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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

31 de jul. de 2017

Antonioni e a Utopia da Compreensão Mútua


(...) Deve ter sido por causa de uma experiência sentimental
minha  que  acabou  de  maneira  inexplicável  (...)

Michelangelo Antonioni (1)

Algumas Mulheres de Antonioni

No começo de O Deserto Vermelho (conhecido também no Brasil como Deserto Rosso - O Dilema de uma Vida, 1964), primeiro filme colorido de Michelangelo Antonioni, uma mãe caminha com seu pequeno filho pela vizinhança poluída de uma fábrica nos arredores da cidade de Ravenna. Na opinião de Marga Cottino-Jones, Giuliana é mais uma que se encaixa fielmente dentre as personagens femininas de Antonioni, mais uma mulher instável, frágil e atormentada. Para Cottino-Jones, ela condensa várias das características típicas daqueles dos filmes anteriores, tornando-a ainda mais complexa. Giuliana é casada, como Lidia em A Noite (La Notte, 1961), e mãe de um garotinho, como Irma em O Grito (Il Grido, 1957). Também está envolvida com dois homens, como Vittoria, em O Eclipse (L’Eclisse, 1962). Como Anna, em A Aventura (L’Avventura, 1960), Giuliana aparece desde o início como uma neurótica que deu um passo além (ao tentar o suicídio). Cottino-Jones considera significativa para a caracterização da personagem a caminhada dela pelo subúrbio industrial de Ravenna, localizada no delta do rio Pó, então o mais famoso (pelo menos para os neorrealistas) e mais poluído rio da Itália, embora admita que naquela época a poluição industrial não chamasse tanto a atenção quanto atualmente. Ugo, o marido de Giuliana, trabalha como engenheiro numa daquelas fábricas e não consegue ou não procura se comunicar com sua esposa. Corrado, seu amigo e amante de Giuliana, parece apenas interessado num encontro sexual com ela (2). (imagem acima, O Deserto Vermelho; abaixo, da esquerda para a direita, A Noite, A Aventura, O Deserto Vermelho, O Eclipse)


(...) Se o filme existencialista perfeito pudesse ser imaginado, 
provavelmente seria uma das obras da trilogia [de Michelangelo]
Antonioni,   ou,   possivelmente,   O  Deserto  Vermelho  (...)” 

Peter Bondanella (3)

No final do filme, a caminhada de Giuliana entre os navios ancorados no cais sujo da mesma região industrial é o momento em que a mulher compreender que deve encontrar força dentro de si mesma para sobreviver. Assim conclui Cottino-Jones, que considera esta uma dura lição para alguém como Giuliana, produto de um sistema tradicional de valores que aprisiona a mulher apenas no papel de esposa-mãe (para o qual sempre se julga incompetente, gerando culpa), único lugar (o marido e o filho) onde deveria procurar uma razão para viver. Giuliana compreende que deve se aceitar como é e encarar as escolhas da vida da melhor maneira, sem dramatizar suas limitações. Como diria Cottino-Jones, Giuliana se reinventa sem abandonar o papel de esposa e mãe. Mudança que a pesquisadora enxerga na sequência final quando de volta ao entorno industrial poluído, mãe e filho agora adotam outra atitude. A atenção do garoto agora não está voltada para poluição, mas para os pássaros que conseguem voar por ali. Sua mãe explica que foi através da experiência que eles aprenderam a sobreviver e a voar em meio aos gases tóxicos. Cottino-Jones conclui que deve ser essa a mensagem de Giuliana (e de Antonioni): evitando os equívocos anteriores, aprendendo a partir das experiências dolorosas do passado, resistir e viver uma vida normal e saudável – uma vez que o cineasta pretendia se afastar das técnicas tradicionais de narrativa, nunca fez questão de que os espectadores soubessem mais a respeito da história do que os personagens (4); essa impossibilidade de poder antecipar os acontecimentos sempre irritou muito certo tipo de plateia e de crítico de cinema. 

“O filme termina nesse ponto, então não podemos falar de fechamento narrativo aqui, já que Giuliana não está enquadrada em nenhuma imagem tradicional de feminilidade silenciosa, como a maternal e arrependida Irma de O Grito, a tolerante e maternal Claudia de A Aventura, ou a sexualmente controlada Lidia em A Noite. Pelo contrário, Giuliana encontrou um meio de comunicar a seu próprio filho uma compreensão básica da vida e propor uma visão otimista de como as criaturas podem superar seus problemas confiando em seus sentimentos e aprendendo com suas próprias experiências, por mais perigosas e difíceis que tenham sido. Na galeria de retratos femininos que Antonioni nos ofereceu através de seus muitos filmes, Giuliana parece representar uma imagem particular de mulher potencialmente capaz de resgatar-se do cubículo apertado da dependência dos homens no qual foi obrigada a viver devido a sua condição de esposa e mãe. Em tal papel, ela esperou pela proteção e suporte dos homens de sua vida, seu marido e seu filho, que representam as únicas autoridades de valor na vida de qualquer mulher dominada pelos valores tradicionais. Quando não recebeu de seu marido a proteção e suporte que precisava, foi buscá-los em outro homem, mas novamente prevaleceram a indiferença e a arrogância masculinas. Nestas condições, Giuliana perdeu completamente sua autoestima e se tornou ainda mais neurótica e sua solidão total. Finalmente, ela percebeu que não poderia contar nenhum homem, já que todos são indiferentes a sua situação ou fracos demais e incapazes de compreender ou ajudar. Portanto, no final do filme, Giuliana decide buscar por ajuda dentro de si mesma, e parece ser capaz de encontrar em seu interior uma boa razão para viver. Esse final positivo incomum da história de uma mulher não irá se repetir nos filmes posteriores de Antonioni, como Blow Up, Depois Daquele Beijo (Blow Up, 1966) e Profissão Repórter (Professione: Reporter, 1975), onde os principais personagens femininos da história são mulheres solteiras misteriosas, pouco conhecidas pelos protagonistas masculinos, de quem depende a ação narrativa dos filmes. É como se Antonioni tivesse desistido de focar nos personagens femininos e preferisse cobrí-los com o véu do anonimato e do mistério, como se para evitar apresentá-las novamente em termos de ausência, como Anna em A Aventura ou Vittoria em O Eclipse. Nos anos 1980, contudo, ele irá revelar claramente sua visão tradicional das mulheres como completamente dependentes dos homens, em Identificação de uma Mulher (Identificazione di una Donna, 1982)” (5) (imagem abaixo, Giuliana na periferia de Ferrara, O Deserto Vermelho)

Território Humano


“Hoje  o  mundo  está  ameaçado  [pela]  divisão muito séria entre
 uma ciência total e conscientemente projetada para o futuro e uma
 moralidade  rígida  e  estereotipada,  que  reconhecemos  enquanto
 tal e mesmo assim sustentamos, por covardia e pura preguiça (...)

Michelangelo Antonioni

Trecho  do  texto  lido  pelo  cineasta  durante  a  conferência  de  imprensa
 por ocasião da estreia de A Aventura em Cannes, a 15 de maio de 1960   (6)

Desde quando Antonioni apresentou O Deserto Vermelho, em muitas entrevistas não cansou de afirmar que nunca teve nada contra o progresso, especialmente no sentido industrial do termo. Para desespero dos ecologistas de plantão, o cineasta dizia que olhar para uma fábrica é muito mais estimulante do que para árvores! Observação aparentemente contraditória, já que O Deserto Vermelho parece apresentar (é a conclusão que nove entre dez comentadores reforçam) o lado ruim do progresso - poluição industrial em Ravenna -, e até o contrapõe a cenas de sonho numa praia idílica sem o menor traço da industrialização – exceto, é claro, pelo barco que vemos ao longe e, provavelmente, pelo tecido do biquíni da garota. O Deserto Vermelho também não é uma continuação dos filmes anteriores (especialmente aqueles imediatamente anteriores, que compõem a chamada Trilogia da Incomunicabilidade, na qual alguns comentadores incluem O Deserto Vermelho, formando uma tetralogia). Nos filmes anteriores, explicou o cineasta, sou foco eram os relacionamentos pessoais dos personagens (o meio ambiente no qual vivem aparece indiretamente, a partir de sua psicologia e sentimentos). Em O Deserto Vermelho, concluiu Antonioni, sua ênfase é mais direcionada ao relacionamento entre os personagens e o mundo em torno deles e delas (7). Como explicou na época do lançamento do filme, quando a Itália ainda vivia um boom econômico e industrial que demorou a chegar depois da Segunda Guerra Mundial, Antonioni adotou um discurso desenvolvimentista que deixa transparecer certa ingenuidade:

“Eu não sou contra o progresso. Mas existem pessoas que, por sua natureza, seu verniz moral, entram em guerra com o mundo moderno e não conseguem se adaptar a ele. Portanto, presenciamos uma espécie de processo de seleção natural: aqueles que sobrevivem são os que conseguem conviver com o progresso, enquanto os outros desaparecem, engolidos por suas crises. Porque o progresso é inexorável, como as revoluções. Da mesma forma que algumas pessoas sofrem com uma revolução, existe também um mal estar em relação ao progresso. É a própria vida e não há nada de extraordinário nisso. Eu li em algum lugar que antes de ir para o espaço [em 1961, depois de Yuri Gagarin], [o cosmonauta soviético Gherman] Titov passou o dia caminhando por Moscou com sua esposa, perfeitamente calmo, fazendo milhares de pequenas coisas que nada tinham a ver com a missão que estava para realizar. É uma situação completamente nova: um casal vivendo uma dimensão até então desconhecida da vida.O progresso dificilmente invade a intimidade humana. [Em O Deserto Vermelho,] procurei mostrar personagens que não conseguem se adaptar, porque faz parte deles que essa situação se transforme num drama. Giuliana vive numa profunda crise em função de sua inabilidade de se adaptar ao mundo moderno (...)” (8) (imagem abaixo, a ninfomaníaca e Giovanni, marido de Lidia, A Noite)


“A exploração obsessiva de Antonioni a respeito da sexualidade
[(a doença de Eros)] e do status das mulheres, [em A Noite,] continua
com  a  aparição  da  ninfomaníaca  [ (que  ‘ataca’  Giovanni) ]   (9)

Território humano, esse “mundo industrializado”, que dizem veio para resolver e não para complicar, abriga uma família disfuncional. Como sempre, talvez possamos dizer assim, Antonioni se concentra na mulher. Giuliana é uma esposa em crise, e por mais que Ugo, o marido, possa ser a origem de boa parte dos problemas dela, o cineasta parece ignorá-lo. Antonioni admitiu sua fixação pelas mulheres, a ponto de ignorar os personagens masculinos. As mulheres, disse ele, são muito mais interessantes. O que não significa que Antonioni esteja afirmando que possa existir uma relação ideal entre um homem e uma mulher. Em sua opinião, toda a literatura mundial demonstra que o amor é um conflito. Embora Antonioni tenha admitido durante entrevista à revista Playboy em 1967 conhecer muito pouco a respeito do amor. Também se disse mais ou menos cético em relação ao casamento, e que as relações entre filhos e pais lhe pareciam depressivas. Para Antonioni, o que nos mata é a incapacidade de abandonar velhos hábitos, costumes e atitudes que já não fazem mais sentido (10). Durante retrospectiva de sua obra em 1961 no Centro Sperimentale di Cinematografia de Roma, o cineasta contextualiza a questão a partir da cena final de A Aventura:


“(...) Não sei se você ainda se lembra dele. De um lado da imagem esta o Monte Etna, [na Sicília,] com toda sua brancura e enevoada, do outro uma parede de concreto. A parede corresponde ao homem e, de certa forma, o Monte Etna corresponde à situação da mulher. Portanto, o quadro é dividido exatamente ao meio; uma metade contendo a parede de concreto que representa o lado pessimista, enquanto a outra metade mostrando o Monte Etna representa o lado otimista. Mas realmente não sei se o relacionamento entre essas duas metades vai ou não durar, apesar de ser bem evidente que os dois protagonistas continuarão junto. A mulher definitivamente não irá abandonar o homem; ficará com ele e o perdoará, pois percebe que em certo sentido é um pouco como ele. Porque, se por nenhum outro motivo, a partir do momento que ela suspeita que Anna tenha retornado, fica tão apreensiva, com tanto medo de que ela possa estar de volta e viva, que começa a perder o sentimento de amizade que uma vez teve por Anna, da mesma forma que ele deixou de sentir afeto por Anna e talvez agora esteja deixando de sentir por ela também. Entretanto, o que mais ela pode fazer senão ficar com ele? [...] O que restaria se não houvesse essa sensação mutua de pena, que também é uma fonte de força. Em A Noite, os protagonistas vão um pouco mais longe. Em A Aventura, eles se comunicam apenas através desse mutuo sentimento de piedade; não falam um com o outro. Em A Noite, contudo, conversam entre si, comunicam-se livremente, estão perfeitamente conscientes do que está acontecendo com seu relacionamento. Mas o resultado é o mesmo, não é diferente. O homem se torna hipócrita, se recusa a continuar com a conversa porque sabe muito bem que tudo pode terminar se expressar abertamente seus sentimentos naquele momento. Contudo, até mesmo essa atitude indica um desejo seu de manter o relacionamento, para que então aflore o lado mais otimista dessa situação” (11) (imagens abaixo, retrato de São Jorge na parede do lado que Ugo dorme; Giuliana na “cadeira de Dante”, O Deserto Vermelho)

Ravenna de Antonioni


Ao norte da
 Itália, o  ambiente
 industrial de Ravenna 
 é  somente  um  gatilho. 
Todo   o   problema  é   a
impossibilidade   de   se
 encontrar   o   lado  de
fora dele. Nossa vida
 é  dominada  pela
 indústria (12)

Evidentemente, as referências ao passado cultural da Itália que encontramos em O Deserto Vermelho remetem à época pré-industrial, ou, pelo menos, a um momento da indústria na Itália quando as fábricas possuíam uma escala menor – e cujas cores Antonioni considerava ruins. Mas quando o lugar é Ravenna, existem outros elementos a considerar. Embora fosse natural de Florença, foi naquela cidade que faleceu o poeta Dante Alighieri (1265-1321), autor da célebre A Divina Comédia. Até mesmo a vizinha Ferrara, em O Deserto Vermelho, com seu passado glorioso, será reduzida a prédios brancos de apartamentos para trabalhadores na periferia. Giuliana acompanhou Corrado até lá, onde sem sucesso o engenheiro pretendia convencer um operário a embarcar para seu projeto na Patagônia, América do Sul. Foi nesse momento que o casal atravessou um campo verde em busca do trabalhador (que conheceu Giuliana da clínica onde esteve internada após a tentativa de suicídio), passando pela casa de cor preta até chegar às bizarras torres vermelhas, que se assemelham a dinossauros de metal. Victoria Kirkham chamou atenção para a quantidade de referências históricas presentes aqui e ali que remetem a esse passado de Ravenna. Sabemos que Dante será referenciado diretamente apenas uma vez, quando Ugo explica para Corrado que a loja de Giuliana está na via Alighieri. Do ambiente multicolorido e barulhento da fábrica, passamos à visita de Corrado à loja, na rua cinza, silenciosa e vazia (com exceção do ciclista). A casa de Giuliana apresenta duas outras referências ao passado medieval: a pintura de São Jorge e o Dragão (São Miguel Arcanjo?) na parede acima da cama do casal e, na sala, uma “cadeira de Dante” (referência a Retrato de Seis Poetas Toscanos, Giorgio Vasari, 1544; onde o poeta aparece sentado numa dessas cadeiras) (imagens acima) (13). (imagem abaixo, O Deserto Vermelho)


[Antonioni]  comparou  a  beleza  intrínseca  das  partes
 do computador em 2001, uma Odisseia no Espaço,  de Kubrick, 
com  o  interior  ‘revolto’  de  um  ser  humano: ‘em meus filmes
é o homem que não funciona direito, não as máquinas’” 

Peter Bondanella (14)
Mesmo detritos industriais e montes de escória emanam uma espécie peculiar de beleza. Opinião de Antonioni que Peter Bondanella interpreta como uma ironia, pois Ravenna é o berço de alguns dos mais belos mosaicos bizantinos – portanto, de arte medieval. Para Bondanella, Antonioni descobriu uma nova qualidade de beleza associada a nossa própria cultura (contemporânea), nessa cidade normalmente ligada à arte de um passado pré-industrial. Não resta dúvida, concluiu o pesquisador, de que Antonioni escolheu Ravenna como locação para o filme para enfatizar seu ponto de vista, que durante a década de 1960 do século passado sugeria que a visão romântica da natureza e os códigos fora de moda do homem deveriam dar lugar a uma nova moralidade. Bondanella sugere que O Deserto Vermelho representa um filme ecológico invertido: A neurose de Giuliana não é causada por seu meio ambiente (ou como diriam os marxistas, pelo sistema econômico capitalista operando em Ravenna), sua instabilidade mental advém de sua inabilidade em se adaptar a um mundo repleto de químicos, plásticos, máquinas e micro-ondas – ao contrário de Cottino-Jones, para Bondanella o marido de Giuliana não é um incapaz em relação a ela, mas alguém perfeitamente adaptado ao novo ambiente. Mesmo o sonho de Giuliana com a ilha mágica paradisíaca representa para Antonioni um pesadelo patético romântico em descompasso com o mundo moderno. O sentido da explicação dela para o filho no final, que desejava saber como os pássaros não morrem voando naquele ar poluído, serve para ela também: aprender a adaptar-se a um mundo com DDT, (veneno que, aliás, seria banido do mundo civilizado), poluição do ar, radiação e computadores (15). (imagem abaixo, O Deserto Vermelho)

Os Sentimentos de Antonioni


(...) Sou a favor do progresso, contudo percebo que, em função
da rachadura que causa, também cria problema. Mas isso é a vida
 moderna,  e  o  futuro  já  está  quase  batendo  a  nossa  porta” 

Michelangelo Antonioni,

Semanário Humanité Dimanche, 23 de setembro de 1964 (16) 

O problema não é a angústia e a incapacidade de comunicar, mas a incapacidade de adaptação aos novos tempos: a sociedade se modernizou tecnologicamente, entretanto as pessoas continuam a se dirigir em função de uma moral ultrapassada. Talvez indo além da postura feminista de Marga Cottino-Jones, Antonioni resumiu a questão em outros termos, durante a conferência de imprensa por ocasião da estreia de A Aventura em Cannes, em 1960:

“(...) Apesar de sabermos que antigos códigos de moralidade estão decrépitos e não são mais sustentáveis persistimos, com um sentido de perversidade que eu com ironia só poderia definir como patético, e permanecermos fieis a eles. Sendo assim, o homem moral, que não teme o desconhecido científico, está atualmente com medo do desconhecido moral. A partir desse ponto de medo e frustração, tal aventura só pode terminar num impasse [num beco sem saída]” (17)

Comentando a respeito de O Deserto Vermelho, Antonioni afirma que o robô de brinquedo poderá ajudar o filho de Giuliana a melhor adaptar-se ao futuro que tem pela frente. Crise do casal burguês sim, porém este não é o tema principal, apenas a forma através da qual Antonioni nos mostra o tema. A crise e a angústia do casal burguês são um efeito colateral da inadequação deste aos novos tempos. O tema é esta inadequação e não a crise que ela acarreta. Como os casais burgueses e sua crise são os elementos mais perceptíveis, neste cinema que não é de entretenimento, e, portanto, não é de tão fácil compreensão, acabaram sendo interpretados como o sentido profundo do objetivo de Antonioni, quando é apenas seu sentido superficial. É por este motivo que Antonioni disse preferir o cenário industrial ao invés de filmar a natureza. Não é que ele fosse antiecológico, a favor da poluição. Sua opção se dá apenas porque o Homem está presente no primeiro caso. Se esses homens e mulheres não se adaptam corretamente ao meio industrial por estarem ainda atrelados a ideologias ultrapassadas, então temos um problema: não conseguem repensar suas relações sexuais e afetivas à luz dos novos tempos. Como explicou a François Maurin, do Humanité Dimanche em setembro de 1964, talvez esteja faltando apenas cavar um pouco a superfície:

“Em O Deserto Vermelho, queria destacar mais o relacionamento entre os personagens e o mundo em torno deles. Eu tentei, portanto, redescobrir traços de antigos sentimentos humanos atualmente enterrados sob uma bagunça de convenções, gestos, e ritmos que equivalem a substitutos; e sob um jargão conciliatório de ‘relações públicas’ que esconde nossos verdadeiros sentimentos. É quase como ser um arqueólogo, cavando através do material seco e árido da era moderna. Se esse tipo de ‘escavação’ mostra com mais clareza em O Deserto Vermelho, é também porque nosso mundo está vagarosamente se tornando mais fácil de estudar” (18) (Ugo demonstra o giroscópio para o filho, O Deserto Vermelho)


Giuliana  nasceu  fora  de  seu  tempo, ou apenas  está  em  desalinho
com suas novas circunstâncias? Seu marido Ugo está tão ajustado que
mostra ao filho um giroscópio (o próprio modelo da estabilidade) (19)

A doença de Eros acontece também em função disso. Como o homem não consegue se relacionar de forma autentica com seu meio ambiente atual (industrial), refugia-se em códigos morais ultrapassados e frequentemente responde a tudo em termos eróticos, supondo que poderá encontrar no sexo ou amor uma resposta para esse dilema moral (20). A compulsão do erotismo para suprir a falta de novos objetivos gera uma frustração generalizada. Autoconhecimento e autoconsciência também serão substitutos insuficientes da moral ultrapassada. Bondanella explica que cada encontro emocional deveria, na verdade, dar origem a um novo potencial a uma nova aventura – daí o título do filme de Antonioni tão hostilizado na estreia em Cannes: A Aventura. Os personagens deste filme sofrem de um tipo especial de tédio existencial, que o escritor Alberto Moravia descreveu em Vidas Vazias (La Noia), lançado também em 1960.

“...Tédio não é o contrário de diversão... para mim tédio é um tipo de insuficiência, ou inadequação, ou ausência de realidade. ... Para mim sentimento de tédio tem origem num sentido do absurdo de uma realidade que é insuficiente, ou de alguma forma incapaz, para me convencer de sua própria existência efetiva... deste exato absurdo surge o tédio, o qual depois que tudo já foi dito e feito é simplesmente um tipo de incomunicabilidade e a incapacidade de alguém se desligar disso” (21) (imagem abaixo, sonho idílico de Giuliana, que Antonioni considerava um pesadelo patético romântico, O Deserto Vermelho)


 “O gênio de Antonioni não está em utilizar  [os temas do tédio, 
incomunicabilidade e doença de Eros], lugar comum na literatura
 dos anos do pós-guerra, mas apresentá-los com imagens belas”

Peter Bondanella (22)

Bondanella lembra que tanto Antonioni quanto Moravia encaravam a sexualidade como uma maneira de estabelecer relacionamento com a realidade. Nesse contexto, o ato sexual se torna algo maior, mais misterioso e mais complexo do que o amor, especialmente se este é interpretado como o simples relacionamento físico-sentimental entre as pessoas – como Moravia sustenta em O Homem Como Fim, 1964. Quando a sexualidade falha enquanto meio de comunicação e entrega apenas alívio físico, então Eros está doente. Nas palavras de Antonioni em 1960:

“O erotismo que domina hoje em dia é um sintoma da doença dos sentimentos. Não seríamos eróticos, quer dizer, doentes de Eros, se Eros estivesse são, ou melhor, justo e apropriado à natureza e à condição do homem. A catástrofe de A Aventura é uma impulsão erótica desse gênero: infeliz, mesquinha e inútil. A conclusão a que chegam meus personagens não é a anarquia sentimental; eles podem, na pior das hipóteses, chegar a uma forma de compreensão mútua. O que nos resta a fazer se nós não conseguimos ser diferentes?” (23)

Durante uma entrevista em 1964 para L’Europeo, Antonioni disse que O Deserto Vermelho era seu filme menos autobiográfico. A não ser, o cineasta completou, que se leve em consideração ima conexão entre o interesse dele nas cores e a pesquisa de cores que realizou através deste filme (24). Contudo, no prefácio que redigiu naquele mesmo ano para a edição de seis roteiros de seus filmes (As Amigas, O Grito, A Aventura, A Noite, O Eclipse e O Deserto Vermelho), Antonioni vai um pouco mais adiante.  Termina dizendo que um filme que não for impresso em película não existe (em tempo, isso foi dito muito antes da era digital), insistindo que um roteiro apenas o pressupõe, pois é um texto sem autonomia, que não passa de páginas mortas. Entretanto, antes construir esse desfecho, admitiu...

“(...) Aconteceu de descobrir a doença dos sentimentos antes dos próprios sentimentos. Não sei por que razão me interessei por sentimentos mais do que por outros assuntos mais candentes – como a guerra, fascismo, nossos problemas sociais, nossas vidas naquela época. Não é que fosse indiferente a estes assuntos. Estava dentro deles; os estava vivendo, mesmo que de uma maneira bastante solitária. Deve ter sido por causa de uma experiência sentimental minha que acabou de maneira inexplicável. Eu não podia perguntar a ninguém senão a mim mesmo o ‘por que’ por trás desse final. E esse ‘por que’ juntou-se a todos os outros”, tornando-se um único imensurável ‘por que’, um enorme show tendo a humanidade como protagonista. A humanidade enfrentando o território, a humanidade enfrentando a humanidade” (25)


Leia também:
Notas:

1. ANTONIONI, Michelangelo. “Prefazione”, Sei Film. Le Amiche, Il Grido, L’Avventura, La Notte, L’Eclisse, Deserto Rosso (1964). In: ANTONIONI, M.  Architecture of Vision. Writings and Interviews on Cinema. USA: University of Chicago Press, 1996. P. 65.
2. COTTINO-JONES, Marga. Women, Desire, and Power in Italian Cinema. New York: Palgrave MacMillan, 2010.  Pp. 122-5.
3. BONDANELLA, Peter. Italian Cinema. From Neorealism to the Present. New York/London: Continuum, 3ª Ed., 2008. P. 211.
4. Idem, p. 210.
5. COTTINO-JONES, M. Op. Cit., pp. 124-5.
6. ANTONIONI, M. A Talk with Michelangelo Antonioni on his Work (“La Malattia dei Sentimenti”, Bianco e Nero, 1961). In: ANTONIONI, M.  Architecture of Vision. Op. Cit., p.  32.
7. ANTONIONI, M. Red Desert (Humanité Dimanche, 23 sept, 1964). In: ANTONIONI, M.  Architecture of Vision. Op. Cit., p. 286.
8. Idem, p. 284.
9. BRUNETTE, Peter. The Films of Antonioni. New York: Cambridge University Press, 1998. P. 55.
10. ANTONIONI, M. Apropos Eroticism (Playboy, november, 1967). In: ANTONIONI, M.  Architecture of Vision. Op. Cit., pp. 152-4.
11. Ver nota 6. P. 34-5.
12. ANTONIONI, M. The Night, The Eclipse, The Dawn (Cahiers du Cinéma, November, 1964). In: ANTONIONI, M.  Architecture of Vision. Op. Cit., p. 289.
13. KIRKHAM, Victoria. The Off-Screen Landscape: Dante’s Ravenna and Antonioni’s Red Desert. In: IANNUCCI, Amilcare A. (Ed.). Dante, Cinema & Television. Toronto: University of Toronto Press Incorp., 2004. Pp. 107-27. Pp. 112-8.
14. BONDANELLA, P. Op. Cit., p. 218.
15. Idem, p. 221.
16. Ver nota 7, p. 286.
17. Ver nota 6, p. 34.
18. Ver nota 7, p. 286.
19. POMERANCE, Murray. Michelangelo Red Antonioni Blue: Eight Reflections on Cinema. Berkeley: University of California Press, 2011. P. 90.
20. BONDANELLA, P. Op. Cit., pp. 211-2.
21. Idem, p. 211.
22. Ibidem, p. 212.
23. TASSONE, Aldo. Antonioni. Paris: Flammarion, 2007. Pp. 209-210. Os grifos são meus. Pp. 209-10.
24. ANTONIONI, M. My Desert (“Il Mio Deserto”, L’Europeo, 16 agosto, 1964). In: ANTONIONI, M.  Architecture of Vision. Op. Cit., p. 82.
25. Ver nota 1, p. 65.

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