regionalismo, mesmo na literatura, era considerada
provocação ao governo
Por Que a Burguesia é o Modelo?
Baseado na hipótese razoável de que uma unidade lingüística nacional constitui também força de agregação da identidade nacional, o ditador Benito Mussolini pretendia extirpar os dialetos na Itália. A república surgiu da união de vários reinos, diversidade cultural que se refletia numa quantidade de dialetos. Na época da unificação, coube à burguesia construir o patrimônio da língua – gestão que alguns consideraram incoerente (1). (imagem acima, Amarcord, filme dirigido por Fellini, ambientado na era fascista na Itália)
Mussolini utilizou o cinema e o rádio (a televisão da época) para difundir um idioma que unificasse o país. Um Dia Muito Especial (Una Giornata Particolare, direção Ettore Scola, 1977), ilustra bem a questão (na imagem ao lado, uma mãe e sua tarefa (de) doméstica). O locutor de rádio evita os dialetos durante uma visita de Hitler à Mussolini, em 1938. Mas, numa conversa, a dona de casa com sotaque romano-napolitano e o homem com sotaque do sul são mais naturais. Ele utiliza muito o pronome “lei”, abominado pelos fascistas, como ambíguo, servil e espanhol. Um “italiano popular unitário” vinha se formando desde a Primeira Guerra Mundial (2).
Em 1965, Michele Rago conclui que a construção do idioma a partir da supressão de dialetos é uma questão mais complexa do que parece. De acordo com Pier Paolo Pasolini, a hegemonia burguesa, visando seus próprios interesses, empobreceu a busca de uma identidade nacional (3). Por outro lado, também em 1965, Ítalo Calvino não foi tão pessimista, afirmando que todos os idiomas têm problemas.
Segundo ele, na área da literatura, traduz-se bem para o italiano, que perde ao ser traduzido para outros idiomas. Um problema são idiomas com gírias, posto que o italiano se dirija ao falado, ao popular, ao regionalismo e ao dialeto. No nível da conversação, tudo se torna datado – pois hábitos sempre mudam. Calvino discordou de Pasolini quanto ao status dos dialetos como saúde e a verdade da língua. Mas concordou com o “problema” do idioma italiano médio, como se apresentava na década de 60 (4).
Neo-Realismo no Cinema
O Regionalismo
na raiz do Neo-
Realismo procurava
uma articulação com a urgência de uma nova
Itália no pós-guerra
na raiz do Neo-
Realismo procurava
uma articulação com a urgência de uma nova
Itália no pós-guerra
Embora as tendências regionalistas do pós-guerra na Itália tenham uma conotação antifascista, sua gênese está na glorificação fascista da vida rural. De acordo com Noa Steimatsky, como nenhum estilo foi oficialmente endossado, variantes do modernismo, regionalismos, neoclassicismo, conviviam. Por outro lado, o próprio Steimatsky ressalta que o fascismo procurou domesticar o modernismo e a vanguarda – até certo ponto com sucesso. Frank Snowden identificou a ruralização no discurso do “Dia da Ascensão” de Mussolini (24 de maio de 1927) e no coração da “revolução fascista”. (imagem acima, Amarcord não é um filme neo-realista, mas mostrou como as marcas do fascismo são profundas na cultura italiana; nesta cena vemos Rex, o transatlântico de Mussolini, navengando diante do olhar apaixonado de Gradisca)
“(...) Um notável movimento regionalista foi Strapaese (“Ultra-País”), que coexistia com Stracittà (“Ultra-Cidade”), como temas fascistas em resposta a rápida industrialização e primeira experiência direta de modernidade na Itália das décadas de 20 e 30. O culto regionalista Strapaese postulava a si mesmo como a alternativa italiana pura à tecnologia e a cultura internacionalista e moderna da cidade, que via como anti-italiana e, portanto, antifascista (...)” (5)
Isto explica porque, La Nave Bianca, filme de propaganda fascista dirigido por Roberto Rossellini em 1941, foi um dos momentos em que os dialetos reapareceram – o cineasta queria mostrar as gentes de diferentes partes do país se integrando na Marinha italiana. De fato, o próprio Rossellini afirmou que o Neo-Realismo teve como importantes precursores comédias dialetais da década de 40 do século 20 como c’É Posto, l’Ultima Carrozzella e Campo de’ Fiori. (imagem ao lado, cartaz do filme de Rossellini. O cineasta filmaria também os aviadores e os soldados)
Em 1939, Michelangelo Antonioni publicou um artigo que amarra um pretexto regionalista-documentarista a um imperativo modernista. Movimentos e estilos modernistas, como o “Segundo Futurismo”, art deco e racionalismo entre outros, circularam sob o fascismo. O Neo-Realismo questionou um modernismo fascista, e privilegiou a narrativa realista do regional, do cotidiano. Steimatsky sugere que Antonioni percebeu as falácias realistas e armadilhas sentimentais do que começava a emergir no final dos anos 30 e começo dos 40 como uma agenda pré-neo-realista da “Itália real” – ainda não muito distinta do regionalismo mitológico do regime fascista. Antonioni, já neste momento, articulava sua própria visão neo-realista em termos modernistas (6).
Como se Diz “Eu Sou Italiano?”
Voltando à questão da unidade lingüística, em 1943 Umberto Barbaro defendeu a adoção de certos escritores em detrimento de outros. Intuitivamente, o que ele fez foi instaurar o eixo Nápoles-Roma-Milão como fonte das expressões regionais que enriqueceriam o léxico da língua italiana. Em 1967, Alberto Moravia afirmou que o Neo-Realismo deu a largada para o emprego dos dialetos no pós-guerra. (imagem ao lado, Vítimas da Tormenta, mais um filme que mostra os problemas sociais de um país desestruturado por 20 anos de fascismo e 2 anos de guerra)
Tendo como premissa a representação fidedigna da realidade, para filmes como Vítimas da Tormenta (Sciuscià, direção Vittorio De Sica, 1946) seria totalmente inadequada a linguagem culta, literária e retórica, escrita e falada durante o fascismo. O filme acompanha a vida de crianças de rua que se viram como engraxates em Roma, o dialeto romano utilizado era muito mais apropriado (7).
Vittorio Spinazzola ressentiu-se de que os cineastas italianos tinham mais preocupação com a imagem do que com os diálogos. Exemplo extremo seria Antonioni – por algum motivo, Spinazzola incluiu Federico Fellini nesta categoria. Exceção foram os neo-realistas, Paisà (direção Roberto Rossellini, 1946) como exemplar redescoberta dos dialetos, que vão do siciliano ao vêneto. Paisà poderia ser apenas outro exemplo de revolta contra o italiano médio, instrumento de propaganda do regime fascista. (imagem ao lado, Pão, Amor e Fantasia, o Neo-Realismo Rosa em seu ápice, com direito a elogios à força moral do exército)
Entretanto, Spinazzola acredita que Paisà vai além, alinhando as várias línguas isentas de estrangeirismo numa tensão com as outras línguas faladas no filme, que justamente por isso não foram dubladas, mas legendadas – o alemão dos soldados nazistas e o inglês dos norte-americanos. O extremo disto, como Spinazzola afirmou, foi o caso A Terra Treme. Portanto, pelo menos no campo lingüístico, o Neo-Realismo chegou a um impasse. A saída, Spinazzola sentenciou, foi fugir do problema (8).
Fugir para o Neo-Realismo Rosa, quando um grupo de cineastas misturou realismo social e estrelas do cinema. Segundo Spinazzola, os principais são Due Soldi di Speranza (direção Renato Castellani, 1952), Pão, Amor e Fantasia e Pão, Amor e Ciúme (Pane, Amore e Fantasia e Pane, Amore e Gelosia, direção Luigi Comencini, 1953-54), Pobres mas Belas (Poveri ma Belli, direção Dino Risi, 1957). Houve uma volta do italiano médio, aberto a elementos dialetais. (imagem ao lado, Divórcio à Italiana)
Com sua tendência comercial, ao visar o consenso do público nacional, o Neo-Realismo Rosa serviu-se preferencialmente do dialeto romanesco. Ao que parece, foi o que melhor permitiu evitar uma caracterização hermética demais (como o dialeto dos pescadores de A Terra Treme) e desenterrou um repertório compreensível tanto pelas platéias da periferia e do campo, quanto pela burguesia.
Mas o romanesco acaba cedendo lugar a falas locais (especialmente do norte da Itália: torinês, lombardo, bolonhês, vêneto) na linha cômica – o grande protagonista disso foi o ator Ugo Tognazzi (9). Já num registro dramático, para além do Neo-Realismo Rosa, Rocco e Seus Irmãos (Rocco e i Suoi Fratelli, direção Luchino Visconti, 1960) traz os dialetos lucano e milanês. Em Divórcio à Italiana (Divorzio all’italiana, 1961) e Em Nome da Lei (In Nome della Legge, ambos sob direção Pietro Germi, 1949), o dialeto siciliano, em Pai Patrão (Padre Padrone, direção Irmãos Taviani, 1977), um dos dialetos da Sardenha (10). (imagem ao lado, Paisà)
Amarcord (1973), o famoso filme de Federico Fellini, quer dizer “eu me recordo” (A m’arcord), em dialeto romagnol de Rimini (11). Tufos brancos no ar anunciam o fim do inverno, são as manine, termo do dialeto de Rimini que significa “mãozinhas”, mas aqui se refere às sementes de choupos. A irmã de Gradisca, referindo-se à fogueira na praça, diz que “este ano a fogarazza é um metro e meio mais alta que no ano passado”. Do dialeto local, foga, “calor”, “ardor”, designa a fogueira que festeja a chegada da primavera (12).
Em Pai Patrão (imagem ao lado), um pai opressor impede que o filho se liberte da vida de pastor de ovelhas sem perspectiva - o filme se baseia na biografia do filho. Poderíamos ver uma oposição entre a linguagem do pai (um dialeto da Sardenha) e do filho (já adulto) - que, pela apropriação de novo patrimônio lingüístico e cultural, busca a libertação. Bandidos em Orgosolo (Banditi ad Orgosolo, direção Vittorio De Seta, 1961) também é ambientado na Sardenha, onde existe um dialeto sem relação com as línguas faladas na Itália.
Mariarosaria Fabris preocupa-se com este tipo de interpretação – de resto encampada pelos diretores de Pai Patrão, os irmãos Taviani. De acordo com ela, corre-se o risco de acreditar que o Neo-Realismo sugeriu que dialetos devem ser identificados como o provinciano, antiquado, opressivo e risível na sociedade italiana. Este tipo de filme estaria mais ligado às realizações pós-neo-realistas e à televisão. De qualquer forma, assim procedendo, o cinema acaba por difundir a consciência do caráter regional e social dos dialetos e contribui para a consolidação de uma língua-padrão nacional (13).
Notas:
Artigo publicado originalmente na revista eletrônica dEnsEnrEdoS, nº 5, 2010
Leia também:
A Saga dos Dialetos Italianos no Cinema (II)
1. RAGO, Michele. Língua e Sociedade In Diálogo Com Pasolini. Escritos 1957-1984. Tradução Nordana Benetazzo. São Paulo: Nova Stella/Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro, 1986. O artigo de Rago apareceu inicialmente em Il Contemporaneo, e está datado de 1965. P. 37.
2. FABRIS, Mariarosaria. O Neo-Realismo Cinematográfico Italiano. São Paulo: Edusp, 1996. P. 98n30.
3. RAGO, Michele. Op. Cit., p. 37.
4. CALVINO, Ítalo. O Italiano, Uma Língua Entre as Outras Línguas. In Diálogo Com Pasolini. Escritos 1957-1984. Tradução Nordana Benetazzo. São Paulo: Nova Stella/Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro, 1986. O artigo de Rago apareceu inicialmente em Il Contemporaneo, e está datado de 1965. P. 46.
5. STEIMATSKY, Noa. Italian Locations. Reinhabiting The Past in Postwar Cinema. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2008. Pp. XX e 186n19.
6. Idem, p.1.
7. FABRIS, Mariarosaria. Op. Cit., pp. 98n31, 99n32 e 33.
8. SPINAZZOLA, Vittorio. Língua e Cinema In Diálogo Com Pasolini. Escritos 1957-1984. Tradução Nordana Benetazzo. São Paulo: Nova Stella/Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro, 1986. O artigo de Spinazzola apareceu inicialmente em Il Contemporaneo, e está datado de 1965. P. 66.
9. Idem, pp. 67-8.
10. FABRIS, Mariarosaria. Op. Cit., pp. 73 e 100n34.
11. FELLINI, Federico. Fazer um Filme. Tradução Monica Braga. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 2004. P. 200.
12. CALIL, Carlos Augusto (org.). Fellini Visionário: A Doce Vida; 8 ½; Amarcord. Tradução dos roteiros Hildegard Feist, tradução das entrevistas André Carone e José Marcos Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. Pp. 176, 178 e 280.
13. FABRIS, Mariarosaria. Op. Cit., pp. 73 e 100n34.