grande projeto para televisão – para fornecer informação a uma audiência de massa sobre sua história coletiva – foi um feito corajoso que, mesmo teoricamente inconsistente, nunca será igualado em extensão e coragem. Contudo, a despeito dessas formidáveis realizações, Rossellini é conhecido principalmente pelo cinéfilo medianamente instruído, e com mais de quarenta anos de idade, como o homem que seduziu Ingrid Bergman [fato nem sempre mencionado nas biografias da atriz, muito menos os filmes que fez com ele]. Para aqueles com menos de quarenta, ele parece nem sequer ser conhecido” (2) (imagem acima, três figuras incontornáveis do cinema italiano do pós-guerra; da esquerda para a direita, Vittorio De Sica, Roberto Rossellini e Federico Fellini)
É bem conhecida (ou, em todo caso, muito citada) a trajetória da obra do cineasta italiano entre os anos de 1945 e 1948, basta recitar os títulos: Roma, Cidade Aberta (Roma Città Aperta), Paisà e Alemanha Ano Zero (Germania Anno Zero). Menos conhecida é sua obra anterior, na época em que era funcionário do ditador Benito Mussolini. Ainda menos conhecida ou comentada é sua produção entre 1949 e 1962. Contudo, sua obra realizada entre 1963 e 1977 é completamente desconhecida e ignorada. Curiosamente, este último foi um período extremamente ativo para o cineasta, que naquele momento abandona a tela grande (o cinema), passando a se dedicar à tela pequena (a televisão). Nesta fase, ele também abandonaria o cinema de ficção, concentrando-se na temática histórica. De fato, em termos de horas de projeção, mais ou menos metade da obra de Rossellini está concentrada neste tema, a maior parte produzida para a televisão entre 1963 e 1974. De acordo com Adriano Aprà, esta fase é mais negligenciada na própria Itália do que no exterior. Dentre os vários motivos possíveis que poderiam explicar tal desconhecimento/desinteresse (cópias de difícil acesso, preconceito da academia contra a televisão), talvez o maior deles tenha sido a reação da academia à mudança de estilo do cineasta – a exceção foi Absolutismo: A Ascensão de Luis XIV (La Prise de Pouvoir par Louis XIV), de 1966, que também foi lançado nos cinemas (3). (imagem abaixo, Descartes, 1974)


De A Idade do Ferro  a  Descartes, entre 1963 e 1974,maior
 parte  da  obra  de  Rossellini  será  produzida  para  televisão 

Ao abandonar os temas de ficção e concentrar-se na televisão, acreditava que esta nova mídia (as transmissões regulares na Itália ocorreram em janeiro de 1954) era capaz de induzir a criação de novas maneiras de contar a História, novas dimensões e novas formas de narrativa visual. Rossellini já havia delineado esse projeto entre 1957 e 1962, mas apenas o colocaria totalmente em prática durante o período na televisão – Rossellini se tornaria o primeiro grande artista italiano a trabalhar exclusivamente por um longo período neste meio relativamente novo; eventualmente, retornaria ao cinema comercial com Ano Um (Anno Uno, 1974), a biografia do líder Democrata-Cristão italiano, Alcide De Gasperi (4). Gian Piero Brunetta explica que o cineasta via a história como uma maneira de mergulhar as pessoas no passado. Baseou seu conceito de “história total” na escola francesa dos Annales: através do exame da memória e do cotidiano, procurava revelar até que ponto o passado afeta o presente. Viva a Itália (Viva l’Italia), que Rossellini realizou em 1961 para as comemorações do centenário da unificação do país, se torna o modelo para seus filmes históricos. O cineasta Renato Castellani, outro conterrâneo, estava com a carreira estagnada no começo daquela década, reerguendo-se com duas biografias para a televisão (Leonardo Da Vinci, em 1971, e Giuseppe Verdi, em 1982). Contudo, ao contrário de Rossellini, ele focou no entretenimento, em detrimento do conteúdo educacional, afirmando que o público da televisão naturalmente espera uma abordagem cinematográfica distinta. Graças a ambos, os gêneros cinematográficos (incluindo adaptações literárias e filmes com mensagem social) migram para a televisão e desaparecem dos cinemas (5). (imagem abaixo, Rossellini durante as filmagens de Absolutismo: A Ascensão de Luis XIV, 1966)

Sem Medo do Ostracismo

“A sociedade
moderna e a arte
 moderna   tem   sido
destruidoras do homem, 
mas a televisão é uma
 ajuda   para   sua
 redescoberta” 

Roberto Rossellini, 
durante entrevista a André Bazin, 1958 (6)


Desde o início dos anos 1950, Rossellini criticava a sociedade de massa e certo tipo de cinema dirigido pelo lucro, caro demais e excessivamente complexo do ponto de vista técnico. Concomitantemente, o cineasta estava excitado com o potencial da televisão para a intimidade, uma capacidade de observar o personagem humano mais de perto. Algo que ele já vinha explorando em seu cinema, David Forgacs esclarece, citando Alemanha Ano Zero e Uma Voz Humana (episódio de O Amor, l’Amore, 1948), e as sequências de interior nos filmes que realizou com Ingrid Bergman, já bastante televisuais neste particular. Mas o que deixava Rossellini definitivamente inclinado para a televisão era o potencial de ferramenta educacional que enxergava nela. Ele chegou a comparar este aparelho, que para muitos é apenas um eletrodoméstico, com as universidades populares do século XIX. A implantação da televisão na Europa, que nasceu em grande medida como televisão pública, desperta em Rossellini a ambição de um projeto educacional de massa – no Brasil, por outro lado, a televisão nasceu comercial; o cineasta faleceu antes que essa transição começasse a se verificar na Europa. Numa tentativa de definir o cineasta italiano, Forgacs o caracterizou como alguém ao mesmo tempo gênio inspirado e ingênuo, um santo tolo, mais ou menos como o São Francisco que Rossellini retratou em Francisco, Arauto de Deus (Francesco, Giullare di Dio, 1950) (7).

“Como seus filmes dos anos 1950, o trabalho para televisão de Rossellini nos anos 1960 e 1970 foi visto com incompreensão, desânimo ou desaprovação por vários críticos: não apenas aqueles da esquerda, para os quais Rossellini agora escolhera trabalhar com aquilo que entendiam como sendo um meio controlado pelo governo e politicamente comprometido de forma a promover ideais ‘humanísticas’ questionáveis ou ingênuas a respeito do ‘homem’ e da história humana, mas agora também alguns daqueles que haviam sido defensores mais apaixonados do radicalismo de seu cinema durante os anos 1950. Muitos desses críticos julgaram os filmes que ele realizou em 1959-60 – De Crápula a Herói [(General della Rovere, 1959)], Era Notte a Roma [(1960)], Viva a Itália, Alma Negra [(Anima Nera, 1962)], Vanina Vanini [(1961)] – como um escorregão para trás, na direção de uma dramaturgia mais convencional, e não podiam compreender porque queria gastar seu tempo daí em diante fazendo o que parecia uma versão vulgarizada de programas de televisão sobre história para escolas. Até mesmo Federico Fellini, seu amigo e antigo colaborador, sugeriu que nos filmes para televisão Rossellini deixou seu lado acético e purista se sobrepor ao seu lado hedonista (...)” (8) (imagem abaixo, Santo Agostinho, Agostino d'Ipona, 1972)


(...) Com  seu  uso  imaginativo  e  intencional  do  que  pode
ser  chamado   de   dispositivos   ‘antinarrativos’,   como  tempo
morto e desdramatização, ele é um óbvio precursor de Antonioni
e  outros  cineastas   que   começaram   a   ser   notados  no  início
dos    anos    1960.    Infelizmente    para   Rossellini,   o   mundo
intelectual foi incapaz de aceitar essas técnicas em 1950 (...)” 

Peter Brunette (9)

Peter Brunette circunscreve uma fase conscientemente comercial em Rossellini que começa em De Crápula a Herói (1959) e termina em Pureza (episódio de RoGoPaG, 1963), incluindo Era Notte a Roma, Viva a Itália, Vanina Vanini, Torino nei cent'anni, Alma Negra. Brunette insiste que até seu documentário sobre a Índia (India: Matri Bhumi), o cineasta ainda pensava na televisão apenas como um meio para atingir um fim – no caso desta série, constituía material a partir do qual poderia selecionar elementos para lançar como filme comercial; o documentário sobre a Índia foi um fracasso de público. Naquele ano Rossellini ainda não tinha como conseguir financiar seu trabalho futuro para televisão. Durante entrevista para o Cahiers du Cinéma (nº 133, julho, 1962),  Rossellini, no ponto mais baixo de sua carreira, pensou em abandonar o cinema, por considerar que este meio é caro demais e impossibilita o estabelecimento e a discussão de ideias gerais. Naquele momento, convencido de que o livro ainda é a base de tudo, e uma vez que achava que não tivesse mais nada a dizer através do cinema, chegou a acreditar que deveria escrever e procurar compreender o mundo a partir desse meio mais antigo e consolidado. Pouco tempo depois, Rossellini encontrou o meio perfeito (o filme didático, ensaístico, feito para televisão) e seu interesse pelo cinema renasceu (10). (imagem abaixo, Jesus oferecendo pão à Judas, em O Messias de Rossellini, 1975)


“[Há  quatorze  anos]  que  através  do  cinema e da televisão
perseguido um só objetivo: a informação. E digo precisamente
a  informação não  a  didática,  porque em minha opinião não é
preciso  ensinar,  mas  limitar-se a fornecer dados brutos a fim
 de que cada um, em seguida, possa elaborar por si mesmo (...)” 

Roberto Rossellini, 1975
Por ocasião do lançamento de O Messias de Rossellini (11)

“Eu nunca corri atrás do sucesso!”, bradou Rossellini durante entrevista em 1971. Explicou também que seu hábito de nunca assistir a seus próprios filmes tem uma relação direta com esta sua escolha. Quando alguém faz sucesso, disse, a tendência é que repita o trabalho. É aí que a queda pode começar, já que todos irão comparar o próximo trabalho com o que veio antes. Por esta razão Rossellini procurava anular de sua mente tudo que havia feito antes, e insistiu sem muita certeza de que nunca em sua vida assistiu a algum filme que tenha realizado (12). Na opinião de Peter Brunette, que acredita que o cineasta pode ter assistido a um ou dois de seus filmes, essa completa indiferença em relação a seus próprios filmes incluía o desinteresse em relação ao destino deles, o que impactou diretamente na disponibilidade de cópias para as gerações futuras, especialmente naqueles países onde seus filmes não haviam sido distribuídos na época em que foram lançados – e poucos de seus filmes foram sucessos desde Roma, Cidade Aberta. Além disso, em sua fase para a televisão, Rossellini realizou várias séries, variando de duas a dezenas de horas, o que pode transformar numa tarefa árdua o empenho daqueles interessados em conhecer sua obra. Embora se possa referir a Roma, Cidade Aberta, Paisà e Alemanha Ano Zero como “filmes históricos” retratando o passado recente, Brunette sugere que Francisco, Arauto de Deus (1950) marca o início do interesse de Rossellini pela representação da história.

“Este novo interesse na história é óbvio ao longo do filme, mas especialmente no início da versão norte-americana [a questão das versões é mais um problema para aqueles que desejam conhecer a obra de Rossellini; no Brasil, por exemplo, se conhece apenas a versão italiana deste filme]. Ali somos historicamente situados através de pinturas e afrescos para nos dar o contexto apropriado para compreender aquilo que estamos prestes a assistir. Nisto, é similar à versão norte-americana de Stromboli [(Stromboli, Terra di Dio, 1950)] e, é claro, o mapa e a locução em Paisà. Em outras palavras, um forte interesse didático reina neste filme, como na maioria dos filmes de Rossellini – este impulso é mais aberto no trabalho posterior para televisão, mas está presente desde o primeiro. Aqui os afrescos tem a função de criar uma alteridade no tempo, um lugar do passado que o filme vai conscientemente procurar representar, significar, sem procurar recriar de forma ilusória o período histórico. A diferença pode parecer pequena, mas é de fato crucial e é a estratégia que faz muitos dos trabalhos posteriores epistemologicamente mais sofisticados do que parecem à primeira vista. Os afrescos, que as câmeras de Rossellini mostram numa panorâmica enquanto a narração explica os eventos históricos que elas representam, negociam de forma complexa a distancia entre a representação fílmica do passado e o próprio passado. Eles representam o passado para nós, mas eles, na verdade, também são o passado porque foram feitos na época, mas continuam a existir” (13) (imagem abaixo, o encontro de Pascal e Descartes, Blaise Pascal, 1972)

Carta Aberta Contra a Infantilização


Enquanto criticava o enburrecimento das massas, perguntaram
a  Rossellini  se  seu  objetivo  era  destruir o mundo capitalista. Ele
respondeu  que  não é  guerrilheiro,  mas não sabe onde seu projeto
 levará, e que  se  via  como  os  enciclopedistas  do  século  XVIII

Foi durante a entrevista para o Cahiers du Cinéma, em 1962 (14)

De acordo com Brunette, um dos primeiros sinais de que Rossellini havia abandonado a ideia de aposentar-se chega em 1959 na forma de uma carta aberta ao novo Ministro da cultura (Ministro dello Spettacolo e del Turismo) da Itália, o Democrata-Cristão Umberto Tupini – que deixaria o cargo no ano seguinte. Intitulado Responsabilidade do Governo Passado e Presente (Responsibilità del governo passati e presenti, Cinema Nuovo, no. 141, setembro-outubro), aqui o cineasta faz a pergunta básica: “Poderá o cinema ser considerado no nível de arte e cultura ou como forma de escapismo esquálido e infantilizador do público no mesmo nível da televisão, pelo qual o governo é seriamente responsável?” (15). Brunette nos lembra de que este posicionamento bem definido de cinema, arte e cultura de um lado e uma televisão ‘infantilizadora’ do outro, logo será modificado. Brunette segue mostrando que, em seu primeiro ensaio, Uma Nova direção para o Cinema Italiano (Un nuovo corso per il cinema italiano, 1961; o texto já havia sido apresentado um ano antes, em Milão), Rossellini atacou a educação por ter se vendido para a especialização, deixando de olhar a pessoa como um todo. A cultura, o cineasta insistiu, se tornou uma pseudocultura que não representa a expressão de um artista individual, mas é “manipulada por técnicos para abrandar-se de diferentes formas a ansiedade das massas”, que são esmagadas pela “insistência na ortodoxia, obediência, e fé cega na elite” (16). Esses produtos da pseudocultura, Rossellini reclamou, são direcionados simultaneamente para crianças e adultos. Resulta que os primeiros crescem rápido demais e seguintes são mantidos num estado de conformidade infantilizada (em função da qual desejam ser “protegidos maternalmente” por líderes fortes). (imagem abaixo, Blaise Pascal, 1972)


(...) O problema fundamental para a televisão e o cinema é aquele
da   criatividade.   Se   chegarmos   a   uma   colaboração   entre  essas
duas    entidades,    as    chances   de   desenvolvimento    aumentarão
certamente, com mais inventividade e em proveito das ideias  (...)

Roberto Rossellini

Cinema e Televisão, Filmcritica, nº 400, dezembro 1989 
(texto  inédito,  provavelmente  escrito  em  1977)  (17)

Qual a saída para esse condicionamento da massa? Com metade da população mundial analfabeta em 1960, e como Rossellini acreditava que as pessoas aprendem melhor através de equipamentos audiovisuais, a própria mídia de massa seria o veículo mais indicado para a divulgação de “ideais e informação que permitirá ao homem começar a compreender o complexo mundo ao qual pertence” (18). Seres humanos são naturalmente curiosos e, sendo-lhes oferecida estimulação mental, aceitarão alegremente. O cineasta pergunta, por que não “sentimos um profundo impulso emocional contemplando as conquistas que o homem alcançou nos últimos dois séculos?”, e depois conclui: “Precisamos espalhar entre as massas a verdadeira essência das grandes descobertas e da tecnologia moderna... Fazendo isso, ajudaremos as grandes massas a se encontrarem no novo mundo... Para redescobrir o homem devemos ser humildes, devemos vê-lo como ele é e não como gostaríamos que fosse, de acordo com ideologias predeterminadas, e isso, me parece, foi um dos méritos do cinema neorrealista” (19). Noutra carta aberta, agora para o senado Renzo Helfer, subsecretário para as artes, intitulada Censura e Cultura (Cinéma 61, nº 60, outubro, 1961), Rossellini ataca os “falsos problemas” da sexualidade, solidão e delinquência juvenil – logo lembramos, respectivamente, e citando exemplos aleatórios daquele momento, de filmes italianos como O Belo Antônio (Il bell'Antonio, direção Mauro Bolognini, 1960), A Aventura (L'avventura, direção Michelangelo Antonioni, 1960) e Accattone, Desajuste Social (Accattone, direção Pier Paolo Pasolini, 1961). Durante entrevista a Gian Luigi Rondi em 1975, Rossellini colocou em palavras mais uma vez:

“Completo agora quatorze anos que através do cinema e da televisão persigo um só objetivo: a informação. E digo precisamente a informação, não a didática, porque em minha opinião não é preciso ensinar, mas limitar-se a fornecer dados brutos a fim de que cada um, em seguida, possa elaborar por si mesmo (...)” (20) (imagens abaixo, à esquerda, Ano Um, 1974; à direita, Idea di un'isola, 1967)


“Um serviço público de interesse geral”. Rossellini  lamenta que esta
premissa  da  lei  da  televisão  pública  se  deteriorou  na  Itália,  onde
a  RAI servia  à  partilha  do  poder  político  entre democrata-cristãos
e socialistas, o que contribuiu para a queda do nível da programação

Comentário de Rossellini em Cinema e Televisão, Filmcritica, nº 400, 
dezembro  1989  (texto  inédito,  provavelmente escrito  em  1977)  (21)

Durante uma entrevista em 1979, portanto depois de todos os filmes que Rossellini realizou para o cinema e a televisão, Antonioni disse que sempre gostou de Paisà e Francisco, Arauto de Deus, especialmente este último. De sua fase na televisão, O Absolutismo: A Ascensão de Luis XIV foi para ele o filme onde o velho e o novo Rossellini (que Antonioni considerava um pouco superficial) se reuniram alegremente, fazendo emergir uma obra cheia de graça e eloquência. Para o Cahiers du Cinéma em 1982, Antonioni contou de seus planos para um filme sobre São Francisco de Assis (que nunca se realizou). Referiu-se a dados históricos que nunca foram abordados no filme de Rossellini – com suas ideias sobre a paz, Francisco não agradava nem o povo de Assis nem os nobres de Perúgia, então em guerra; as freiras dormiam com todo mundo, o conventos foram inventados naquela época para contê-las; a crueldade da sociedade da época exemplificada na relação com os leprosos é muito mais contundente do que a forma como Rossellini abordou o assunto. Antonioni conclui dizendo que o filme de Rossellini é bom, mas não é uma contribuição muito séria do ponto de vista histórico. Com relação à televisão, em 1982, Antonioni se mostrava pessimista, lembrando-se apenas do condicionamento das crianças e a aparente incapacidade delas de suportar o silêncio: certa vez um garoto entrou em sua casa e a primeira coisa que reparou foi uma televisão desligada! Em sua época de juventude, as pessoas ouviam as notícias e visualizavam as imagens na mente, enquanto na televisão tudo já está dado. Ainda assim, Antonioni admitiu que o otimismo de Rossellini quanto à televisão constituir uma ótima ferramenta educacional faz sentido (22):

“Sim, concordo, eu acho que já está sendo utilizada nas escolas. Acho que ela é muito direta – vai diretamente para o seu cérebro através de seus olhos. Não sei muito sobre isso, mas penso que é uma boa ferramenta. Contudo, você precisa fazer programas educacionais, inventar um novo método de ensino, e isto não é fácil. Eu nunca poderia fazer um filme como esse, não sou capaz disso” (23) (imagem abaixo, Descartes trabalhando na cama, onde costuma dormir até meio dia, Descartes, 1974)


(...) Agora o cinema e a televisão são empregados, mais ou menos
conscientemente,    como    o   ‘ópio   do   povo’.     [...]    Sem    dúvida
a infantilização  serve  aos  donos da sociedade,  na medida em que
 facilita a tarefa  de  guiar as massas  através  da  propaganda   (...)” 

Comentário de Rossellini em Cinema e Televisão, Filmcritica, nº 400,
dezembro 1989  (texto  inédito,  provavelmente  escrito  em  1977) (24)

Por outro lado, demonstrando que mesmo pessoas bem intencionadas como Antonioni não compreenderam o que ele pretendia, na entrevista de 1962, ao Cahiers, Rossellini havia dito que a “educação” também não é a resposta: “Eu rejeito a educação. Educação inclui a ideia de liderar, dirigir, condicionar, ao passo que devemos buscar a verdade de uma forma infinitamente mais livre. A coisa importante a fazer é informar, instruir, mas não é importante educar”. Ele acreditava, para muitos uma crença superficial, que o conhecimento poderia ser transmitido de forma neutra. Para Rossellini, a ciência é o instrumento capaz da proeza. Portanto, seu projeto procura...

“Ver com novos olhos o mundo em que vivemos, tentar descobrir como ele é organizado cientificamente. Enxergá-lo. Não emocionalmente, não através da intuição, mas em sua totalidade e com a maior exatidão possível. O que nossa civilização nos deu foi a possibilidade de conduzir uma investigação científica, de examinar as coisas profundamente em termos científicos. Em outras palavras, de tal forma que erros, teoricamente, podem ser evitados se a investigação for conduzida apropriadamente. Hoje nos temos os meios para trabalhar dessa forma, e é aqui que precisamos começar a assumir um novo discurso” (25). (imagem abaixo, durante as filmagens de O Messias, Rossellini está sentado ao fundo apontando com o dedo)

Televisão Livre, Jesus Cristo e Karl Marx

“Porque é um
 protagonista  da 
 vida contemporânea. 
Numerosos são aqueles
que atualmente pensam
 em   termos   marxistas.  
Portanto, é necessário
avaliar [Karl] Marx, 
conhecê-lo”

Roberto Rossellini

Durante entrevista em 1976, Gian Luigi Rondi
pergunta ao cineasta por que escolheu realizar
um filme  a  respeito de Karl Marx,  pois  havia
dirigido  O Messias,  sobre  Jesus  Cristo   (26)

Brunette demonstrou surpresa pelo comentário de Rossellini a respeito do papel do Estado, num artigo de jornal, Defender a esperança que está dentro de nós (Difendere la speranza che è dentro di noi, 1965), ao afirmar que “o Estado, especialmente, intervirá para disseminar verdade e conhecimento”. Brunette cita ainda o ensaio onde o cineasta se coloca como alguém sem preconceitos, direcionado ao conhecimento das coisas e alguém que pretende viver na história e no progresso em pleno exercício de seu senso crítico - A busca de estilo e linguagem e a renovação do conteúdo (La ricerca di stile e di linguaggio e il rinnovamento del contenuto, Filmcritica, nº 167, maio-junho, 1966). Talvez Brunette esteja relacionando a referência com o fato de Rossellini haver se declarado comunista. Provavelmente, seria mais produtivo relembrar o fato de que as televisões públicas se estabeleceram na Europa antes das comerciais. Em 1972, Rossellini escreveu no jornal francês Le Monde (10 de maio) um artigo em defesa da televisão pública, Discussão em defesa da televisão estatal – Arrenga in difesa della televisione di Stato, republicado no italiano Il Tempo em 26 de maio. O cineasta se pergunta exatamente por que deveria acreditar que uma televisão fundada no lucro faria mais pelos cidadãos. Lembrou ainda O Absolutismo: A Ascensão de Luís XIV (1966), que surgiu de uma parceria com a televisão publica francesa e acabou sendo o primeiro programa europeu a ser transmitido pela televisão norte-americana (em 20 de abril de 1972). Para Rossellini, isso ocorreu porque o modelo privado nos Estados Unidos estava em crise e recorreu ao modelo público europeu atrás de novas linguagens – busca que Rossellini só acredita possível nas televisões públicas (27). Finalmente, ele se perguntava, onde numa televisão comercial se encontraria lugar para discutir o papel da televisão? Nas próprias palavras do cineasta em 1972:

“Em toda a Europa talvez, em todo caso na França e na Itália, as pessoas se perguntam sobre o destino da televisão pública. A renovação do contrato ligando a RAI ao Estado italiano, que deverá ocorrer no fim de 1972, tem sido objeto de uma campanha por parte dos adversários do monopólio. Na França, o caso da ‘publicidade clandestina’ – que encontrou grande eco na imprensa italiana – parece lançar a dúvida até no campo dos partidários do monopólio. Há evidências, pensam eles, da incapacidade do Estado para organizar espetáculos. Mas, sobretudo, pensam, dizem que a televisão, para ser livre, deve escapar do Estado. Que tal seja o raciocínio dos industriais é normal, porque sabem que uma televisão ‘livre’ será, na verdade, privada. O que é ruim, eu acho, é que tal opinião seja compartilhada por certos realizadores, certos jornalistas que imaginam que uma utópica televisão ‘livre’, quer dizer, comercial, realizará aqueles seus sonhos que foram frustrados pela televisão pública. Eu sou um partidário incondicional da televisão pública (...)” (28) (imagem abaixo, Descartes e Helena, Descartes, 1974)


“O nascimento  da  televisão  desencadeou uma
 guerra absurda entre esta mídia e o cinema (...)” 

Roberto Rossellini
Cinema e Televisão, Filmcritica, nº 400, dezembro 1989 
(texto inédito, provavelmente escrito em 1977) (29)

Rossellini até pretendia dirigir um filme a respeito de Karl Marx (projeto não realizado), e isto logo depois de haver filmado a vida de Jesus Cristo, em O Messias de Rossellini (Il Messia, 1975). De qualquer forma, aparentemente aquela surpresa de Brunette em relação ao interesse de Rossellini em sugerir uma interferência do Estado no mercado da televisão foi apenas uma introdução tendenciosa para ressaltar a semelhança do projeto dele com os planos não realizados do cineasta soviético Serguei Eisenstein - pelo menos naquilo que diz respeito ao papel da ciência, e também na ambição não realizada de dirigir um filme sobre Marx. Brunette cita Barthélemy Amengual, que ressaltou o interesse de Eisenstein em reconciliar os caminhos da ciência com a poesia, razão e mito, pensamento e emoção – Rossellini, por outro lado, afirma claramente que enaltece a razão e desvaloriza a emoção (30). Brunette se refere especialmente a passagem de Eisenstein na Sorbonne, em Paris, quando lá esteve em 1930, Os Princípios do Novo Cinema Russo (Revue du Cinéma, nº 9, abril, 1930) – originalmente, faria uma pequena conferência antes da exibição de O Velho e o Novo (Staroye i novoye, conhecido também pelo título A Linha Geral, 1929), mas quatro horas antes o filme fora banido pela polícia (31). (imagem abaixo, Blaise Pascal, 1972)


Rossellini antecipa no nível da produção a batalha contra aquela
que Guy Debord vai chamar de sociedade do espetáculo e Pier Paolo Pasolini definirá como a irrealidade da sociedade de consumo (32)

Brunette sabe que, ao contrário dos filmes de Rossellini para a televisão, aqueles do cineasta soviético são repletos de ação. Entretanto, cita o projeto de Eisenstein, que pretendia filmar O Capital, como um trabalho próximo ao espírito do italiano. Eisenstein fala de buscar os métodos de montagem capazes de provocar determinadas emoções – o soviético também acreditava na capacidade dos atores não profissionais. A grande tarefa do cinema soviético seria filmar ideias abstratas através de uma imagem, tornando-as concretas de alguma forma: da imagem à emoção, da emoção à tese – naquela época, anterior ao advento da televisão, Eisenstein preconizava que além da construção de prédios para abrigar cinemas, os trens deveriam levar esta arte para todos os cantos do país, promovendo a cineficação da União Soviética. Ele percebe que existe o risco de se tornar simbólico, mas acredita que o cinema é uma arte concreta e ao mesmo tempo dinâmica, capaz de realizar as operações do processo de pensamento – o qual não seria estimulado da mesma forma pelas outras artes. Desta forma, somente o cinema é capaz de produzir o estímulo intelectual, especialmente àquele capaz de superar o dualismo imposto entre o pensamento (especulação filosófica pura) e o sentimento (emoção). Enquanto para Rossellini o processo de pensamento parece ser uma coisa não problemática e talvez ele quisesse apenas privilegiar a quantidade de informação transmitida, para Eisenstein filmar O Capital não tinha como objetivo principal nem transmitir informação nem ensinar princípios marxistas, mas levar o espectador a pensar dialeticamente (o projeto nunca foi realizado) (33). Nas palavras de Eisenstein:

“Eu penso que só o cinema é capaz de alcançar essa grande síntese, de prover o elemento intelectual com suas fontes doadoras de vida, igualmente concreta e emocional. Essa é nossa tarefa e esse é o caminho que devemos seguir. Será o ponto de partida para o novo cinema que desejo fazer: ele deve fazer nosso trabalhador e nosso camponês penar dialeticamente. Esse filme se chamará O Capital de Marx. Não será uma história que se desenvolve, mas um ensaio para fazer a plateia analfabeta e ignorante compreender e aprender a maneira dialética de pensar” (34) (imagens abaixo, India Matri Bhumi, 1959)

Geografia das Ilusões


(...) projeto enciclopédico histórico no qual as energias
de  Rossellini  se  concentraram  nos  anos  1960  e  1970
foi    precedido    por   um   projeto   geográfico   (...)  (35)

Entre 1963 e 1974, Rossellini atravessou um período extremamente produtivo. Além dos filmes, desenvolveu uma série de projetos (muitos dos quais sobrevivem apenas como roteiros), escreveu diversos ensaios e livros (muitos dos quais permanecem inéditos). Segundo Aprà, Rossellini dá uma pista para o rompimento com o cinema no início do média-metragem Pureza, quando cita o psicanalista austríaco Alfred Adler: “O homem de hoje é frequentemente oprimido por uma indefinível angústia e, no trabalho cotidiano, o inconsciente lhe sugere um refúgio que o protegeu e nutriu: o útero materno. Para este homem, agora privado de si próprio, até o amor se constitui na procura carente do útero protetor”. Quando assistimos ao filme, explicou Aprà, percebemos que o útero protetor materno é o aparato cinematográfico, com todo seu poder emotivo e ilusório, seus processos de identificação e projeção, sua linguagem “alusiva”. Aprà classifica a viagem de Rossellini à Índia, entre dezembro de 1956 e setembro de 1957, como o ponto de virada do cineasta em sua busca por um tipo diferente de cinema. O Medo (Non credo più all'amore (La paura), 1954), que segundo Aprà foi último filme que Rossellini realizou antes de partir (aqui Aprà simplesmente ignora, do mesmo ano, Joana D'Arc de Rossellini, Giovanna d'Arco al rogo), pode ser considerado o ponto extremo de uma busca na direção oposta, sobre a qual Pureza refletiu criticamente: um cinema de “ilusão” e “alusão”, no qual o tema do casal é transposto do estilo de ensaio que Rossellini empregou em Viagem à Itália (Viaggio in Italia, 1954) para um estilo reminiscente de Fritz Lang e Alfred Hitchcock (36). (imagem abaixo, Rossellini durante as filmagens do episódio 1  de India Matri Bhumi, 1959)

India Matri Bhumi nos
mostra a interação entre
 o que é filmado e o ponto
de   vista   do  observador,
o  que  levou  Rossellini  a
criticar o cinema-verdade
dizendo que é impossível
alcançar o imparcial (37)


Na Índia, Rossellini realiza dois trabalhos complementares, um longa-metragem etnográfico, India: Matri Bhumi (1959), parte documentário, parte ficção, em quatro episódios, e uma série para televisão em dez partes de aproximadamente trinta minutos, que na Itália se chamou L'India vista da Rossellini (A Índia Vista por Rossellini, 1959), e na França J'ai fait un beau voyage (Eu Tive uma Boa Viagem) – nos dois títulos pode-se notar que o cineasta não pretende esconder que seu ponto de vista está presente. A série é como um diário de viagem visual, com reflexões, comentários e diferentes entrevistados nas duas versões (originalmente em cores, irá ao ar em preto e branco e será esta a versão arquivada). Cada episódio oscila entre os desejos de transmitir informação abstrata e inserir tal mensagem num contexto humano. Embora se possa contestar que individualizar retratos pode neutralizar o modelo documentário, Brunette admite que ver e ouvir alguém do local a respeito da realidade que se documenta é o que torna India Matri Bhumi memorável. O filme inteiro foi subjetivado. No caso especifico deste filme, o cineasta busca a objetividade ao tentar “sair” do eu ocidental. Como resumiu Claude Baudet, Rossellini insistia que necessitava de um intermediário com verdadeira compreensão das vidas dos camponeses indianos além do conhecimento cinematográfico para completar o projeto. Rossellini também sabia e admitia que tudo que assistimos no filme, não importa o quanto objetivamente obtido, foi filtrado através de sua consciência ocidental (38). Jacques Rancière vai explorar a subjetivação nesta fase de Rossellini, e a produção de um corpo para enunciar pensamentos, especificamente em relação à Blaise Pascal (1972) e Descartes (Cartesius1974).

“Com que corpo se pode transmitir a força de um texto é também o problema de Rossellini quando ele se vale da televisão para trazer ao grande público o pensamento dos filósofos. A dificuldade não está na banalidade da imagem rebelde diante das profundidades do pensamento, como quer a opinião generalizada, mas em que tanto a densidade da imagem como a do outro pensamento não permitem que se estabeleça entre eles uma simples relação de causa e efeito. Rossellini precisa, pois, dar um corpo bem peculiar aos filósofos para fazer sentir uma dessas densidades nas formas da outra” (39) (imagem abaixo, India Matri Bhumi, 1959)


“Talvez,    minhas    transmissões    de    televisão     ajudem 
a  compreender  meus  filmes.  O filme é menos técnico, menos
documental,  menos  exploratório.  Mas  porque procura penetrar
 [a  Índia]    através    das    emoções   ao   invés    das    estatísticas, 
  isso  nos  permite    penetrar   melhor   nele É  isso  que  penso 
ser    importante    e    o    que    desejo    fazer    no    futuro”

Interview with Fereydoun Hoveyda and Jacques Rivette, 
Cahiers du Cinéma, no. 94 (April 1959), 11 (40)

Rossellini viajou por toda a Índia, como já havia feito, em Paisà, com a Itália. Novamente, os atores não profissionais eram escolhidos no momento e no local. Em certa medida, explica Brunette, o resultado é, paradoxalmente, uma desestabilização dos códigos do realismo. Impedindo nossa aprovação da ilusão, procura sempre manter diante de nós a sensação de que o que estamos vendo foi feito, produzido. Rossellini retornou à prática de observar àqueles que escolheu e memorizar suas maneiras, para que possa “corrigí-lo” no futuro, caso comecem a atuar diferente do que eram antes. Ele ficou tão satisfeito com o resultado que falou ao francês Cinéma 59 que seus planos se estendiam à América do Sul, especialmente Brasil e México (não há como saber se o cineasta não conhecia a localização do México e se Brunette não foi capaz de notar o equívoco). Pretendia enviar fotógrafos, sonoplastas e um cineasta (que seria o chefe do grupo), para realizar uma exploração inicial. Então Rossellini trabalharia os dados à maneira de um antropólogo e um geógrafo para criar uma síntese poética para cada país. (imagens abaixo, A Question of People, 1974)


Em 1958, Rossellini queria transformar em documentário
  o livro do brasileiro  Josué  de  Castro, Geografia  da  Fome. 
Este   foi   apenas   mais   um   dos   projetos   engavetados

Rossellini pretendia dar continuidade a este tipo de documentário com um filme baseado no livro Geografia da Fome (1946), do médico, geógrafo, ativista contra a fome no mundo e ex-presidente da FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação), o brasileiro Josué de Castro (1908-1973) – Aprà e Luca Caminati não se entendem em suas referencias à Castro, o primeiro remete à Geografia da Fome, de 1946; o segundo a Geopolítica da Fome, de 1951. Em agosto daquele ano o cineasta esteve no Brasil para tratar do assunto, mas o projeto não foi adiante. Contudo, a ideia formaria a base de um projeto posterior, La Straordinaria Storia della Nostra Alimentazione (a extraordinária história de nossa alimentação), do qual apenas o roteiro existe. Este projeto, por sua vez, seria retomado na série para televisão que foi ao ar entre 1967 e 1971, La lotta dell'uomo per la sua sopravvivenza (a luta do homem por sua sobrevivência). O documentário A Question of People (uma questão de gente, ou, La popolazione mondiale, na versão italiana, 1974), produzido no ano das Nações Unidas para a população mundial, pode ser considerado um apêndice do projeto geográfico. O filme alterna entrevistas com especialistas em população, imagens dos arquivos soviéticos e da NASA com material filmado por seus colegas no Brasil, África e pelo próprio cineasta na Índia. Remetendo aqui ao livro de 1951, assim Luca Caminati resumiu a empreitada:

“A enciclopédia geográfica devia prosseguir, logo após India Matri Bhumi, com Geografia della Fame, uma adaptação de Geopolítica da Fome, de Josué de Castro, sociólogo e etnólogo brasileiro, que Rossellini provavelmente havia lido na versão italiana editada por Leonardo da Vinci, Bari, em 1954, com prefácio de Carlo Levi; para este projeto, que herdou de Cesare Zavattini e Sergio Amidei, Rossellini foi ao Brasil em 1958, encontrando Castro. Prolongamentos da enciclopédia geográfica podem ser rastreados no projeto de série para televisão La Straordinaria Storia della Nostra Alimentazione (cerca de 1964) e em A Question of People (1974), onde Rossellini (e seus colaboradores) utilizam não apenas imagens efetuadas na Índia em 1957, mas também outras filmagens, destinadas a projetos não realizados, efetuadas no Brasil (talvez em vista do projeto La Civiltà dei Conquistatores, cerca de 1970) e na África” (41) (imagem abaixo, Blaise Pascal, 1972)

Televisão e Pedagogia de Rossellini


Pelo menos  se pode afirmar que durante sua fase na televisão
Rossellini   não   estava   preocupado  em  construir  uma  ilusão
de realidade, mas buscar a ideia que está por trás da realidade

Rossellini queria mostrar que somos um produto da história, mas que ela não se reduz a datas e nomes. Devemos seguir, insistiu, o fio que liga as transformações do pensamento, pois a história não está aqui para celebrarmos o passado, senão para julgarmos a nós mesmos e nos guiarmos para um futuro melhor. Para Rossellini, nossa civilização, como tantas outras antes dela, está mergulhando no abismo. Confrontado com as extraordinárias descobertas científicas e industriais dos últimos séculos, os seres humanos precisam utilizar sua inteligência (a faculdade fruto do córtex cerebral) para compreender o que está acontecendo. Contudo, segue o cineasta, a presente crise (lembremos que ele estava se referindo às décadas de 1950 a 1970) é fruto do medo dos seres humanos, levando-os a abdicar das responsabilidades enquanto seres pensantes racionais e retroceder ao subcórtex do cérebro (sua parte original instintiva e animal). Na opinião de Rossellini, essa regressão ao estagio animal (que se pode depreender do triunfo da propaganda e persuasão sobre o conhecimento, do entretenimento e sedução sobre o raciocínio, da retórica sobre o diálogo) se manifestaria não apenas no comportamento humano, mas também na expressão artística e nos meios de comunicação em geral. A arte (que interessava o cineasta cada vez menos) e a mídia da comunicação (que o interessava cada vez mais) se tornaram os principais canais através dos quais nossa civilização se infectou, e onde a patologia de nosso comportamento é celebrada. O sistema atual, dizia Rossellini já naquela época, nos impede de aprender. A televisão, ele também repetia, é parte do problema, mas pode e deve ser parte da solução (42). Décadas antes do advento da internet, o cineasta escreveu em Utopia, Autopsia, 10¹º (1974):

“As poderosas vozes do rádio, televisão, cinema e imprensa deveriam, de acordo com meu sonho, tornar-se os meus através dos quais qualquer pessoa será capaz de disseminar não apenas recreação [(entretenimento)], mas também conhecimento; e, através da invenção de novas fórmulas, elas poderiam ser usadas para restabelecer o diálogo de cada um com todos. Se formos capazes de atingir esse objetivo, seria inebriante tomar parte nesse vasto diálogo” (43) (imagem abaixo, O Renascimento: A Era dos Médici, 1972)


(...) Pretendo ser não um artista, mas um pedagogo (...) 

Da  entrevista  de  Roberto  Rossellini  a  Fereydoun  Hoveyda
e Eric Rohmer, Cahiers du Cinéma, nº 145, julho de 1963 (44)

Aprà nos conta que Rossellini acreditava ser possível alcançar esta “intoxicante aventura do pensamento” justamente através da televisão – que o cineasta descreve quase com os mesmos termos que descreveríamos atualmente a internet. Como o aparelho havia surgido naquela época (já sabemos que o cineasta começou a delinear seu projeto desde 1957), ele acreditava que o fato de a televisão ainda estar em sua infância, não condicionada, como o cinema, por uma linguagem codificada e um público de massa, mas direcionada a milhões de espectadores que são milhões de indivíduos. A televisão que ele tinha em mente era educacional, mas através de um sistema de educação diferente (ou seja, um que não se limitasse apenas a manter e reproduzir o status quo, o que redunda na incapacitação dos indivíduos para desenvolverem seu potencial). Livre, simples, agradável, integral, assim o cineasta via como deve ser um sistema educacional, ao qual poderíamos devotar uma porção cada vez maior de nosso tempo livre. Tal sistema deveria ser permanente e acessível a todos e deveria também ser capaz de sintetizar o conhecimento acumulado ao longo dos séculos. O modelo de Rossellini neste caso era Comenius (Jan Ámos Komenský), um educador que durante o século XVII lançou o conceito de pansofia (a ciência que reuniria todas as ciências, de maneira a ensinar tudo para todo mundo). Mas Rossellini não quer apenas encontrar outro método através de uma nova linguagem audiovisual, para ele o problema da sociedade humana de sua época era político – porque é a questão de como desenvolver e disseminar essa forma de educação integral. (imagem abaixo, O Renascimento: A Era dos Médici, 1972)


Após concordar com Comenius em relação à utilização das imagens
na  metodologia  educacional,  Rossellini  passa  a  se  perguntar  quais
imagens  se  prestam  a  este  fim.    Concluiu  que  devem  atrair  como
 aquelas do entretenimento, mas mantendo o rigor do documentário 

Resumo da justificativa exposta pelo cineasta em carta a Peter H. Wood em 1972, 
professor   de   História   na   Universidade   de   Duke,    Estados   Unidos    (45)

Foi de Comenius que Rossellini trouxe os conceitos de “visão direta” (ou autopsia, que originalmente quer dizer “ver com os próprios olhos”) e “imagem essencial”. “uma grande parte da dificuldade de aprendizagem”, escreveu Comenius em seu Pansophiae Prodromus (1637), “vem do fato de que as coisas não são ensinadas aos pupilos através de visão direta, mas por tediosas descrições, em função das quais é muito difícil para as imagens das coisas serem imprensas no entendimento; elas, portanto, passam tão fracas à memória que se desmancham facilmente ou se confundem com outras coisas” (46). Aprà encontrou uma similaridade entre o programa de Comenius (e Rossellini) com os objetivos de Bolesław Matuszewski (1856-1946), embora ele estivesse escrevendo a respeito do caráter documental do cinema. Já em 1898, Matuszewski afirmava que a “fotografia animada” deixaria de ser apenas uma forma de passatempo para se tornar um método de investigação do passado, oferecendo uma visão direta que elimina a necessidade de estudos cansativos e ambíguos, revelando-se um meio particularmente efetivo para a educação. Aprà sintetiza todas estas propostas ao dizer que o caráter simbólico da palavra neutralizou a imagem e transformou probabilidades em certezas. Uma vez que pelo hábito nossos processos mentais são verbais, disse Aprà, as imagens que produzimos acabam subordinadas às palavras e meras ilustrações delas. A proposta, então, é a possibilidade de retorno à imagem anterior ao desenvolvimento da linguagem verbal: uma ilustração demonstra uma coisa, enquanto a “visão direta” mostra. A imagem pura está subjugada por nossa inabilidade em mostrar as coisas. Como resumiu Rossellini em Utopia, Autopsia, 10¹º:

“A imagem essencial, fundamental, na qual podemos condensar toda informação necessária. Quando alcançarmos isso, não haverá mais necessidade de proceder por argumentação; procederemos, de preferência, por indicações, por provas completas e essenciais das coisas como são. Quando redescobrirmos a imagem, seremos capazes de acumular em seu interior, de maneira contextualizada, uma grande quantidade de informação” (47) (imagem abaixo, O Messias de Rossellini, 1975)


(...) Shakespeare disse, ‘ação é eloquência. Os olhos dos
 ignorantes  são  mais instruídos  do  que seus ouvidos’” 

Da carta de  Rossellini  ao professor  de  História  Peter  H.  Woods, da  Universidade
 de  Duke,   Estados  Unidos.   Escrevendo   em   1972,  o  cineasta  procura  por  todos  os 
meios convencer seu interlocutor quanto ao poder das imagens para a educação (48)

Além do que já foi dito em relação aos argumentos de Rossellini contra a mercantilização e alienação do ser humano, não se pode esquecer que pelo menos até a década de 1980 do século passado o fantasma de uma guerra nuclear que poderia dizimar a humanidade era uma possibilidade, especialmente nas décadas de 1950 e 1960. Se abordarmos a questão apenas do ponto de vista político-militar, a chamada Guerra Fria também foi o pano de fundo que sustentou inúmeras ditaduras (tanto de esquerda quanto de direita) ao redor do mundo, da mesma forma contaminando as guerras que eclodiram em função do processo de descolonização na África e na Ásia (processo que por si só gerava instabilidade no mundo “civilizado” que até então se servira de suas colônias). Portanto, é compreensível que nas propostas de Rossellini se encontrem palavras que poderiam soar atualmente como algo piegas ou ingênuo. Como ele escreveu em Un Esprit Libre ne doit rien apprendre en esclave (Um espírito livre não deve aprender como escravo, 1977): 

“Quando o mundo criado e nossas vidas são capazes de aparecer para nós numa perspectiva correta, vamos dar um passo decisivo em direção a um maior equilíbrio, em direção à harmonia. Participar juntos na aventura do conhecimento irá nos consolar e nos dar coragem. Ser mais bem orientados nos dará tranquilidade e calma. Desta forma, lançaremos as bases essenciais para uma existência humanamente construtiva” (49)

Escrevendo no ano de 2000, Aprà conclui conosco que Rossellini era europeu utópico, mas corajoso. Coragem da qual nós também necessitamos, se ainda pretendemos salvar o cinema e a televisão da hegemoniza de um discurso alienante:

“O projeto de Rossellini é declaradamente utópico. Inicia com um reconhecimento, com o qual se pode em grande medida concordar, da crise de nossa civilização, que perdeu seu sentido de valores humanos fundamentais em nome de uma mercantilização de tudo e um embotamento da razão, produzidos por essa mesma mídia de massa na qual Rossellini, durante os anos 1960 e 1970, ainda viu uma chance de salvação. Nunca, mais do que hoje, sua coragem de traduzir palavras em ações aponta um caminho a seguir, que vale a pena levar a sério, para contrabalançar a dominação de uma forma de cinema e televisão que celebra sua rendição incondicional à mercantilização e defende a destruição” (50) (imagem abaixo, O Messias de Rossellini, 1975)

Os Documentos e os Atores


É notável a similaridade entre a enciclopédia de Rossellini
e o projeto  educacional do escritor  soviético  Máximo  Gorki
em   1919.   Em   cenário  historicamente  exato,  se  apresenta
 a humanidade,  da Idade da Pedra à França de Luis XVI  (51)

Rossellini decide abandonar o cinema de ficção por considerá-lo muito suscetível à fascinação e ilusão da sala escura e aos conselhos dos produtores. Se em 1961, Viva a Itália pode ser considerada a obra mais educacional deste período intermediário, ainda existe o gosto pela captura do acontecimento ao vivo, como num documentário sobre guerra.  De 1965 em diante, a partir da série para televisão A Idade do Ferro (L'età del Ferro), esses resíduos de um realismo do imediato, que permite ao espectador criar uma empatia, desaparece ou se torna esporádico. Um realismo dos fatos dá lugar a um realismo dos documentos. Rossellini passa a utilizar, ou afirmava utilizar, fontes históricas e evita tudo que for típico da linguagem cinematográfica. Agora o espectador de seus filmes não olha mais para uma realidade parecida com a vida, apenas para uma tela artificial.  Em A Idade do Ferro, Rossellini passou a direção para seu filho, Renzo, apenas supervisionando a direção e escrevendo o roteiro. Já na série A Luta do Homem Pela Sobrevivência (La lotta dell'uomo per la sua sopravvivenza, 1970), cuidará somente do roteiro. De acordo com Aprà, ele não estava delegando criatividade, mas renunciando a todas as tentações dela, todas as reivindicações para ser artístico – por outro lado, durante entrevista em 1971, Rossellini afirmou que chamou Renzo porque estava muito ocupado e também porque Isabella, sua outra filha, iria operar a coluna (52). “Mostrar, não demonstrar”, esta era a fórmula. Para o cineasta, “demonstrar”, significava dar ênfase indevida ao significado pretendido por aquele que faz o filme. Limitando-se a “mostrar”, Rossellini acredita produzir uma imagem que expressa a verdade (53). (imagem abaixo, O Messias de Rossellini, 1975)


Prática   padrão   na   Itália   entre  1945  e  1970,    todos  os  filmes
de   Rossellini   para   a   televisão   foram  dublados.  O  efeito  ajudou
a neutralizar  a  individualidade dos personagens. Somado à ausência
de ruído ambiente, o efeito era como estar dentro de um aquário (54)

Rossellini utilizou de técnicas teatrais (seguidas pela televisão) como o prompter (dália) com o objetivo impedir que os atores atuassem, mas apenas recitassem (de qualquer forma, sabemos que na Itália todos os atores eram dublados, o que por si só aumentava ainda mais o efeito de despersonalização buscado pelo cineasta; no caso de Rossellini, a exceção foi Luis XIV; antes disso, a versão em inglês de Stromboli, e as versões em alemão de Alemanha Ano Zero, O Medo, Uma Voz Humana e Joana D'Arc de Rossellini; partes de Paisà também tem som direto). Como sempre estariam lendo, os atores não poderiam olhar uns para os outros nos olhos, levando o espectador a enxergar na atuação uma rigidez típica de marionetes. Os atores não deveriam encarnar ninguém (Sócrates, Luis XIV, Pascal ou Descartes), mas “representar” esses personagens. Sua função era apenas de levar informação à plateia através de monólogos não naturais, ou em diálogos onde os outros falantes proferiam algumas palavras, uma vez a função destes últimos era substituir o público. Outra técnica teatral utilizada por Rossellini foi a utilização dos “apartes”. Contudo, ao contrário do teatro, inseria dois personagens conversando ao invés de alguém se dirigindo à plateia. Aquilo que muitos chamariam de “erros” ou “atuação imperfeita” dos atores, imposta por um incompetente e ditatorial Rossellini é, na verdade, seu argumento estético (ou teórico...). Durante entrevista em 1973, ele lembrou que em nosso cotidiano não somos perfeitos. Acaso e imperfeição são elementos vitais da História, negligenciá-los nos aliena, e perdemos a habilidade de entrar nas coisas. É por este motivo, explicou Rossellini, que optou por atores não profissionais. Como ficam apavorados na hora de atuar, não criam um papel, apenas recriam um personagem histórico – a distância em relação à abordagem empregada por Vittorio De Sica com atores não profissionais é grande aqui.

“O ‘acaso e imperfeição’ a que ele se refere aqui são aqueles do cenário, não da realidade sendo representada, como em Paisà, em Viva a Itália, ou no cinema-verdade. Isto contribui, em última análise, para tornar impossível que o espectador mergulhe [se misture, se identifique] com o filme. Podem apenas ‘ver à distância’ (o significado etimológico de ‘televisão’) alguma coisa que é claramente artificial, simulada [encenada], ‘falsa’. Menos justificáveis são os momentos (também raros) quando certos atores se abandonam a uma atuação ‘expressiva’. É o caso, por exemplo, de Anne Caprile, que se apresenta ‘à la [Anna] Magnani’ como Xântipe, em Sócrates [(Socrate, 1971)]. Alguém poderia dizer que sua maneira de atuar aqui serve para contrastar com o sóbrio Sócrates (‘Xântipe representa o demônio’, disse Rossellini de modo enigmático [durante uma entrevista em 1952]), mas parece incontestável que tais soluções são um retrocesso em vista daquilo que Rossellini agora havia deixado para trás. Bem mais interessante é a forma como ele consegue reprimir em proveito próprio as tentativas de atuação de certos atores [(suas pretensões expressivas)], tal como Ugo Cardea no papel de Descartes, [em Descartes] (semelhante à maneira como lidou com George Sanders, em Viagem à Itália). Tudo isso pode levar-nos a pensar que Rossellini não se interessava pela atuação, mas não é verdade. É suficiente considerarmos apenas duas explorações do dilema verdadeiro-falso do ator, Uma Voz Humana e De Crápula a Herói, empregando atores virtuosos como Anna Magnani e Vittorio De Sica. A verdade é que ele geralmente não estava interessado na performance do ator, mas no ‘estar no mundo’ da pessoa humana [ou, por contraste, em seu período na televisão], numa interpretação opaca, ‘obtusa’ [Roland] Barthes poderia dizer” (55) (imagens abaixo, Sócrates, 1971)

A Lógica da Narrativa 


O  cinema  está  quase  morto,   afirmou   Rossellini   em   1972. 
O  único  papel  que  lhe  restou, a função social da educação,  já foi
preenchido pela televisão, que em sua opinião desempenharia este
papel, caso houvesse interesse, de maneira muito mais eficaz (56)

Rossellini distinguia as séries A Idade do Ferro e A Luta do Homem Pela Sobrevivência dos outros filmes de sua enciclopédia histórica. Como cobriam longos períodos de tempo, considerava-os uma espécie de espinha dorsal, na qual podia inserir temas e analisar períodos específicos. Por outro lado, as duas obras também se destacam porque utilizam modelos narrativos muito diferentes. Em ambos, Rossellini aparece em pessoa no início ou durante o programa para explicar em termos gerais o que virá em seguida. Alguns episódios contam com narração, especialmente quando surgem imagens de arquivo. A duração de cada episódio é variável (variando de uma sequência a um filme inteiro), tornando a apresentação educacional flexível, como uma narrativa antiacadêmica oral, com pausas, sumários e momentos de detalhamento. Na opinião de Aprà, fica a sensação de que Rossellini está abrindo seu caderno de notas e convidando os espectadores para desenvolver as suas próprias. A inclusão de várias fontes (documentários, cinejornais filmes industriais, filmes sobre arte pequenos extratos de seus próprios filmes ficcionais) também convence Aprà de que as duas séries se afastam do modelo padrão de programas para escolas. Rompendo com outro padrão dos documentários, Aprà chama especial atenção para o fato de que Rossellini parece deliberadamente colocar grandes acontecimentos em segundo plano: ao invés de mostrar Colombo descobrindo a América, nós o acompanhamos enquanto sem argumentos procura convencer seus financiadores de que o projeto (para se lançar no oceano vazio em busca de uma terra que supostamente existe) está bem fundamentado. Os filmes também se entrelaçam, pois imagens de uns são utilizados nos outros (57).

“Em seu período cinematográfico, enquanto mantinha uma consistência temática básica, Rossellini modificava o padrão estilístico praticamente de um filme para o outro: a estrutura tipo romance do enredo de Roma, Cidade Aberta é seguido pelo molde documental de Paisà, a investigação microscópica de Uma Voz Humana pelo distanciamento ascético de Francisco, Arauto de Deus, o ensaio-ficção Viagem à Itália pelo ‘expressionismo’ ascético de O Medo. Nos filmes para televisão, por outro lado, a coerência do projeto enciclopédico se reflete na coerência estilística, como se os vários filmes fossem meras facetas de um único filme. Isso não significa que o método de Rossellini nesses filmes [...] não comporte mudanças de tom, exceções ou desvios de filme para filme, ou que não se possa detectar um progressivo aperfeiçoamento no método. Nas diferentes tipologias narrativas, seus momentos culminantes podem ser identificados em A Luta do Homem Pela Sobrevivência, O Renascimento: A Era dos Médici [(L'età di Cosimo de Medici, 1972-3)] e Descartes” (58). (imagem abaixo, Descartes e Helena, a doméstica com quem teve uma filha, Francine, em Descartes, 1974)


(...) [Rossellini]  teve  apenas   duas   preocupações   permanentes: 
reivindicar  a  virtude formadora  do  cinema (e mesmo, por que não,
dos    filmes  de  ficção)    e    lutar    contra    a    concepção    industrial
e    comercial    dominante,     que    torna    o    cinema    uma    mídia
embrutecedora e o filme um produto como qualquer outro (...)(59)

Os demais filmes históricos podem se divididos em dois tipos de narrativas: “retratos de indivíduos” (Luis XIV, Sócrates, Blaise Pascal, Santo Agostinho [1972], Descartes, O Messias de Rossellini) e “retratos de uma época” (Atos dos Apóstolos [1969] e O Renascimento: A Era dos Médici). Estes dois últimos são longos e divididos em partes, além de se aprofundarem na época dos protagonistas. Os seis primeiros não são realmente filmes biográficos, não seguem a trajetória de uma vida, mas de uma ideia – embora, como Aprà parece fazer questão de ressaltar no caso de Descartes, tenhamos oportunidade de acompanhar um pensador que parece hesitante em assumir a maturidade, inclinado à preguiça, ao sono e ao sonho, que pensa mais do que escreve, e que apenas no final aceita a maioridade ao publicar, casar e ter um filho. Talvez apenas com exceção de Sócrates, e parcialmente Cósimo de Médici, Rossellini não se preocupe mostrar a passagem cronológica. Existe uma impressão de imobilidade do tempo e do espaço nos corpos – com a possível exceção de Atos dos Apóstolos e O Messias de Rossellini. Aprà insiste que não faz sentido criticar Rossellini por ter escolhido não contar determinado episódio de certo período que ele estivesse examinando. A fidelidade histórica que o cineasta pretendia era a fidelidade à sua interpretação pessoal em relação a uma ideia dominante de um movimento filosófico ou período histórico. O que o interessava ao lidar com o passado não era mostrar aquilo que realmente aconteceu, mas retirar disso uma ideia que possa ajudar a nos reorientar no presente. Como o historiador italiano Benedetto Croce (1866-1952), lembrou Aprà, Rossellini considerava toda história como “história contemporânea”. (imagem abaixo, O Renascimento: A Era dos Médici, 1972)

O que Sobrou de Rossellini 


Na série sobre o mundo muçulmano, mais um dos projetos de Rossellini que ficou no apenas no papel, seria aplicado o método didático-informativo já utilizado em seus trabalhos anteriores para a televisão. Renzo, filho do cineasta, disse que o pai elaborou o projeto de um filme (ao contrário dele, Renzo não se refere a uma série) em 1975 ou 1976. Lendo o manuscrito, Renzo destacou algumas frases da introdução, tais como: “Criou-se uma nova ruptura, profunda demais, entre o mundo ocidental, orgulhoso de seu suposto pragmatismo, e o mundo muçulmano, que, finalmente desperto, tem a coragem de se manifestar”. Renzo questionou o pai dizendo que “os países islâmicos são riquíssimos, têm petróleo e podem deixar de joelhos a economia do planeta!” – de fato, em 1973 e 1979-80 ocorreu o chamado “choque do petróleo”, quando os países produtores quadruplicaram o preço do barril e, a seguir, triplicaram essa cifra, gerando uma crise mundial. A resposta de Rossellini ao filho: “Mas o problema é justamente esse: para nos apoderarmos daquelas riquezas, vamos criar pretextos, vamos reempregar as armas do racismo, como foi feito contra os judeus, vamos fazer guerras, e, o que é pior, nós podemos acabar criando uma nova Shoah, e desta vez as vítimas serão o Islã e os muçulmanos”. Em 2007, Renzo escreveu: “Há trinta anos, essas palavras me pareceram exageradas, hoje me parecem uma lúcida profecia” (60). 

Isabella, filha de Rossellini, escreveu o roteiro de uma homenagem ao cineasta, Meu pai tem 100 anos (Mio Padre Ha 100 Anni). Realizado em 2005 pelo canadense Guy Maddin, o curta-metragem oferece uma breve apresentação das ideias de Rossellini, onde Isabella contracena com ela mesma caracterizada como vários personagens da história do cinema (Alfred Hitchcock, David O. Selznick, Federico Fellini, Charlie Chaplin, Ingrid Bergman, além do próprio Rossellini, representado por uma voz em off e uma grande barriga) que discutem sobre as propostas dele. No final, ela resume um sentimento: “Pai, tudo o que você disse faz tanto sentido. Entretanto, após de 100 anos de cinema, a ignorância no mundo ainda não foi derrotada. E seus filmes, lentamente são esquecidos. Nada daquilo que você pregou aconteceu, nenhum seguidor, nenhum apóstolo. [...] Eu não sei se você é um gênio ou não, pai. Mas eu te amo”.


Leia também:



Notas:

1. BRUNETTE, Peter. Roberto Rossellini. Berkeley: University of California Press, 1996. P. vii.
2. Idem, pp. vi-vii.
3. APRÀ, Adriano. Rossellini’s Historical Encyclopedia. In: FORGACS, David; LUTTON, Sarah; NOWELL-SMITH, Geoffrey (Orgs.). Roberto Rossellini, Magician of the Real. London: British Film Institute, 2000. Pp. 126, 134-5.
4. BONDANELLA, Peter. Italian Cinema. From Neorealism to the Present. New York/London: Continuum, 3ª ed, 2008. P. 164.
5. BRUNETTA, Gian Piero. The history of italian cinema: a guide to italian film from its origins to the twenty-first century. Princeton: Princeton University Press, 2009. Pp. 222-3.
6. APRÀ, Adriano. 2000. Op. Cit., p. 4.
7. FORGACS, David. Introduction: Rossellini and the Critics. In: FORGACS, David; LUTTON, Sarah; NOWELL-SMITH, Geoffrey (Orgs.). Op. Cit. 2000. Pp. 1, 5.
8. Idem, p. 5.
9. BRUNETTE, Peter. Op. Cit., p. vii.
10. Idem, pp. 128, 197, 209, 254.
11. APRÀ, Adriano (Org.). La Television Comme Utopie. Paris: Cahiers du Cinéma, 2001. P. 187.
12. Idem, p. 81.
13. BRUNETTE, Peter. Op. Cit., pp. 128-9.
14. Idem, p. 255.
15. Ibidem, pp. 254.
16. Ibidem.
17. APRÀ, Adriano (org.). 2001. P. 123.
18. BRUNETTE, Peter. Op. Cit., p. 254.
19. Idem, p. 255.
20. APRÀ, Adriano (Org.). 2001. P. 187.
21. Idem, p. 121.
22. ANTONIONI, Michelangelo. La Storia del Cinema la fanno i Film. In: COTTINO-JONES, Marga (Ed.). Michelangelo Antonioni. Architecture of Vision. Writings and Interviews on Cinema. USA: University of Chicago Press, 1996. P. 208; ANTONIONI, Michelangelo. My Method. In: COTTINO-JONES, Marga (Ed.). Op. Cit., pp. 371-2.
23. ANTONIONI, Michelangelo. My Method. In: COTTINO-JONES, Marga (Ed.). Op. Cit., p. 372.
24. APRÀ, Adriano (Org.). 2001. Op. Cit., p. 121.
25. BRUNETTE, Peter. Op. Cit., p. 255.
26. APRÀ, Adriano (Org.). 2001. Op. Cit., p. 99.
27. Idem, pp. 88-91.
28. Ibidem, p. 87.
29. Ibidem, p. 119.
30. Ibidem, p. 107.
31. BRUNETTE, Peter. Op. Cit., nota nº6, capítulo 27.
32. CAMINATI, Luca. Roberto Rossellini Documentarista. Una Cultura della Realtà. Roma: MiBAC – Centro Sperimentale di Cinematografia, 2012. P. 52.
33. EISENSTEIN, Serguei. The Principles of the New Russian Cinema. In: TAYLOR, Richard (Ed.). Sergei Eisenstein. Selected Works: Writings, 1922-1934. London/New York: I.B. Tauris, Volume I, 2010. Pp. 198-9.
34. Idem, pp. 199-200.
35. APRÀ, Adriano. 2000. Op. Cit., p. 127.
36. Idem, pp. 126-7, 147n3.
37. BRUNETTE, Peter. Op. Cit., p. 200.
38. Idem, pp. 197, 199-200.
39. RANCIÈRE, Jacques. As Distâncias do Cinema. Tradução Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. P. 22.
40. BRUNETTE, Peter. Op. Cit., p 208.
41. CAMINATI, Luca. Op. Cit., pp. 130-1n6.
42. APRÀ, Adriano. 2000. Op. Cit., pp. 127-9, 147n10.
43. Idem, p. 128.
44. HOVEYDA, Fereydoun; ROHMER, Eric (et alii). A Política dos Autores - entrevistas. Lisboa: Assírio Alvin, s/d. P. 120.
45. APRÀ, Adriano. 2000. Op. Cit., p. 162.
46. Idem, pp. 128-9.
47. Ibidem, p. 129.
48. Ibidem, p. 162.
49. Ibidem, p. 129.
50. Ibidem.
51. Ibidem, p. 148n19.
52. APRÀ, Adriano. 2001. Op. Cit., p. 80.
53. APRÀ, Adriano. 2000. Op. Cit., pp. 133-7, 140.
54. Idem, pp. 139-40.
55. Ibidem, pp. 136-7.
56. Ibidem, pp. 165-6.
57. Ibidem, pp. 140-5.
58. Ibidem, pp. 143.
59. AUMONT, Jacques. As Teorias dos Cineastas. Tradução Marina Appenzeller. Campinas, SP: Papirus, 2004.164.
60. ROSSELLINI, Roberto. Islã: vamos aprender a conhecer o mundo muçulmano. Tradução Letícia Martins de Andrade. São Paulo: Martins fontes, 2011. Pp. 7-8, 13-4.

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