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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

30 de dez. de 2016

Bertolucci e o Italiano Ridículo


 Quando uma declaração encorajante conclui uma tragédia, 
como   as   palavras   pronunciadas   por   Édipo  (“Eu  concluo
que    está    tudo    bem”)o  momento   se   torna   ridículo

Pais e Filhos

Primo Spaggiari é proprietário de uma fazenda de gado leiteiro na província italiana de Parma. Ex-gerrilheiro (partigiano) comunista durante a Segunda Guerra Mundial, agora ele é um rico capitalista dono de uma grande propriedade, uma esposa, Bárbara, e um filho, Giovanni. Em seu aniversário, recebe um presente do filho com uma carta: “Caro papai, a ideia de você comprando um iate é grotesca. Você se tornou o perfeito empresário absurdo. Mas é seu aniversário, então eu te perdoo. Seu filho amado”. Ele ganhou um quepe de capitão de barco, um binóculo e uma arma para enviar sinais de socorro. Então põe o quepe na cabeça e pensa olhando para si mesmo no espelho: “Eu sei que sou ridículo. Descobri quando tinha cinco anos. Mas com estilo”. Certo dia, enquanto inspecionava a propriedade com seu binóculo, Primo vê seu Giovanni envolvido no que inicialmente parecia uma corrida de carros. Na verdade, ele estava sendo raptado - ou assim ficou estabelecido. Estranhamente, Primo deixa o telefone de casa fora do gancho, o que impede que os sequestradores entrem em contato - o contato viria a ser através de cartas. Surgem duas pessoas desconhecidas para Primo e Bárbara: Laura, a namorada de Giovanni e Adelfo, um padre operário que vai servir como elemento de ligação entre os sequestradores e Primo. Bárbara e o marido começam a tentar levantar dinheiro para o resgate – mais ela do que ele; a mãe chega a contatar agiotas. Enquanto espera por notícias na casa de Adelfo, Primo encontra Laura e eles transam. (imagem abaixo, cartaz do lançamento na França)


“Com  A  Tragédia
de   um   Homem   Ridículo, 
o   diretor    retorna    [à   Emilia-
Romagna], apresentando um tema
atual,  o  alegado  rapto do filho de
um industrial; [na verdade,] farsa
organizada pelo filho, ao mesmo
tempo em que toda a realidade
humana e social mostra sua
própria face ambígua
e inconsistência
moral” (1)



Adelfo retorna trazendo más notícias: Giovanni está morto – como Adelfo reconheceu um dos sequestradores, agora sua vida também está em risco. Primo fica ainda mais confuso quando Laura conta que Giovanni pretendia sequestrá-lo, com o objetivo de arrumar dinheiro para ajudar alguns “amigos”. De repente, a mansão é invadida por um policial bombástico (chega falando num megafone) e seu grupo antiterrorismo, que vasculham a casa e o quarto de Giovanni. O chefe conclui que se trata de alguém que colabora com a luta armada. Primo não encontra coragem para contar à Bárbara a respeito da morte de Giovanni. Mas isso não o impede de aproveitar-se da situação e desviar o dinheiro do resgate para investir em seu negócio falido. Adelfo e Laura prosseguem com o plano, pois desta forma salvarão os empregos de muitos operários. Primo e Bárbara entregam o dinheiro seguindo as instruções de uma carta ditada por ele à Laura, que por sua vez imita a letra de Giovanni. A seguir, a casal retorna para casa à espera de notícias. Adelfo e Laura dizem a Primo que a mala com o dinheiro está segura, mas o pai segue o padre até uma discoteca em busca de mais informações. Lá ele encontra Giovanni, que está dançando com sua mãe e Laura. “Pagaram o resgate com o dinheiro”, conclui Primo, “e agora Giovanni está vivo. Mas a quem eles pagaram?” “Eu prefiro não saber”, responde para si mesmo enquanto vai pra casa comemorar o retorno do filho.

Luta Armada


Jovens   cineastas  não  eram  capazes  de  contar  histórias  a  partir
do ponto de vista dos terroristas, nem de penetrar a psicologia deles


Com A Tragédia de um  Homem Ridículo (La tragedia di un uomo ridicolo, 1981), Bernardo Bertolucci dá sequência a sua fascinação pela interpretação freudiana da relação entre pais e filhos. O tema será articulado ao contexto de problemas sociais urgentes como dependência de drogas e terrorismo, dois assuntos recorrentes no cinema italiano da década de 1970 (2). Para Claretta Tonetti, o filme segue o padrão de 1900, a câmera é uma espécie de microscópio, e quanto mais ela se aproxima de um incidente específico, mas seus vários ângulos revelam detalhes contraditórios e obscuros. “Prefiro não saber”, a frase de Primo no final, resume a atitude de muitos italianos daqueles tempos. O instinto de sobrevivência que levou muitos a manter uma “distância segura” em relação à violência que ameaçava destruir a sociedade italiana durante a década e que lá também foi batizada de “anos de chumbo”. Durante os anos 1970, o terrorismo explodiu na Itália com as Brigadas Vermelhas. Na opinião de Giorgio Bocca, ninguém previu ou por meses e anos compreendeu o terrorismo que surgiu naquela época. Nenhuma revolta que acabou em banditismo, conspirações anarquistas ou clandestinidade do Partido Comunista, nada disso se equiparava ao advento das Brigadas. Os primeiros terroristas possuíam educação universitária e saíram de famílias tanto comunistas quanto católicas. Criou-se a palavra “catocomunismo”, que para Bocca faz sentido apenas em parte. Nenhum dos dois é a fonte do terrorismo, mas alguns elementos isolados de ambos são: necessidade impaciente de fé total... de oposições radicais; um desejo ardente de superar obstáculos e chegar no coração do conflito; um desejo de tomar atitudes extremas de forma a encontrar uma maneira de escapar dos desapontamentos da política vulgar (3).

“Desde os anos 1970, os diretores têm encontrado dificuldade para abordar o tema do terrorismo e foram forçados a tratar do tema com cautela. Gian Francesco Mingozzi foi o primeiro a enfrentar o tema do terrorismo em La Vita in Gioco ([também conhecido como Morire a Roma) 1972). Ele foi seguindo por Marco Tullio Giordana com Maledetti vi Amerò (1980), Bernardo Bertolucci com A Tragédia de um Homem Ridículo, Gianni Amelio com Golpe no Coração (Colpire al Cuore, 1982), e Giuseppe Bertolucci com Segreti Segreti (1985). Estes diretores procuraram explorar as relações entre o ‘Eu” político em extinção e o ‘Eu’ individual que não conseguia mais encontrar equilíbrio na sociedade. Tornou-se mais e mais difícil para os roteiristas – especialmente os roteiristas jovens – criar um ambiente político e social em seus filmes. Ao contrário da diretora alemã Margarethe von Trotta, que realizou Os Anos de Chumbo (Die bleierne Zeit, 1981), jovens cineastas foram incapazes de contar histórias a partir do ponto de vista dos terroristas, nem eram eles capazes de penetrar a psicologia dos terroristas. Os motivos dos terroristas e as forças por trás do terrorismo se mostraram muito difíceis de decifrar” (4)



Além  da  relação  entre  pais  e  filhos  e  do  terrorismo, A Tragédia
de um Homem Ridículo também expõe as transformações econômicas
e industriais do mundo  dos  agricultores  italianos no pós-guerra (5)

No mesmo ano, Francesco Rosi realiza Três Irmãos (Tre Fratelli), uma investigação a respeito dos conflitos ideológicos e éticos entre eles, onde se aborda também um relação lacunar entre pai e filho. Como fica claro na carta de Giovanni ao pai pelo aniversário, Bertolucci explora bem não apenas e questão edipiana, mas também o detalhe dos filhos da classe dirigente que irão alimentar o terrorismo contra ela mesma. Em determinado momento, Primo fala para sua esposa: “Os filhos de hoje são monstros. São mais pálidos que nós. Com olhos sem vida. Eles tratam seus pais com grande respeito demais ou desprezo demais. Eles não riem mais. Não são mais capazes de rir, eles zombam. Sobretudo não falam mais. Não sabemos se seu silêncio é um pedido de ajuda ou se querem disparar em nós. São criminosos”. Tonetti demonstra como as palavras de Primo acentuam sua relação conflituosa com Giovanni, dando um tom edipiano aos anos de chumbo. Existe um laço entre Giovanni e sua mãe do qual Primo é excluído. Quando ele se refere aos filhos como monstros, Barbara discorda e insiste que Giovanni fala melhor do que ambos e tem olhos lindos. A primeira carta do filho é para ela, nada para o pai (que, ao ler a carta em voz alta, por sua própria conta inclui uma saudação para ele mesmo no texto). É curioso que Giovanni tenha presenteado o pai com um binóculo em seu aniversário, um instrumento para olhar mais longe Mas o mesmo Giovanni encena seu próprio sumiço (na verdade, Bertolucci não nos dá certeza de nada) da vista de todos e pretendia raptar o pai para conseguir dinheiro para a luta armada. O pai, por sua vez, pretende que o filho esteja realmente morto para que possa utilizar o dinheiro do resgate em seu próprio negócio. Enrico Carocci fala de um Édipo invertido em A Tragédia de um Homem Ridículo.

“(...) A Itália do início dos anos 1980, parece dizer Bertolucci, guiada por pais que continuam [agindo como] filhos, é um enigma cuja solução parece longe de ser encontrada, gerando paradoxos a respeito dos quais é preferível não se perguntar muito, que emergem no oxímoro [(contradição)] do título (no qual se unifica o trágico e o ridículo), e atravessam todo o filme para concluir-se com a última [frase de efeito] em voz off de Primo, como epígrafe: ‘A única coisa que conta é que Giovanni está vivo e bem. A tarefa de descobrir a verdade sobre o enigma de um filho raptado, morto e ressuscitado, o deixo à vocês. Eu prefiro não saber’” (6)



 Quando sugeriu que “os filhos de hoje são monstros”, 
Primo/Bertolucci   está  citando  Pier  Paolo  Pasolini


Em meados da década de 1980, o terrorismo perde força na Itália. As Brigadas Vermelhas realizam ainda algumas ações e a extrema direita explode uma bomba na estação de trens de Bolonha com um resultado catastrófico. Com A Tragédia de um Homem Ridículo, de 1981, Bertolucci procurou se aproximar do fenômeno da luta armada naquele país. Christian Uva considera que o filme carrega uma das definições mais sugestivas da figura dos terroristas (proletários em apneia sob a superfície líquida da história”). Ainda de acordo com Uva, o filme constitui um ponto de vista interessante a respeito da Itália do final dos anos de chumbo e da simultânea consolidação do sistema de poder democrata-cristão. Primo Spaggiari, o ex-partigiano industrial dos laticínios de Parma simboliza, entre outras coisas, o empreendedorismo da região da Emilia-Romagna, ligada ao PCI (Partido Comunista Italiano). Ao dizer que “os filhos de hoje são monstros”, Primo faz uma citação de Pier Paolo Pasolini e faz referência direta à fisionomia dos terroristas: “filhos” que se tornaram “monstros” insondáveis, cindidos internamente por um desejo de pedir ajuda e, ao mesmo tempo disparar com uma arma em seus país. A principal novidade de A Tragédia de um Homem Ridículo é que, pela primeira vez, a figura paterna se torna o protagonista do filme e o ponto de vista vem filtrado através de seu olhar (7).

“Mais do que uma análise da temporada de luta armada, em A Tragédia de um Homem Ridículo emerge, portanto, aquele ‘depois da revolução (fracassada)’ no qual domina o mal-estar de uma época, o conflito de gerações, o impasse diante de uma realidade indistinta e nevoenta, cuja mutação os olhos do protagonista e, ao mesmo tempo, também do cineasta, não são mais capazes de captar” (8)

“Eu Prefiro Não Saber”


Primo é produto do empreendedorismo da Emília-Romagna comunista


Quando Giovanni reaparece, Primo o encontra dançando com a mãe e está com um dos pés descalço (ele havia perdido o sapato durante o sequestro). Tonetti nos lembra que o significado do nome “Édipo” é “pés inchados”. A rivalidade entre pai e filho é recíproca. Primo interpretou como uma vingança o fato de que Giovanni havia planejado sequestrá-lo. Então Primo transa com a namorada do filho e, a seguir, com a mãe dele na cama do filho. Na cena final, o reencontro entre pai e filho, ambos não demonstram alegria. O foco nos dois rostos barbados e um beijo na bochecha (na Itália, o costume são dois) repete a iconografia de Judas traindo Jesus. Bertolucci custou para escolher este final dentre várias opções que havia filmado. Um final ambíguo, no qual Primo, ao dizer “eu prefiro não saber”, se projeta como um cego, como Édipo, à verdade. Para Tonetti, a corrida de Primo para buscar champanhe com o objetivo de festejar o retorno do filho é o equivalente moderno das palavras finais do Édipo de Sófocles: “Eu concluo que está tudo bem” (9).

“Quando uma declaração encorajante conclui uma tragédia, como as palavras pronunciadas por Édipo, o momento se torna ridículo; o riso se torna uma defesa contra o rompimento da ordem. A ordem de Primo é emboscada durante todo o filme, e não apenas pelo sequestro de seu filho. O acontecimento o força a dar mais atenção às pessoas em volta. Até este momento, para Primo a vida foi difícil, mas clara: ele acreditava naquilo que viu, contou e tocou. Agora, forçado a olhar para além das aparências de um mundo ‘sólido’, ele entra numa atmosfera rarefeita e nebulosa, onde ele tateia continuamente buscando segurança. Pensando em Laura e Adelfo, várias vezes ele se pergunta, ‘Quem são esses dois?’ De fato, são tipos ‘diferentes’. Laura é uma operária comunista prestes a se graduar na faculdade em Ciências Agrárias, e Adelfo é um padre operário. Em resposta aos avanços de Primo, Laura transa com ele e depois diz: ‘Giovanni e eu não fazemos amor muitas vezes’. ‘Algum problema?’, pergunta o pai preocupado. ‘Não é a coisa mais importante’, responde Laura, ‘há muitas coisas a fazer’” (10)



“Acima de tudo, eu queria representar todo
o  mistério  da  juventude  contemporânea”

Bernardo Bertolucci


Primo não compreende muito bem nem Laura nem Adelfo. Na verdade, o próprio Bertolucci teve dificuldade em definir os personagens jovens. Naquela época, o cineasta admitiu que deixou estes personagens indefinidos porque não conhece a juventude muito bem. A situação acabou deixando a relação meio tensa entre os três durante as filmagens, uma vez que não sabiam o que Bertolucci queria deles e muito menos ele próprio. “Acima de tudo, eu queria representar todo o mistério da juventude contemporânea” (11), concluiu o cineasta. Ele disse também que procurou criar um contraponto com a imagem, quanto maior o mistério, mas clara e pura a fotografia. Isso irá evidenciar muitas imperfeições. Os rostos de Laura e Adelfo parecem sujos, os cabelos despenteados, pele maltratada e um modo desleixado de vestir-se. Adelfo mora numa cabana suja onde mistura sua comida com as sobras que dá para os porcos na fábrica de Primo. Os porcos são os únicos que parecem limpos. Laura mal limpa as mãos depois de separar a manteiga na fábrica e Adelfo não parece familiarizado com o garfo. De acordo com Tonetti, tudo isso foi colocado lá por Bertolucci para representar um tempo em que corpos sujos e maus modos significavam rebelião em relação ao modo de vida burguês. Primo, por outro lado, apesar de seu novo estilo de vida burguês confortável, parece manter a possibilidade de afloramento de seu passado camponês. Sem escrúpulos, rapidamente irá utilizar seu filho supostamente morto filho como fertilizante para manter a fábrica funcionando – “Giovanni tem ciúmes de você”, explica Laura a Primo depois de transarem.



 Giovanni, que colabora com a luta armada,
 é mais ligado à mãeuma socialite. Primo, seu
 pai,  é  ignorado,   atitude  que  é  recíproca


Bárbara, por sua vez, é refinada e não tem nada a ver com o mundo de porcos e queijo do marido. Quando Laura esteve na elegante mansão dos pais de Giovanni em busca de notícias, Bárbara se questionou por que motivo o filho nunca falou sobre dela ou a levou até lá. Laura disse que eles preferiam assim, também porque Giovanni tinha vergonha do pai. Bárbara logo disparou que, na verdade, talvez o filho tivesse vergonha dela, Laura. Bárbara fará tudo para ter seu filho de volta, desde consultar uma numeróloga até puxar o saco do coronel Macchi, o policial encarregado do caso. Ele solicita a Primo que lhe mostre o quarto do filho sumido, e o pai parece surpreso, como se Giovanni fosse outra pessoa. Dos livros sobre marxismo e do saco de dormir, Macchi explica que isso é típico do adepto fanático. Macchi corrige Primo quando este diz que nos últimos meses as atividades do filho haviam cessado porque ele foi à Roma. Não, respondeu o coronel, ele esteve fora do país – esta observação também deixa claro que, nos anos de chumbo, a população italiana era monitorada secretamente pelas forças de segurança. Para Adriano Aprà, o filme de Bertolucci é um produto típico daquela época difícil para a sociedade italiana.

A Tragédia de um Homem Ridículo [e] Identificação de uma Mulher [(Identificazione di una Donna, direção Michelangelo Antonioni, 1982)], dão forma a um mal estar,... abandonam qualquer pretensão assertiva, toda estética do ‘efeito especial’ para se concentrar na comunicação que se tornou difícil, às vezes impossível: entre pai e filho, entre amantes, entre mulheres e mulheres. Lá fora existe uma selva de signos, frequentemente excitantes, quase sempre indecifráveis. A introversão aparece como salvação desesperada e toda solução é adiada” (12)


Leia também:


Notas:

1. PRONO, Franco. Bernardo Bertolucci. Il Conformista. Torino: Lindau, 1998.  P. 12.
2. BONDANELLA, Peter. Italian Cinema. From Neorealism to the Present. New York/London: Continuum, 3ª ed., 2008. P. 317.
3. TONETTI, Claretta Micheletti. Bernardo Bertolucci. The Cinema of Ambiguity. New York: Twayne Publishers, 1995. Pp. 191-2.
4. BRUNETTA, Gian Piero. The History of Italian Cinema. A guide to Italian film from its origins to the twenty-first century. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 2009. P. 264.
5. Idem p. 259.
6. CAROCCI, Enrico. Il Terrorismo e la “perdita del centro”. Cineasti italiani di fronte alla catastrofe. In: UVA, Christian. Schermi di Piombo. Il Terrorismo nel Cinema Italiano. Soveria Mannelli, Italia: Rubbettino Editore, 2007. P. 127.
7. UVA, Christian. Schermi di Piombo. Op. Cit., pp. 49-50.
8. Idem, p. 51.
9. TONETTI, Claretta Micheletti. Bernardo Bertolucci. The Cinema of Ambiguity. New York: Twayne Publishers, 1995. Pp. 193-8.
10. Idem, p. 194.
11. Ibidem, p. 195.
12. Ibidem, pp. 198-9.

30 de nov. de 2016

Francesco Rosi e a Investigação dos Indícios


Em Cadáveres Ilustres,  juízes  são  assassinados e  as  ruas
da Itália exalam um cheiro forte de golpe de Estado. O país está
para se tornar uma espécie de apêndice latino-americano (1)

A Itália que não Aparece no Roteiro Turístico

Trilha 1: O Caso Mattei (Il Caso Mattei, 1972): Personagem real, Enrico Mattei (1906-1962) pertencia ao Partido Democrata-Cristão, no poder desde o final da Segunda Guerra Mundial. Foi o fundador e diretor da empresa estatal de petróleo (ENI). Com sua forma de fazer negócio, ameaçou o oligopólio das “sete irmãs” (termo cunhado por Mattei), as empresas multinacionais de petróleo, que controlavam 85% das reservas mundiais. Um belo dia, ele propõe que 75% dos lucros devem permanecer com o país produtor do petróleo. Ilustre cadáver por excelência, Mattei morre em 1962 num misterioso acidente aéreo até hoje sem explicação. (imagem acima, Cadáveres Ilustres)

Trilha 2: Cadáveres Ilustres (Cadaveri Eccellenti, 1976): Misteriosos assassinatos de juízes são investigados pelo inspetor Rogas, homem justo e honesto. Enquanto isso, o país atravessa uma época de instabilidade política e institucional que leva todos para as ruas, a população para protestar e os tanques e soldados para reprimi-la. Convenientemente, as forças da ordem buscam o culpado entre os manifestantes de esquerda. Rogas não morde a isca. No final, o inspetor será assassinado durante um encontro com o secretário do Partido Comunista. Fecha-se o caso afirmando para a opinião pública que o inspetor é o culpado, tendo cometido suicídio imediatamente após matar o político de esquerda. Disseram também que o inspetor havia apresentado um comportamento emocionalmente desequilibrado, pois estava com mania de complô e não confiava em ninguém. Um filme é uma representação metafísica do poder e do caos, transfigurada numa Itália perturbada pela assim chamada “estratégia da tensão” e pelo perigo de golpes de Estado neofascistas (oscilando entre os exemplos grego e chileno), pela Máfia e pelo terrorismo, tanto de esquerda quanto de direita. (imagem abaixo, O Caso Mattei)

Do Caso MatteiCadáveres Ilustres 


“De   O Bandido Giuliano   à   Lucky  Luciano  -  O  Imperador
da   Máfia,  de  O  Caso  Mattei   a   Três  Irmãos   e   Armadilhas
do Poder,  os  filmes de Rosi tratam das redes de poder e controle
na Itália; a Máfiae sua teia de laços econômicos e políticos” (2)

Em 1962, quando Enrico Mattei morreu, Francesco Rosi acabava de estrear seu O Bandido Giuliano (Salvatore Giuliano, 1962). Desde aquela época, o cineasta desejava realizar um filme a respeito deste que era mais um dos mistérios que assombram a república italiana. Apenas dez anos depois Rosi consegue materializar O Caso Mattei, sendo decisiva a publicação em 1970 do livro escrito pelos jornalistas Fulvio Bellini e Alessandro Previdi, L’assassinio di Enrico Mattei (O Assassinato de Enrico Mattei). Na opinião de Anton Giulio Mancino, o mérito deles foi intuir antecipadamente a importância dos elementos indiciários que seriam confirmados apenas trinta anos depois. No início dos anos 2000, com a possibilidade de acesso aos documentos secretos a respeito de Mattei nos arquivos do Departamento de Estado norte-americano, o historiador Nicola Carlo Perrone (Nico Perrone) pesquisou e escreveu o livro Perchè uccisero Enrico Mattei - Petrolio e guerra fredda nel primo grande delitto italiano (2006). Muitas passagens de O Caso Mattei vieram diretamente do livro de Previdi e Bellini, especialmente dos parágrafos Le ultime due ore di vita (As duas últimas horas de vida) e La denuncia di Italo Mattei. O próprio Rosi confessou preocupação com relação à reação das plateias (aparentemente ele estava se referindo ao espectador italiano apenas), já que o filme não faz concessões e fala continuamente de questões políticas e relativas ao petróleo – embora o interesse do público tenha demonstrado até que ponto as questões em torno de Mattei estão abertas e próximas das vidas dos cidadãos italianos (3). (imagem abaixo, Cadáveres Ilustres)


A teoria do complô, a trama dos poderes, a impossibilidade de se opor
ou compreender a conspiração antidemocrática é um tema central nos
anos 1970, dentro e fora da Itália. O suspense policial e político fornece
uma chave para interpretar  a  realidade,  desde   filmes  como  Sbatti il
Mostro in Prima Pagina, de Marco Bellocchio, à Cadáveres Ilustres (4)

Mancino esclarece também que, não apenas para compreender o caso Mattei, mas toda a rede de casos, assim como de “cadáveres ilustres”, naquele momento em que o filme ainda estava nas salas de cinema, é preciso recordar que havia sido lançado o livro de Giorgio Steimetz (pseudônimo de Guglielmo Ragozzino), Questo è Cefis. L’altra faccia dell’onorato Presidente (Este é Cefis. O outro lado do honrado Presidente) – publicado originalmente em 1972, logo sumiu e por decênios não podia ser encontrado, até seu relançamento em 2010. Trata-se da biografia de Eugenio Cefis, sucessor de Mattei na presidência da ENI (Ente Nazionale Idrocarburi, como se chamava naquela época a estatal do petróleo na Itália), publicado pela Agenzia Milano Informazioni (de Guglielmo Ragozzino) – a qual é financiada por Graziamo Verzotto, homem de Mattei e ex-presidente da mineradora estatal na Sicília, suposto informante do jornalista Mauro De Mauro. Rosi utilizou a pesquisa do jornalista, que retraçou os dois últimos dias da vida de Mattei. De Mauro foi morto em setembro de 1970, mais um caso italiano misterioso que vem se somar ao anterior (a morte de Mattei) e ao posterior (a morte de Pier Paolo Pasolini em 1975). O próprio Francesco Rosi confirma a equivalência e concomitância cronológicas entre as fontes jornalísticas e seus filmes. Carlo Lucarelli vai dizer que os partidos políticos protegiam aqueles cineastas/filmes que lhes interessavam e cita Cadáveres Ilustres. Contudo, Rosi afirma que muitos comunistas, não todos, reagiram raivosamente em relação ao filme (5). Quanto a isso, por outro lado, em 1985 o cineasta Michelangelo Antonioni irá se queixar das intervenções da política:

“(...) O cinema nunca interessou nossos políticos. Pelo contrário, ele os assusta; pensam que é apenas uma ferramenta para minar o processo político. Primeiro foram os democrata-cristãos, que pensavam assim por causa do neorrealismo; hoje os socialistas acham que o cinema controlado pelos diretores é perigoso, [...] então tentam destruí-lo. Hoje, na Itália, é praticamente impossível comercializar quaisquer filmes de qualidade” (6)

De qualquer forma, Lucarelli adverte que seria um grande equívoco concluir que nesta mesma Itália de mistérios e escândalos haveria uma ilha de liberdade de expressão:

“Mesmo assim o sistema político não concedia liberdade. Não esqueçamos que havia a censura, os processos, mas também uma luta política mais aberta, então um cineasta sentia-se no direito de dizer certas coisas, possivelmente porque apoiado por uma parte política. Quando Rosi, por exemplo, fazia seus filmes – penso no caso de Cadáveres Ilustres -, estava por trás o PCI [(Partido Comunista Italiano)] pronto para sair em campo no momento em que algo acontecesse. Dos anos 1980 em diante, na ausência de uma verdadeira batalha política, fazer um filme deste tipo seria apenas uma provocação” (7) (imagem abaixo, O Caso Mattei)


(...)  O  cinema  nunca  interessou  nossos  políticos.
Pelo  contrário,  ele  os  assusta; pensam que é apenas
uma ferramenta para minar o processo político (...) 

Michelangelo Antonioni, 1985 (8)

Na altura de 1970, a Itália aparece na foto como o país do descontentamento social, da corrupção desenfreada e da crise das instituições. Em 1976, as Brigadas Vermelhas se reestruturam, passando das mãos de Renato Curcio para as de Mario Moretti. Contudo, segundo Christian Uva, naquele ano o dado relevante para a Itália foi o triunfo do PCI nas eleições de 20 de junho e a sucessiva traição: pela primeira vez desde 1947 o PCI não vota contra o governo democrata-cristão, levando os comunistas a alcançar a maioria em 1978, embora sem participar do governo – não por acaso, neste ano as BR sequestraram Aldo Moro, o líder democrata-cristão que construiu essa coligação. É também em 1976, continua Uva, que o cinema político volta à vida para fornecer seu ponto de visto a respeito do estado das coisas. É o caso de Juízo Final (Todo Modo), realizado por Elio Petri, e Cadáveres Ilustres, realizado por Francesco Rosi, duas obras distintas em estilo e ponto de vista sobre a realidade, embora derivadas do mesmo escritor, Leonardo Sciascia. Petri adota uma abordagem voltada ao estilo grotesco, mas o contexto colocado em cena é bem identificável. No caso de Rosi, a maioria dos nomes tem um vago som espanhol e os acontecimentos estão ligados por uma estranha metafísica do poder. As ruas exalam indícios de golpe de Estado. Nas palavras de Maurizio Fantoni Minnella, poucos percebiam que o país estava prestes a se tornar uma espécie de apêndice latino-americano. Cadáveres Ilustres não dá respostas claras, com exceção de uma frase no final: “a verdade não é sempre revolucionária”. Minnella pergunta a Rosi: qual o significado de falar em revolução nos anos 1970? (9)

“‘O convite para a verdade’, presente no filme, é compreendido como garantia da autoridade moral, da capacidade potencial de uma clara e decisiva intervenção sobre o tecido corrompido da sociedade, que, naquela ocasião, muitos italianos reconheciam no Partido Comunista. Este é o sentido da ‘advertência’ contida no final do livro de Leonardo Sciascia e no final do filme. A versão oficial do assassinato do secretário do Partido Comunista Amar pelo inspetor de polícia Rogas [que teria enlouquecido] (no filme se vê que ambos foram mortos por um assassino desconhecido) será aceita por um funcionário do Partido, [supostamente] para evitar provocar a praça [cheia de manifestantes, e] invadida por tanques. À opinião contrária expressa pelo jornalista comunista [que duvida que Rogas fosse capaz disso], o funcionário, seu amigo, opõe a frase: ‘A verdade nem sempre é revolucionária’. São as duas almas do Partido, a revolucionária e a reformista” (10) (imagem abaixo, Cadáveres Ilustres)


“Em minha opinião - afirmava o próprio Rosi com lucidez
quase profética -, nossa geração denunciou tanto, que a denúncia
pode até assumir o valor de um álibi no qual esconder-se”

Francesco Rosi,
citado por Maurizio F. Minnella (11)

Na opinião de Christian Uva, o que é notável em Cadáveres Ilustres é a contextualização da luta armada, tanto de esquerda quanto de direita, num quadro onde a magistratura, pelo menos a mais reacionária, torna-se a expressão de uma ação terrorista voltada para o enfrentamento do perigo representado pela subversão política: alguns juízes falam da necessidade de “dizimar” uma pessoa a cada cinco, independentemente do grau de consciência, como numa ação de guerra. Desta forma, Rosi delineia uma fábula sobre a estratégia da tensão. O cineasta demonstra saber colher o eco sinistro da história, que ressoa também em Juízo Final, de Petri, no qual outros “cadáveres ilustres” dão vida a uma dança macabra e antecipa profeticamente o caso do sequestro e assassinato de Aldo Moro. Em 1975, no momento em que o filme estava sendo rodado, as Brigadas Vermelhas começam a considerar a possibilidade de sequestrar personalidades políticas, seja Moro, Giulio Andreotti ou Amintore Fanfani, como parte de seu ataque ao “coração do Estado”. Com o assassinato em 8 de junho de 1976 do Procurador Geral Francesco Coco e sua escolta em Gênova, as BR cometem um dos primeiros homicídios premeditados. Talvez Minnella tenha melhor definido o cinema de Rosi ao dizer que Cadáveres Ilustres segue uma lógica de desconstrução da realidade sociopolítica. Este filme em particular, alcança tal objetivo através de uma estrutura de suspense (giallo) investigativo (a difícil investigação do inspetor), cuja função é fornecer o elemento de encaixe entre as partes heterogêneas que compõem o quadro de um Estado italiano atormentado por um mal-estar real, embora de difícil compreensão (12). Durante entrevista em 2006, Rosi esclarece sua posição em relação a seu método histórico-investigativo:

“Primeiramente, desperta em mim o desejo de respeitar a História, mas também de produzi-la, porque, se queremos dirigir um filme que tenha credibilidade, é preciso partir, antes de tudo, de uma exigência absoluta de respeito pela verdade dos fatos. A fantasia deve tomar algo emprestado da interpretação da realidade, mas não há necessidade de recorrer a artifícios ou alterar os eventos, os fatos reais, para criar maior credibilidade cinematográfica. A verdade contém tamanha fantasia que não é necessário acrescentar mais, ou manipulá-la. Basta interpretar a História de modo correto. Meu método é o de sempre: colocar o homem no centro. O cinema, os filmes são acontecimentos humanos, e é por isso que minhas obras ainda sobrevivem. Não faço investigações de tipo judicial ou policial, e se intervenho nos fatos com método investigativo é para indagar sobre o homem” (13)  (imagem abaixo, O Caso Mattei)

O Contexto dos Cadáveres


(...) O Poder que degrada, que a certa altura corrompe, 
que  se  sobrepõe,  se  apodera  do  indivíduo [...]  sem que tenha
 possibilidade de contrapor sua vontade, mesmo legitimamente, 
mesmo   legalmente,   mesmo   democraticamente (...)

Francesco Rosi a respeito do tema de Cadáveres Ilustres (14)

“Era uma época de cadáveres, complôs, massacres, terrorismo”, é o que diz Rosi ao descrever o contexto que originou Cadáveres Ilustres. Entretanto, o cineasta teve de enfrentar a resistência do produtor, que considerava “cadáver” uma palavra capaz de afastar o público ao invés de atraí-lo. Por sua vez, Rosi considerava a palavra existente no título do livro de Sciascia, Il Contesto, abstrata demais. Rosi insistiu com a palavra “cadáveres”, tanto que o filme se iniciava com a caminhada do Procurador Geral de Palermo por um corredor repleto de múmias de personalidades da cidade (e também alguns indigentes) na cripta dei Cappuccini, em Palermo. A busca continuou até que Nico Naldini teve a ideia de unir “cadáveres” a “ilustres”, já que o assunto era o assassinato de Procuradores e Magistrados. Rosi não aprovou a tradução francesa do título (Cadavres Exquis), que foi escolhida por remeter a certa tradição surrealista. Com relação ao livro de Sciascia, o cineasta disse que era pequeno e ao mesmo tempo extremamente denso, repleto com tudo que era a Itália daqueles tempos (assassinatos de juízes, terrorismo, etc.) e as distorções do Poder. Tema caro a Rosi, o Poder já vinha sendo investigado em seus filmes anteriores. O poder legal e o ilegal, sua relação com o poder criminoso, com a Máfia. O conluio entre o poder das instituições e o poder mafioso (15). (imagem abaixo, Cadáveres Ilustres)


(...) Eu desejava que o público encontrasse a Itália
de   seus  dias.  A  Itália   que   estava   vivendo (...)

Francesco Rosi a respeito de Cadáveres Ilustres (16)

Rosi já havia realizado nove filmes, Cadáveres Ilustres seria o primeiro em que se baseava numa obra literária. O roteiro, escrito em parceria com Tonino Guerra e o jornalista Lino Iannuzzi, foi rapidamente concluído, até porque Rosi desejava ser absolutamente fiel ao livro, até ao nível dos diálogos. Sciascia definiu seu livro como uma paródia, mas Rosi queria fazer um filme realista sobre a realidade social e política italiana, um filme-testemunho (ele não queria inventar uniformes de um país de faz de conta para os oficiais do exército e da polícia), apesar de admitir que seu uso da lente grande angular produzisse uma ambientação metafísica (aonde o cineasta inseria seus personagens extremamente realistas). Rosi conta que muitos comunistas, nem todos, reagiram mal em relação a Cadáveres Ilustres, especialmente em relação à frase do funcionário do PCI no final: “nem sempre a verdade é revolucionária”. O funcionário disse isso para um jornalista comunista que insistia que, em nome da verdade, o Partido não podia aceitar a versão oficial a respeito da morte do inspetor Rogas. Frase esta que, dita por um funcionário do PCI, o próprio Rosi definiu como “extremamente provocativa”. Para o cineasta, bem entendido, a verdade é ou deve ser sempre revolucionária. Seu objetivo foi apontar para as contradições em relação a seus ideais a que uma pessoa pode chegar quando entra para a política (quando acaba se permitindo falar mentiras ou falsidades em nome de uma tática eventual). (imagem abaixo, Cadáveres Ilustres)

Do Erro Judiciário


(...) Quando o juiz celebra a lei, é exatamente como o sacerdote
 que celebra a Missa.  O  juiz   pode  duvidar, questionar ou mesmo, 
 inclusive,   atormentar-se.   Mas  no  momento  em  que  pronuncia 
a    sentença   então    não    mais.   A   justiça   cumpriu-se  (...)

Ao contrário do que se poderia esperar de certos padrões de gêneros narrativos, em Cadáveres Ilustres não se encontra simplesmente o bem contra o mal. Se fosse possível classificar o filme através de um código de cores, pode-se dizer que não se trata de uma obra branca ou preta, mas cinza. A crítica ou voto de desconfiança de Rosi em relação aos comunistas, que ele mesmo admitiu configurar uma provocação, não faz do filme um libelo apenas contra a esquerda, já que a coerência (e até a sanidade mental) dos juízes também será questionada. Aliás, a Justiça em geral será questionada, o que podemos constatar com a fala do chefe de polícia, quando em rede nacional de televisão atribui a culpa dos assassinatos de juízes ao inspetor Rogas, o qual acabava de ser assassinado pelo matador desconhecido de magistrados. Quando Rogas vai ao presidente da Suprema Corte avisar que em sua opinião o jurista será a próxima vítima, o inspetor é recebido com um discurso autoritário delirante. De acordo com Rogas, um farmacêutico que teria sido injustamente condenado por ele irá matá-lo (assim como talvez tenha assassinado os juízes Sanza e Rasto). Contudo, de acordo com o presidente, “erro judiciário” é uma coisa que não existe. Na opinião do presidente: “(...) Quando o juiz celebra a lei, é exatamente como o sacerdote que celebra a Missa. O juiz pode duvidar, questionar ou mesmo, inclusive, atormentar-se. Mas no momento em que pronuncia a sentença, então não mais. A justiça cumpriu-se (...)”. (imagem abaixo, Cadáveres Ilustres)


O inspetor Rogas acabou sendo “removido” porque não estava 
disposto   a   encontrar  “de  qualquer  maneira”   um   culpado 

Para o presidente, a culpa é de Voltaire, o filósofo iluminista francês, em especial seu Tratado sobre a Tolerância (1763). A hipótese do erro judiciário teria começado com ele, insiste o presidente. Segundo seu ponto de vista:

“Ele começou a história do erro judicial. A virtude, a piedade, o inocente condenado pela mão do erro. Que erro? O do juiz, que com uma sentença pode matar impunemente. Voltaire é o primeiro, que semeou dúvidas na justiça. Quando uma religião começa a ter em conta as dúvidas das pessoas, pode-se dizer que já morreu. E assim é como chegamos a Bertrand Russel, Sartre, Marcuse, e a todos os delírios dos jovens de hoje. Então, é tudo culpa de Voltaire. Sim, mas Voltaire tinha uma desculpa. Em seu tempo, não se dava conta do perigo de suas ideias, mas hoje com o advento das massas, o perigo é mortal! Se se continuar assim, a única forma de justiça, será aquela que os militares em guerra, chamam dizimar. Matar como castigo um soldado de cada dez”

Por este motivo condenaram o farmacêutico, para dar o exemplo! A seguir o presidente afirma que o trabalho de Rogas se tornou ridículo, porque não estamos em tempo de paz, mas de guerra (“roubos, sequestros, assassinatos, sabotagens... esta é a guerra!”). E a resposta, em tempo de guerra, é dizimar... Como disse o delegado de polícia em Investigação Sobre um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita (Indagine su un Cittadino al di Sopra di Ogni Sospetto, direção Elio Petri, 1970), “a repressão é nossa vacina!”. Tanto em Investigação quanto em Cadáveres Ilustres, o ambiente da delegacia é minimalista e acético. Longos corredores brancos e janelas de vidro espelhado escondem os primeiros computadores. O chefe de polícia se torna uma espécie de controlador ao estilo de George Orwell, com meios para vasculhar a vida dos cidadãos em seus mínimos detalhes. As interceptações telefônicas e a utilização de microfones tornam-se a nova fronteira do controle social, inclusive para o próprio funcionário do poder judiciário (desde o policial até o juiz, passando pelo delegado), cuja eventual fraqueza ou hesitação podem ser fatais. Na opinião de Nicolò D’Amico, foi justamente por este motivo que o inspetor Rogas foi “removido”, pois não estava disposto a “encontrar de qualquer maneira” um culpado para os assassinatos. Não estão mais em jogo o dinheiro ou a vida das pessoas, mas a manutenção do poder. Não é mais uma questão de encontrar a verdade, mas utilizar-se da política para manipular a realidade, não para encontrar provas, mas para oferecer resultados à opinião pública (17).

O Novelo do Real na Tela Grande 

 

“Existe um cinema de recomposição de determinada realidade
sociopolítica e outro baseado [em sua] decomposição [...]. A esta última
categoria  pertence  uma  obra como Cadáveres Ilustres (...) (18)

Segundo Mancino, os filmes de Francesco Rosi sobre investigações a respeito da corrupção institucional não precisam ser enfileirados cronologicamente para se decifrar os enigmas (que geralmente são complôs contra a cidadania). Cada um deles indica pistas em muitas direções - Cadáveres Ilustres, por exemplo, sugere uma representação global tentacular. Através desse filme, de acordo com Mancino, Rosi se mostra capaz de levar adiante um exame impossível e paradoxal, por assim dizer, no confronto de um tema oculto e ao mesmo tempo vasto, que acaba por remeter aos mesmos personagens da vida real. O inspetor Rogas de Rosi segue uma lógica precisa, coerente, intransigente e irrefutável, mas acaba perdendo o foco das correlações entre os fatos. Para Mancino, Rogas lembra o fotógrafo/detetive de Blow Up. Depois Daquele Beijo (Blow Up, direção Michelangelo Antonioni, 1966), que perde a pista do suposto assassino ao ampliar indefinidamente a imagem da cena, tornando-a indecifrável, irreconhecível, abstrata. Ou ainda como o cineasta protagonista de Identificação de Uma Mulher (Identificazione di Una Donna, também de Antonioni, 1982) que, envolvido numa história policial sem fim, opta por realizar um filme de ficção-científica. Da mesma forma, a representação metafísica da política produz ficção-política, de uma Itália desde os anos 1940 cada vez mais refém de segredos, mistérios, fantasmas. A tendência por apurar a verdade através da busca por indícios é redescoberta no início dos anos 2000, Mancino cita como exemplos Segreti di Stato (direção Paolo Benvenuti, 2003), Bom Dia Noite (Buongiorno Notte, direção Marco Bellocchio, 2003), Gomorra (direção Matteo Garrone, 2008) e O Divo (Il divo - La spettacolare vita di Giulio Andreotti, direção Paolo Sorrentino, 2008) (19). 

“Aspecto que, direta ou indiretamente, nos empurra para Rosi, gostem ou não os autores, ora através da necessidade de configurar a rede das referências (Benvenuti, na sequência das cartas-fotografias que reconstroem a contra história da Itália do pós-guerra até hoje), ora deixando de fora as passagens muito controversas para sugerir a situação insustentável das aquisições oficiais (Bellocchio, a respeito do massacre de via Fani [referência ao sequestro de Aldo Moro] ou sobre as ligações externas perigosas das Brigadas Vermelhas), ora olhando em células individuais da organização criminosa o código do conjunto, as consequências da miséria sobre a economia nacional e internacional (Garrone, no estabelecimento de paralelismos significativos mediante a alternância de episódios emblemáticos), ora, finalmente, admitindo a dificuldade de dizer, senão (d)enunciando, a complexidade do complô (Sorrentino, no diálogo entre [o jornalista Eugenio] Scalfari e [Giulio] Andreotti a respeito da casualidade ou não de cobertura e conveniência de assuntos bem mais complexos)” (20) (imagem abaixo, Cadáveres Ilustres)


Muitos comunistas reagiram mal a Cadáveres Ilustres, em especial
quanto à frase do funcionário do PCI no final: nem sempre a verdade 
 é  revolucionária.  Frase  que  Rosi  define  como  uma  provocação

No que diz respeito ao terrorismo de extrema-esquerda na Itália, muito se pode escrever se fossemos elencar todos os tipos de ações, com especial atenção para as execuções e sequestros (o mais famoso deles foi o sequestro e assassinato de Aldo Moro pelas Brigadas Vermelhas). Contudo, ais ações não diferem em muito do terrorismo de extrema-direita que também ocorria no país e que, assim como o outro, contava com muitos simpatizantes. Vale destacar um elemento pouco comentado nessa colcha de retalhos que era a sociedade italiana durante a década de 1970: o choque de gerações. De acordo com Claretta M. Tonetti, talvez mais chocante do que o terrorismo em si foi a progressiva descoberta de seus perpetradores: muitas vezes os terroristas eram os filhos bem educados e ricos oriundos da mesma construção sociopolítica que pretendiam destruir. Vem à lembrança a crítica de Pasolini aos estudantes esquerdistas que se rebelavam na universidade de Roma em 1968 – eles nunca deixariam de ser burgueses, especialmente porque batiam nos policiais chamados pelo poder para contê-los, esses sim filhos da massa de pobres e explorados pelo sistema, a quem os estudantes pretendiam defender. No que diz respeito àqueles que optaram pela luta armada de esquerda, observa Tonetti, a própria espinha dorsal da sociedade italiana (a família) será minada pela desconfiança e a suspeita.

“Um filme que retrata essa ameaça ardilosa no centro da mais forte instituição italiana é Três Irmãos [(Tre Fratelli, 1981)], de Francesco Rosi. (...) O trabalho de Rosi expõe o conflito ético e ideológico entre três irmãos: um juiz que vive com medo de ser assassinado por terroristas, como foi seu predecessor; um psicólogo; e um operário de indústria revolucionário que enxerga a violência enquanto uma defesa legítima do indivíduo contra o sistema. O conflito dos irmãos, junto pela primeira vez em muitos anos na triste ocasião da morte de sua mãe, alcança maior relevância quando visto contra o pano de fundo dos flashbacks ilustrando  a sensatez e a solidariedade da geração anterior. Contudo, o que mais impressiona neste filme é uma cena passageira na qual vemos o juiz deixando sua casa e pedindo a seu irão Giorgio para tomar conta de sua mãe. Giorgio, que muitas vezes passa suas noites na rua, é totalmente não comunicativo e olhar friamente para seu pai. Considerando a época, não é um exagero conceber que Giorgio pudesse ser o inimigo de seu pai, senão por ser para de um grupo terrorista,então certamente por julgá-lo como uma peça fundamental de uma ordem ideológica odiosa” (21) (imagem abaixo, O Caso Mattei)


 Luchino Visconti e Francesco Rosi representam,  respectivamente, 
a   primeira   e   a   segunda  fases  do  realismo  histórico  e  crítico
no   cinema    moderno;    o    último    também    será    consagrado
como     representante    de    Antonio     Gramsci     nas     telas   (22)
Devido a sua natureza tragicômica e farsesca, não poderia ser outro veículo senão o cinema de gênero a procurar traduzir a situação política e institucional da Itália entre as décadas de 1960 e 1980. É nessa prateleira que encontraremos os únicos exemplos de filmes claramente focados em dois projetos de golpe de Estado (de Giovanni Di Lorenzo em 1964 e Junio Valerio Borghese em 1970), respectivamente Colpo di Stato (Golpe de Estado, direção Luciano Salce, 1968), e Golpe de Estado a Italiana (Vogliamo i Colonnelli, direção Mario Monicelli, 1973). No primeiro caso, em pleno ano de 1968, a sátira política apresenta uma hipotética vitória do Partido Comunista eleição em 1972 como argumento suficiente para levantar o espectro do golpe militar. Para Christian Uva, o filme de Salce é um caso raro de cinema-verdade mascarado de sátira, quando a ficção se alimenta de elementos diretamente retirados da realidade daquela época. Ademais, pouco depois do lançamento do filme aconteceu na Itália uma tentativa de golpe que parecia uma sequência real do exercício cinematográfico de Salce: na madrugada de 7 para 8 de dezembro de 1970 (noite da Imaculada Conceição), militantes de extrema-direita liderados por Junio Valerio Borghese invadem o arsenal do Ministério do Interior, enquanto uma coluna armada de guardas florestais aguarda nas portas de Roma; subitamente, Borghese resolve dar meia volta. Foi o que bastou para que Monicelli rodasse sua própria versão, ao estilo comédia instantânea, da guinada à direita que naquela época levaria à aliança clérico-fascista de movimentos como Maggioranza silenziosa e Amichi delle Forze Armate (Maioria Silenciosa e Amigos das Forças Armadas) (23). (imagem abaixo, Cadáveres Ilustres)


“A  verdade  contém  tamanha  fantasia que não é necessário
acrescentar mais,  ou  manipulá-la. (...) Não faço investigações
de   tipo   judicial   ou   policial,   e   se   intervenho  nos   fatos
com método investigativo é para indagar sobre o homem” (24)

Na Itália, Colpo di Stato foi recebido com indiferença, no exterior foi capa de revistas como Time e France Observateur. Salce recorda que seu filme bateu um pouco em todo mundo, inclusive nos comunistas, porque se permitia dizer que o sistema deles era ficar na janela. Em Golpe de Estado a Italiana, o horizonte cômico é mais marcadamente farsesco. O roteiro foi escrito em 1967, em função do golpe de Estado ocorrido na Grécia naquele ano, onde coronéis do exército instauraram uma ditadura militar anticomunista (que duraria até 1974 e estabeleceria laços com a extrema-direita italiana). Apesar de releitura livre e farsesca do golpe de Borghese, o cineasta o definiu como um filme que enfatiza a vulgaridade, a imprecisão, a incompetência e a ingenuidade dos personagens para que tudo parecesse caricatural e ridículo, ele admitiu se surpreender quando os fatos daquela noite de 1970 emergiram apresentando uma realidade quase tão farsesca quanto seu filme. O cinema italiano continuaria a abordar os massacres que se sucederam no país até 1980. Contudo, os cineastas focaram mais no tema da “estratégia da tensão”, articulando os enredos em torno de mistérios - como ocorre, especialmente, no filme policial: exemplos são A Polícia Agradece (La Polizia Rigrazia, direção Stefano Vanzina, 1972), Milano Trema: la polizia vuole giustizia (Sergio Martino, 1973), La Polizia Acusa: Il Servizio Segreto Uccide (Sergio Martino, 1975), La Polizia Intervene: Ordine di uccidere! (Giuseppe Rosati, 1975), Poliziotti Violenti (Michele Massimo Tarantini, 1976) e, sobretudo, Io ho Paura (direção Damiano Damiani, 1977), onde a presença das imagens da carcaça do trem Italicus (num dos piores atentados na Itália, ocorrido em 1974) ativa a dinâmica entre ficção e não ficção (25) – o filme é uma espécie de versão simplificada de Cadáveres Ilustres (26).

“Não por acaso, apenas um ano antes do filme de Damiani, surge na cena cinematográfica italiana uma obra como Cadáveres Ilustres, no qual Francesco Rosi, buscando inspiração no romance A Trama (Il Contesto, 1971), de Leonardo Sciascia, dá vida àquele que constitui o apólogo político por excelência a respeito da ‘estratégia da tensão’. Trata-se de um afresco kafkiano suspenso entre o sonho e a realidade, onde o cineasta napolitano decide abandonar os módulos do filme de investigação [como] O Bandido Giuliano, mas também o mais próximo O Caso Mattei (única obra cinematográfica centrada na parábola sombria do ‘incômodo’ presidente da ENI, preferindo a estrada da metáfora a respeito da essência metafísica do poder). Aqui, como em Io ho Paura, de Damiani, se explicita no máximo grau aquela impotência diante do mistério [...] de uma ‘inevitabilidade de ter de encarar as mentiras e o jogo sujo dos poderosos’: tanto num caso quanto noutro, nem sequer a morte sacrificial dos protagonistas consegue, efetivamente, ‘indiciar a mão assassina’” (27) 



Leia também:


Notas:

1. UVA, Christian. Schermi di Piombo. Il Terrorismo nel Cinema Italiano. Calábria (?), Itália: Rubbettino, 2007. P. 35.
2. BRUNETTA, Gian Piero. The History of Italian Cinema. A guide to Italian film from its origins to the twenty-first century. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 2009. P. 215.
3. MANCINO, Anton Giulio. L’Affaire Rosi. Il Cinema, L’Italia, Il Deficit di Verità. In: UVA, Christian (a cura di). Strane Storie. Il Cinema e i Misteri d’Italia. Soveria Mannelli, Italia: Rubbettino Editore, 2011. Pp. 40-4.
4. PANVINI, Guido. Il “Senso Perduto”. Il cinema come fonte storica per lo studio del terrorismo italiano. In: UVA, Christian. Schermi di Piombo. Il Terrorismo nel Cinema Italiano. Calábria (?), Itália: Rubbettino, 2007. P. 110.
5. Entrevista de Rosi com curadoria de Tatti Sanguineti no DVD de Cadáveres Ilustres distribuído por CDE – vendita, 2003. (?)
6. ANTONIONI, Michelangelo. Architecture of Vision. Writings and Interviews on Cinema. USA: University of Chicago Press, 1996. P. 240.
7. GELATO, Chiara; UVA, Christian. Conversazioni. In: UVA, Christian. Schermi di Piombo. Op. Cit., p. 242.
8. ANTONIONI, Michelangelo. Op. Cit., p. 240.
9. UVA, Christian. Schermi di Piombo. Op. Cit., pp. 35-6.
10. MINNELLA, Maurizio Fantoni. Non Riconciliati. Política e Società nel Cinema Italiano dal Neorealismo a Oggi. Torino, Itália: UTET Libreria, 2004. P. 362.
11. Idem, p. 146.
12. Ibidem, pp. 160-1.
13. PRUDENZI, Angela; RESEGOTTI, Elisa. Cinema Político Italiano. Anos 60 e 70. São Paulo: Cosac & Naify, 2006. P. 70.
14. Ver nota 5.
15. Idem.
16. Ibidem.
17. D’AMICO, Nicolò. Parola di Sbirro. Storia del comissario di polizia nel cinema italiano. Treviso: Edizioni Antilia, 2004. Pp. 86-7.
18. MINNELLA, Maurizio Fantoni. Op. Cit., p. 160.
19. MANCINO, Anton Giulio. Op. Cit., pp. 47-8.
20. Idem, p. 47.
21. TONETTI, Claretta Micheletti. Bernardo Bertolucci. The Cinema of Ambiguity. New York: Twayne Publishers, 1995. P. 192.
22. ROCHA, Glauber. O Século do Cinema. São Paulo: Cosac Naify, 2006. Pp. 186, 291.
23. UVA, Christian. Schermi di Piombo. Op. Cit., pp. 15-6.
24. PRUDENZI, Angela; RESEGOTTI, Elisa. Op. Cit.
25. UVA, Christian. I Misteri d’Italia nel Cinema. Strategie narrative e trame estetiche tra documento e finzione. In: UVA, Christian (a cura di). Strane Storie. Op. Cit.,pp. 17-8.
26. PERGOLARI, Andrea. La Fisionomia del Terrorismo Nero nel Cinema Poliziesco Italiano degli Anni ’70. In: UVA, Christian. Schermi di Piombo. Op. Cit., p. 169.
27. Idem, p. 18.

31 de out. de 2016

Giuseppe Ferrara e os Banqueiros de Deus


“O verdadeiro poder está nas mãos dos donos da mídia de massa”(1)

Licio Gelli (1919-2015)

 Ultra direita histórico, ligado à Operação Gládio e Mestre Venerável da loja maçônica P2. Associado de 
Roberto Calvi e Michele Sindona, está envolvido nas mortes de  Aldo Moro,  Calvi  e  Papa João Paulo I

Os Fins Justificam os Meios

A partir de 1975, ano em que entrou para a loja maçônica P2, o italiano Roberto Calvi (1920-1982) foi eleito presidente do Ambrosiano, um banco privado católico, cujo principal acionista era a máfia. Chamado pela imprensa de Banqueiro de Deus, em virtude de suas ligações com o Vaticano, está secretamente comprometido com o financiamento de ações anticomunistas/católicas em escala global, especialmente ações ilegais, em particular com os regimes ditatoriais Latino-Americanos - como a relação, a partir de 1976, com Anastasio Somoza, o ditador da Nicarágua (1967-1979), ou a ajuda à Argentina durante a Guerra das Malvinas, em 1982. Com pleno conhecimento do Papa João Paulo II (aquele beatificado em 2011), ou pelo menos do arcebispo Paul Marcinkus (1922-2006) (no comando do Banco do Vaticano entre 1971 e 1989, também era conhecido como Banqueiro de Deus), Calvi financia desde armamentos até, a pedido do próprio Papa, o movimento popular e sindical Solidariedade (Solidarność), que no início década de 1980 começa a incomodar o regime comunista na Polônia (Calvi deixa claro para Marcinkus que não nutre nenhuma simpatia pessoal pelo líder, Lech Wałęsa). A certa altura, Calvi será denunciado e preso – com a prisão do banqueiro Michele Sindona (vulgo “tubarão”, 1920-1986), o comando das finanças da máfia (Cosa Nostra) e da CIA passam para Calvi. Em 1981, sentenciado a quatro anos de prisão e alguns milhões de multa por fraude e lavagem de dinheiro, Calvi está convencido que este não foi um “acaso jurídico”. Em sua opinião, através dele “forças ocultas” pretendem atingir as finanças do Vaticano. Quando o conspirador Flavio Carboni (que veio pedir-lhe cinco bilhões para uma eleição na maçonaria, provavelmente na P2) fica preocupado com uma eventual ruptura entre Calvi e o Vaticano, pergunta se há provas de um complô. A resposta de Calvi: “se houvessem provas, que complô seria?”. 


A bancarrota fraudulenta do Banco Ambrosiano já foi
considerada o maior  escândalo  financeiro  do  século

Na prisão, Calvi revela informações a respeito do financiamento de alguns partidos políticos italianos. Disse também aos juízes que não era o real presidente do Banco Ambrosiano, que apenas estava ao serviço de outros. Através de sua esposa, envia um bilhete ao arcebispo Marcinkus dizendo que seu processo deveria se chamar IOR (Istituto per le opere di religione), que é uma maneira de dizer Banco do Vaticano – criado pelo Papa Pio XII em 1942 para gerir a vultosa soma repassada por Mussolini a título de reparação pelas propriedades incorporadas à Itália quando este reconheceu a Santa Sé como Estado soberano, desde o início o Istituto realiza investimentos sem levar em consideração questões religiosas. Enquanto isso, a polícia encontra uma lista na casa de Licio Gelli, Mestre Venerável da loja maçônica P2 (àquela altura atuando na ilegalidade), onde aparecem Calvi e o Banco Ambrosiano. Em 1982, acionistas e credores exigem explicações de Calvi. Libertado da prisão enquanto aguarda o recurso pendente, descobre que o banco do Vaticano se recusa a ajudá-lo. Temendo pela vida, deixa Roma para se esconder em Londres com o auxílio de Flavio Carboni. Até hoje as explicações a respeito de que aconteceu depois são inconclusivas. Oficialmente, Calvi cometeu suicídio enforcando-se numas das pontes sobre o rio Tâmisa. Em 1983, o caso foi reaberto, mas não se chegou a uma conclusão. Seis anos depois, a corte de Milão concluiu que, tendo sido indiciado, Calvi provavelmente foi assassinado por saber demais sobre a P2 e suas ligações com o banco do Vaticano e a máfia (e talvez também o governo, a CIA e a Opus Dei) – sua morte ocorre três dias antes da instauração do processo de apelação. (imagem abaixo, da direita para a esquerda, Calvi, Marcinkus e o então Papa João Paulo II)

Ferrara e seus Seres Humanos


“Os filmes do diretor Giuseppe Ferrara retratam a história
da Itália no pós-guerra com  notável coerência,  incluindo  uma
série de mistérios sem resolução em torno da máfia, da religião
e   da   política,   tanto   internacional   quanto   italiana (...)

Gian Piero Brunetta (2)

Desde 1991 o cineasta italiano Giuseppe Ferrara (1932–2016) tentava sem sucesso realizar I Banchieri di Dio (2002) - literalmente, Os Banqueiros de Deus. Primeiro recebeu um “não” do empresário, político e produtor cinematográfico Cecchi Gori, assim como do próprio Silvio Berlusconi. Apenas dez anos mais tarde, através do produtor Enzo Gallo e com base no livro homônimo de Mario Almerighi (que também trabalhou como juiz no caso Calvi), que foi possível ultrapassar numerosos problemas de produção, sem falar no bloqueio do financiamento ministerial (o filme foi reconhecido de interesse cultural nacional) pelo Banco Nacional do Trabalho (Banca Nazionale del Lavoro, BNL) e pelo poder judiciário, ultrapassando ainda uma ação movida por Carboni, por considerar I Banchieri di Dio lesivo à sua reputação. Embora tenha declarado que seu cinema busca descobrir aquilo que não conseguem as comissões de inquérito, Ferrara disse também que não pretendia demonstrar que Carboni era o culpado da morte de Calvi, mas evidenciar a ambiguidade deste homem. Por um lado, Ferrara se alinha ao compromisso civil de cineastas italianos como Francesco Rosi e Damiano Damiani, por outro, ao filme instantâneo (instant movie) de um Carlo Lizzani. De acordo com Roberto Curti, o interesse de Ferrara por filmes de crônica não impediu que sempre se cercasse de documentação. Para realizar, por exemplo, O Caso Moro (il Caso Moro, também conhecido no Brasil como Aldo Moro - Herói e Vítima da Democracia, 1986), inspirou-se no livro do escritor norte-americano Robert Katz, Os Dias de Ira. Em I Banchieri di Dio, Ferrara concentra uma massa enorme de informação num fluxo narrativo denso (3).

“A obra de Giuseppe Ferrara pode ser considerada um corpus único, concebido para comentar os erros e impasses da história contemporânea, e seus mistérios. Desde o início, o ex-crítico de Castelfiorentino dedicou-se a investigar a máfia [(Il Sasso in Bocca, 1969; filme que faz referência ao massacre de Portella della Ginestra ocorrido em 1947, muito anterior ao de Piazza Fontana, de 1969, considerado erroneamente por muitos o ponto inicial do terrorismo na Itália do pós-guerra)], a infiltração subversiva da CIA (A História Secreta da CIA, Faccia di Spia, 1975), a morte de Alexandros Panagulis (Panagulis Vive, 1980), o homicídio [de Carlo Alberto] Dalla Chiesa (Morte a Dalla Chiesa, Cento Giorni a Palermo, 1984), o sequestro [de Aldo] Moro (O Caso Moro), até aos anos 1990 e 2000 com filmes a respeito de Giovanni Falcone [(1993)], sobre as escolas de equitação da SISDe [(serviço secreto italiano de espionagem)] (Segreto di Stato, 1995), sobre o caso Calvi/P2 (I Banchieri di Dio)” (4)

Ferrara utiliza atores com fisionomia
próxima aos personagens reais. Para o
papel de Roberto Calvi, chamou Omero Antonutti,   praticamente   idêntico    ao
banqueiro talvez mais  conhecido  por
seu  papel no filme  Pai Patrão (Padre
Padrone, 1977),   dos   irmãos  Taviani

Curti lembra que Ferrara não se afasta de práticas típicas do cinema de gênero. Uma narrativa ambivalente com recurso contínuo ao jogo entre verdadeiro e falso, o documento de época e a reconstituição, material de arquivo e atores parecidos com os personagens reais – sem falar na utilização de cenas brutais e apavorantes típicas, dos filmes Mondo (Mondo Movie, caracterizado por cenas de violência escatológica), como se pode notar em A História Secreta da CIA. Segundo Curti, o ator Omero Antonutti se agarra a sua interpretação de Roberto Calvi com uma empatia dolorosa que lembra o empenho de seu colega Gian Maria Volonté, protagonista em O Caso Moro – de fato, Volonté havia sido a primeira opção de Ferrara para interpretar Calvi. Antonutti consegue assim transmitir a visão do cineasta em relação ao banqueiro: homem ambicioso que acreditou possuir os meios para dominar o poder, mas que acabou sendo queimado por este; a seu modo um ingênuo que não foi capaz de avaliar corretamente onde se meteu. Além de admitir que muitas vezes a caracterização beire à caricatura, mesmo quando figuras importantes são mostradas de costas, como o Primeiro Ministro Democrata-Cristão Giulio Andreotti no filme sobre Giovanni Falcone e Carol Wojtyla, o então Papa João Paulo II, em I Banchieri di Dio (neste caso, no instante que surge na cena, letras grandes enchem a tela para anunciar: “por dever de respeito, o rosto do santo padre não aparece no filme”), Curti explica que o mesmo ocorre em Ferrara no que diz respeito às imagens reconstituídas, que não são muito distintas das imagens de arquivo – lembrar que Ferrara inicia sua carreira dirigindo documentários de história (5); antes de se tornar cineasta, realiza um estudo profundo a respeito de A Terra Treme (onde Visconti, originalmente, pretendia falar sobre Portella della Ginestra), e, em 1965, foi o primeiro a escrever na Itália sobre Francesco Rosi (6).

Imagens e Teorias da Conspiração 


“Antes  de  qualquer  coisa,   o   filme   político   quase   por   definição
deveria ser um instrumento de ação,  capaz  de  influir  no  quadro  de
relações  de  força  através  da  crítica corrosiva ao modo de pensar do
adversário,  através da promoção ativa de ideais ou projetos políticos”

Pietro Ortoleva (7)

Existe uma extensa filmografia da península que gira em torno dos assim chamados “mistérios da Itália” – que alguns chamariam de teorias da conspiração. No caso de Ferrara em particular, por exemplo, Il Sasso in Bocca (1969), traça a relação entre a máfia siciliana, os serviços secretos e multinacionais de origem norte-americana. A tese do filme, expressa a partir da primeira sequência: em certas regiões da Itália, o regime político-econômico neocapitalista, conectado ao poder norte-americano das multinacionais e dos serviços secretos que estão ao seu serviço, se serve da máfia para manter a ordem e a governabilidade – a máfia seria uma espécie de braço armado do capitalismo, de comum acordo com o Vaticano, e os governos norte-americano e italiano. Em Segreti di Stato (2003), o cineasta Paolo Benvenuti reforça a tese de que o massacre de Portella della Ginestra em 1947 foi um recado da CIA para os comunistas italianos – nas eleições italianas o PCI, que contava com ampla maioria, estranhamente perde espaço. Quando o PCI volta a sobressair, no final dos anos 1960, as bombas e os massacres voltam a acontecer. Com A História Secreta da CIA (1975), tudo (golpe contra Allende no Chile, morte de Che Guevara na Bolívia, golpe dos coronéis na Grécia, massacre de Piazza Fontana na Itália, etc.) leva à CIA que, segundo Ferrara, ao contrário de seu objetivo manifesto (proteger o assim chamado “mundo livre”), tem como função proteger os interesses das grandes multinacionais de origem norte-americana (8). I Banchieri di Dio aponta para a máfia e a loja maçônica P2 (Propaganda Due). 


Calvi é citado em  O Poderoso Chefão (III)  como Frederick Kleinszig 
 mesmo  sobrenome  da  namorada de Carboni. Ferrara  é  mais  fiel
 à realidade do que  Coppola quanto ao posicionamento do enforcado. 
Pelo menos do ponto de vista estético, aqui a ficção vence a realidade

Fundada em 1877, alguns se referem à P2 como loja pseudo-maçônica de ultra direita clandestina e, portanto, ilegal, já que a constituição da Itália, reformada em 1976, proíbe associações secretas - na verdade, foi loja maçônica entre 1945 e 1976, passando à ilegalidade de 1976 a 1981. Já foi chamada de “Estado dentro do Estado”, entre seus membros encontram-se nomes importantes como Silvio Berlusconi, talvez o próprio Giulio Andreotti (líder democrata-cristão histórico), e os chefes dos três serviços secretos italianos, além do próprio Calvi – apenas Licio Gelli, Mestre Venerável da loja, conhecia a identidade de todos os membros. Personagem (real) central de I Banchieri di Dio, Roberto Calvi já havia aparecido nas telas em Attenti a quei P2 (direção Pier Francesco Pingitore, 1982), assim como no documentário de Ferrara a respeito da P2 (P2 Story, 1985, uma versão mais longa apareceu na televisão italiana no ano seguinte) (9).

“(...) Os grandes mistérios da história republicana italiana representam para o cinema (no sentido amplo não apenas de ‘objeto’ para a tela grande, mas também de produto de ficção televisiva, de documentário e de vídeo de arte) o campo de uma investigação ampla e articulada nas diversas personalidades, que resultam numa instância extraordinariamente e dramaticamente rica de ‘narrações’ que em alguns momentos atingiram. Motivo pelo qual a intenção dessa primeira operação é aquele de oferecer, seguindo percurso diacrônico em relação aos fatos históricos examinados, um mapeamento do território fílmico no qual se situa uma produção da qual se deseja sublinhar, em todos os níveis, o desejo de cultivar aquilo que Gherardo Colombo definiu como o ‘vício da memória’ e, portanto, a capacidade, de vez em quando, de chegar a um acordo com a realidade ou, para empregar os termos de Marco Dinoi, trabalhar sobre a ‘memória através da imagem’” (10) (imagem abaixo, enquanto o círculo se fecha em torno dele, Calvi pensa numa saída, também pressionado pelo desespero crescente de sua esposa e filha)


“Nunca temendo testar os limites da política,  da  lei, da diplomacia
e da religião, [o cineasta Giuseppe Ferrara] corajosamente recriou e
 reinterpretou os personagens que moldaram a história  italiana (...)

Gian Piero Brunetta (11)

De acordo com Ivelise Perniola, quando se pensa nos grandes mistérios italianos, nas relações obscuras entre a política e o submundo, nas intrigas partidárias, nos massacres, nos atentados contra figuras institucionais importantes, vem à mente um rico aparato iconográfico que se nutre de duas ordens de imagens: 1) a imagem produzida pelo filme-investigação, sempre de natureza ficcional (onde se encaixam filmes como O Bandido Giuliano [Salvatore Giuliano, 1962], de Francesco Rosi, Il Muro di Gomma (1991), de Marco Risi, e I Banchieri di Dio), com rostos conhecidos para encarnar, de tempos em tempos, o campeão do momento em busca de uma justiça e de uma verdade que o poder central quer sempre esconder; 2) a imagem televisiva de matriz jornalística voltada a captação dos momentos em evidência e dramáticos da crônica (como as imagens do funeral do juiz Giovanni Falcone, aquele da operação Mãos Limpas, explodido pela máfia em 1992, ou o desespero dos sobreviventes do massacre na estação ferroviária de Bolonha, explodidos pela extrema-direita em 1980, ambos retransmitidos tantas vezes ao longo dos anos a ponto de sobrepor-se à memória pessoal do espectador e tornar-se memória coletiva e compartilhada de um evento). Perniola ressalta que a relativa ausência de imagens de documentário se deve à carência de registros relativos aos grandes mistérios da política e da sociedade italiana, e não a pouca divulgação ou à falta de memória. A imagem de material de arquivo acabou sendo relegada a um papel secundário em relação ao cinema de ficção, ao qual foi delegada a representação do real. De resto, na Itália, o documentário segue procurando não se tornar o primo pobre do cinema de ficção (12). Já sabemos que Ferrara iniciou sua carreira no documentário, e imagens que simulam documento/documentário são frequentes em I Banchieri di Dio.   


“[Giuseppe Ferrara foi],  a partir dos anos 1970,  um dos mais ativos
 autores  de  filmes  político-indiciários  fundados  em  investigação” 

Anton Giulio Mancino (13)

Outro componente constante nos filmes de Ferrara são as teorias da conspiração. É verdade que geralmente as imagens escolhidas para representar um inimigo político dizem muito mais a respeito dos autores de tais representações do que daquele ou daquilo que se pretende mostrar. No caso de Ferrara, são repetidos os clássicos estereótipos do antiamericanismo. Contudo, os mistérios que emanam da história da república italiana acabaram por produzir uma leitura transversal aos diversos gêneros e linguagens cinematográficas até hoje. Assim, um filme como Investigação Sobre um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita (Indagine su un cittadino al di sopra di ogni sospetto, direção Elio Petri, 1970), lançado na sequência do massacre de Piazza Fontana, assinalou com este a passagem do otimismo dos anos do Milagre Econômico à dramática conscientização do ingresso do país nos anos de forte sectarismo político – personificado por Gian Maria Volontè na pele do policial que abusa do poder e acredita estar acima da lei. Filmes como este anteciparam os resultados das investigações judiciárias que trouxeram à luz o envolvimento das instituições com os executores do massacre. Neste contexto, destacou-se o filão do filme policial – o qual surge no mercado com o declínio do faroeste espaguete, que muitas vezes também foi cinema político. De acordo com Christian Uva, as tramas subversivas, os Serviços Secretos corrompidos, o terrorismo, começam a alimentar os núcleos dramatúrgicos de películas que, ainda que explorando tais elementos visando um produto de consumo, acabam por engendrar uma reavaliação dos fatos (14). (imagem abaixo, cerimônia da loja maçônica P2)


“Procuro descobrir com meu cinema aquilo que não
conseguem realizar as comissões de investigação” (15)

Giuseppe Ferrara

Para Guido Pavini, com essa insistência na leitura do mistério, do invisível e do não dito como os elementos principais da narração, nos arriscamos a admitir a impossibilidade de narrar a realidade. Em A História Secreta da CIA, a narração de Ferrara se enreda numa longa cadeia de mistérios que levam a um único grande complô orquestrado pela CIA, apresentada como expressão de poderes ocultos, incompreensíveis, inacessíveis, representados, na conclusão do filme pela imagem das torres gêmeas do World Trade Center em Nova York, de onde escorre o sangue das populações subjugadas pelo domínio do capital – torres estas que serão demolidas por um ataque terrorista em 2001. Embora a CIA seja apresentada, seu modo de operação é representado como um mistério – lembramos também de Il Sasso in Boca, outro filme de Ferrara a respeito de sua tese sobre a CIA, concentrando-se na atividade desta agência na América Latina, na África, e especialmente no seu papel na “estratégia de tensão” aplicada na Itália durante os anos 1960 e 1970. Por outro lado, conclui Pavini, pode-se chegar à conclusão de que não existe uma verdade, como em I Banchieri di Dio, ainda que este filme seja baseado em documentação disponível. Contradição confirmada pela resposta de Roberto Calvi ao conspirador Flavio Carboni, que não acredita que sua prisão foi casual: “se houvessem provas, que complô seria?” No filme de Ferrara, Flavio Carboni conspira contra Calvi durante a fuga para Londres e aparentemente é o executor da ordem para eliminar o banqueiro – se foi também o mandante, aparentemente não foi o único. Segundo Pavini, é necessário distinguir entre a teoria do complô (o medo de uma conspiração inexistente), do complô propriamente dito, que é um “ato político” rastreável, e que pode ser documentado.

“Karl R. Popper escreveu a respeito de uma ‘teoria social da conspiração’ que dominaria, segundo o filósofo, a esfera pública, incapaz de compreender as forças que agitam o mundo moderno e que nele se confrontam. [De acordo com Alan O’Leary], a representação do mistério nos filmes de cinema reproduzem essa lógica e arrisca deixar o ‘espectador com a sensação de ser vazio ou politicamente impotente. Desta forma, a representação fílmica do massacre de Bolonha em 2 de agosto de 1980 (lembrar, por exemplo, de Ligações Criminosas [Romanzo Criminale, direção de] Michele Placido, 2005), insistindo no ‘caráter aparentemente sem sentido do massacre’, leva o espectador a pensar no atentado como uma calamidade natural. É necessário, no entanto, desafiar o labirinto, segundo uma celebre expressão de Calvino. Ou seja, entrar num território aparentemente hermético e encontrar a saída. Precisamos retornar às grandes narrativas do passado que não excluem o mistério, mas o atravessam até desvelá-lo. Como recordava Francesco Rosi numa entrevista em 1972, ‘é necessária uma análise do poder que faça emergir sua lógica interna, seus tecidos conectivos, a ‘descoberta’ de sua verdadeira face...’” (16)

Leia Também: 

Commissione Parlamentare d’Inchiesta sulla Loggia Massonica P2


Notas:

1. GUARINO, Mario ; RAUGEI Fedora. Gli anni del disonore. Dal 1965 il potere occulto di Licio Gelli e della Loggia P2 tra affari, scandali e stragi. Bari:edizioni Dedalo, 2006. P. 35.
2. BRUNETTA, Gian Piero. The History of Italian Cinema. A Guide to Italian Film From its Origins to the Twenty-first Century. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 2009. P. 226.
3. CURTI, Roberto. Le Mani Legate. Cinema di Genere e Misteri d’Italia. In: UVA, Christian (a cura di). Strane Storie. Il Cinema e i Misteri d’Italia. Soveria Mannelli, Italia: Rubbettino Editore, 2011. Pp. 165-171.
4. Idem, p. 164.
5. BRUNETTA, Gian Piero. Op. Cit., p. 226.
6. MANCINO, Anton Giulio. Il Processo della Verità. Le Radici del Film Politico-Indiziario Italiano. Torino, Italia: Edizioni Kaplan, 2008. P. 254.
7. PERNIOLA, Ivelise. Sono Canzonette. Da Elio Petri a Ligabue: cinema documentario e misteri d’Italia. In: UVA, Christian (a cura di). Strane Storie. Op. Cit.,  p. 150.
8. MINNELLA, Maurizio Fantoni. Non Riconciliati: politica e società nel cinema italiano dal neorealismo a oggi. Torino: UTET Libreria, 2004. Pp. 100, 134, 136.
9. UVA, Christian. I Misteri d’Italia nel Cinema. Strategie narrative e trame estetiche tra documento e finzione. In: UVA, Christian (a cura di). Strane Storie. Op. Cit.,  p. 28.
10. Idem, p. 10.
11. BRUNETTA, Gian Piero. Op. Cit., p. 226-7.
12. PERNIOLA, Ivelise. Sono Canzonette. Da Elio Petri a Ligabue: cinema documentario e misteri d’Italia. In: UVA, Christian (a cura di). Strane Storie. Op. Cit.,  p. 149.
13. MANCINO, Anton Giulio. Op. Cit.,  p. 57.
14. PAVINI, Guido. La Sfida al Labirinto. Narrazzione Cinematográfica e Interpretazione Storica di Fronte al ‘Mistero’ della Violenza In: UVA, Christian (a cura di). Strane Storie. Op. Cit.,  p. 193-4.
15. CURTI, Roberto. Op. Cit.,  p. 171.
16. PAVINI, Guido. 1 Op. Cit.,  p. 95.

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