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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

30 de dez. de 2014

Algumas Mulheres de Fellini em A Doce Vida e Amarcord


A Doce Vida e o Apocalipse Existencial Feminino

O cineasta italiano Federico Fellini pintou um retrato cruel da humanidade que vivia em torno da Via Veneto, na Roma no início da década de 60 do século passado. Em A Doce Vida (La Dolce Vita, 1959) acompanhamos Marcello, o personagem de Marcello Mastroianni, em sua vida à deriva num universo ao qual não se sente ligado, porém sem o qual não saberia mais viver. Dos muitos elementos que merecem atenção, um capítulo a parte são as mulheres de Marcello ou, talvez seja melhor dizer, as mulheres de Fellini. Neste filme, três delas se destacam: Maddalena, Emma e Sylvia (imagem acima, Mastroianni e Anita Ekberg, Sylvia, na famosa sequência da Fontana di Trevi, em A Doce Vida).


A indefinição da bem nascida Maddalena seria o efeito colateral de um meio de vida estúpido, que torna as pessoas insensíveis ao prazer exatamente pelo excesso dele. Não sabe se deseja Marcello. Ela quer ser prostituta, mas também quer um “amor normal”. Maddalena quer se casar com Marcello, mas não pretende abrir mão dos outros encontros sexuais (imagem acima, à direita, Maddalena se declara a Marcello enquanto perambulam numa espécie de labirinto; à esquerda, nos delírios de Guido, em Fellini 8 ½, sua esposa é uma faxineira prestativa e conciliadora que limpa e alimenta a todo o harém dele, completo com suas babás-prostitutas-amantes-fetiches). Maddalena quer ser ela mesma, mas não sabe onde se procurar. Em graus variados, Maddalena, Sylvia e Emma (e Marcello e os outros homens e mulheres do filme) apresentam as mesmas características. Na cena final, quando Marcello está na praia e percebe aquela menina ao longe acenando para ele, tenta falar com ela, mas não conseguem se comunicar. Uma alegoria da sociedade contemporânea? A menina simbolizaria a pureza que Marcello procura. Mas quando a encontra, não consegue compreendê-la. 


 Poderíamos  imaginar   Emma  como  o  outro  lado
 de Sylvia no caleidoscópio das mulheres de Fellini?

Ao contrário de Maddalena, Emma quer prazer apenas de um homem. Entretanto, esse prazer-atenção-afeto nunca é suficiente. Marcello nunca será capaz de preencher uma falta nela que é tão profunda que impede Emma de enxergar aquele que ela diz que ama - Marcello. Mas Emma prefere tentar o suicídio a vadiar como Maddalena. Atriz famosa e bela, Sylvia flerta com Marcello – que está totalmente tomado de amores. Contudo, no final, Sylvia prefere voltar para o marido bêbado que bate nela - além disso, como Sylvia, ele pertence ao mundo de Hollywood. Marcello, por sua vez, não consegue se decidir por nenhuma delas. No fundo, talvez, queira todas, só que “suas” mulheres estão tão perdidas quanto ele.

 
De fato, o personagem de Marcello Mastroianni em Fellini 8 ½  (Otto e Mezzo, 1963) não apenas delira que possui um harém com todas as mulheres de sua vida (a única que trabalha como faxineira é sua esposa) como incluiu em seus devaneios momentos em que sua esposa confraterniza com sua amante (imagem acima). Em Cidade das Mulheres (Città delle Donne, 1980) o protagonista (também personagem de Mastroianni) nutre o mesmo fetiche de possuir todas as mulheres.  Entretanto, em A Doce Vida Marcello não conseguiria receber afeto de Maddalena-Emma-Sylvia mesmo que tentasse, porque elas já não sabem o que é isso, ou nunca souberam – esse é um mal que aflige tanto mulheres quanto homens. No caso da Itália, e para além de Freud, as raízes de tal confusão existencial-sexual teriam sido bem plantadas anos antes.

Amarcord e a Patologia do Uniforme


Como cresceu na Itália durante a vigência do regime fascista de Benito Mussolini, talvez devêssemos considerar o comentário de Fellini a respeito da repressão sexual então reinante. Evidentemente, sexualmente falando, o mundo dos homens era muito liberal, contanto que todos eles concordassem em casar e ter filhos – os bordéis eram administrados pelo Estado. Às mulheres, restava a liberdade de optarem por serem donas de casa e mães. Considerada questão de saúde pública, o aumento da taxa de natalidade fez da demografia o maior inimigo dos donos de bares, assim como das camisinhas, do aborto e do trabalho feminino fora de casa. Sob a bandeira da luta contra o alcoolismo, Mussolini chegou a fechar 25 mil bares e tavernas. Os homens deveriam procurar outro passatempo debaixo dos lençóis. Todos os métodos contraceptivos foram condenados pelo regime fascista, ao que a Igreja se agradou. (imagem acima, Titta quase sufocando entre os seios da gorda da tabacaria em Amarcord)


Mas como fazer com que as mulheres concordassem em largar os empregos, voltar para casa e assumir os velhos papéis de mãe-esposa-arrumadeira? (1). Os industriais precisavam do trabalho das mulheres, sem esquecer que elas eram mais “maleáveis” porque menos sindicalizadas. Elaboraram-se dois princípios para a política do trabalho na Itália de Mussolini: 1) o Estado deve tutelar as mulheres enquanto mães ou futuras mães; 2) as mulheres devem trabalhar, mas seria melhor se o fizessem em casa (2). No fundo, destacou Sergio Vicini, todo o peso da política demográfica recairá sobre os ombros das mulheres. Em 1929, o programa demográfico fascista é lançado: 1) desestímulo às migrações para o exterior e para as cidades; 2) medidas de estímulo à natalidade; 3) proteção da maternidade e da infância (3).  (imagens acima, Cidade das Mulheres. À esquerda, Snàporaz se diverte com imagens e vozes de mulheres no museu das conquistas femininas do Dr. Xavier Katzone; à direita, sequência do congresso feminista, a encenação mostra uma dona de casa cuidando da cozinha e dos bebês enquanto o marido, caracterizado como um monstruoso Frankenstein, aparece apenas para comer e fazer sexo; no final da encenação, a plateia grita em coro repetindo: "matrimônio, manicômio")

 
Apesar de todo seu excesso compulsivo, Volpina aparenta
ser    a    menos    reprimida   do   ponto   de   vista   sexual

No universo das mulheres de Fellini, Gradisca talvez seja aquela que melhor incorpora o fetiche do homem uniformizado – leia-se, marido-soldado fascista. Uma das cenas mais curiosas de Amarcord (1973) é a reação de Gradisca à passagem do oficial fascista durante um desfile. Como resumiu Peter Bondanella, “Gradisca responde [à visita do líder fascista] exatamente como uma mulher responderia a um amante” (4). Pelo que foi exposto por Vicini e pelo comportamento de Gradisca, não seria difícil acreditar na lenda de que durante os discursos de Mussolini as mulheres deixavam suas roupas íntimas como prova da excitação sexual.  Em certo ponto do filme, um político sugere à Gradisca que “entretenha” um príncipe – supõe-se que isso fará com que ele libere verbas para a cidade. É antológica a cena em que ela, já sob os lençóis, se dirige ao príncipe dizendo “Gradisca”, como quem diz “sirva-se”.

  
Outro momento digno de nota é a histeria de Gradisca durante a passagem do transatlântico de Mussolini (imagem acima; à esquerda, um tímido Titta acaricia a coxa de Gradisca, que pede a ele que pare com isso; ela o despreza tanto que nem briga com o garoto). Caso ainda estivesse vivo e ativo, o estilo anoréxico do corpo feminino na atualidade entraria em choque direto como Fellini. Mulheres gordas são uma constante em sua obra. Em Fellini 8 ½ temos a Saraghina dos delírios de infância do protagonista (imagem abaixo). Em Amarcord, os momentos de Titta com a gorda da tabacaria deixaram o rapaz acamado. Ela o desafia a suspender seu corpanzil, fica excitada e mergulha o rosto do rapaz entre seus enormes seios. Em segundos, a “grande mulher” se recompõe como se nada tivesse acontecido e solta Titta, já quase sufocando. Hilária/esclarecedora é também a sequência onde o tio de Titta, que vive num asilo/manicômio, sobe numa árvore e começa a gritar: “eu quero uma mulher!”. Apenas uma freira anã conseguirá retirá-lo de lá. 


De acordo com Fellini, o Fascismo italiano engendrava uma espécie de “estado regressivo adolescente”, tanto em relação ao comportamento das massas quanto à repressão sexual. O comportamento de Gradisca, cobiçada por todos os homens da cidade, seria o exemplo mais evidente disso. No universo de Amarcord, a ninfomaníaca Volpina talvez seja a menos reprimida. No ambiente sufocante da Itália fascista, onde o líder político maior era também o “pai” e o “grande amante”, teríamos tudo para esperar que o jovem Federico Fellini se transformasse em mais um monstro... machista. As feministas consideravam suas personagens femininas fruto de uma mente machista. Em princípio, essas personagens seriam apenas o retrato de uma época. Retrato pintado por um cineasta que foi casado a vida toda com a mesma mulher.


Exceto por pequenas alterações que não modificam o texto original, Algumas Mulheres de Fellini em A Doce Vida e Amarcord foi originalmente publicado na Revista Universitária do Audiovisual, da Universidade Federal de São Carlos (RUA/UFSCar), São Paulo em 15 de outubro de 2010.

1. VICINI, Sergio. Fasciste. La Vita Delle Donne nel Ventennio Mussoliniano. Milano: Hobby & Work, 2009. Pp. 23-4.
2. Idem, p. 44.
3. Ibidem, p. 27.
4. BONDANELLA, Peter. The Films of Federico Fellini. Cambridge: Cambridge University Press, 2002. P. 132.

30 de nov. de 2014

Roma de Pasolini



 Em 02 de novembro de 1975, Pier Paolo Pasolini 
foi assassinado  em  Ostia,  na periferia de Roma

A Periferia é o Centro

Pier Paolo Pasolini chegou à Roma na década de 50 do século passado e nunca mais a deixou. Entrou naquela cidade pelas entranhas, no caso, a periferia. Pelas favelas cheias da gente pobre que o poder público ignorava (e/ou usava para fins eleitorais). Na verdade, assim que chegaram, ele e sua mãe foram alojados no antigo gueto judeu. Situado entre o Campidoglio, o Largo Argentina e o rio Tibre (Tevere), o bairro permitia a Pasolini vislumbrar áreas adjacentes destruídas por Mussolini em nome da urbanização – e de mais avenidas para desfilar suas tropas. Só posteriormente eles se mudaram para Rebibbia, na periferia miserável. Curiosamente, ao passar do centro para a periferia, Pasolini reproduz o destino dos moradores do centro de Roma que haviam sido deslocados pelos projetos de Mussolini – surgem então os primeiros bairros populares e favelas na periferia de Roma no século XX. Os primeiros poemas de Pasolini sobre Roma ainda não se referem a ela da forma como iremos conhecer posteriormente, embora já se encontrem imagens não urbanas que sugerem suas descrições futuras da periferia como um híbrido entre o sagrado e o profano, o estupendo e o miserável. Especialmente nos quinze poemas de Roma 1950, diário; no penúltimo ele utiliza a palavra “periferias” pela primeira vez (1). (imagem acima, Accattone. Desajuste Social; abaixo, A Ricota)

Pasolini se deixa seduzir pelo mundo da periferia. Ao transferir seu amor pelos camponeses do Friuli para a população das favelas de Roma, começa a surgir aquilo que John David Rhodes chamou de uma “poética da periferia” na obra do poeta e futuro cineasta. A década de 50 avançou e o trabalho de Pasolini foi reconhecido. Os romances Ragazzi di Vita (1955) e Una Vita Violenta (1959), que examinam a sobrevivência nas favelas, tem relação direta respectivamente com Accattone. Desajuste Social (Accattone, 1961) e Mamma Roma (1962) (embora aqui também se possa incluir As Cinzas de Gramsci, de 1957), seus primeiro e segundo longas-metragens – embora não seja uma correspondência literal. Ragazzi se refere à periferia de Roma até ao ponto da minúcia topográfica. Lugares bem na fronteira da expansão urbana da cidade. Essa Roma que está bem longe do Panteão, do Vaticano e da Piazza Farnese, pontos de referência da burguesia provinciana. É claro, sugere Rhodes, ao utilizar um tom zombeteiro, Pasolini assume que os romanos não querem saber de nada disso - o detalhamento das ruas e praças vem para repreender o provincianismo. Como o livro é ambientado no final da ocupação nazista e nos primeiros anos do pós-guerra, a descrição detalhada parece muito pior hoje do que poderia parecer em meados da década de 50.


 A  metáfora   é   clara   na   cena  em  que 
podemos vislumbrar a paisagem da periferia 
atrás da coroa de espinhos em A Ricotta

Em Ragazzi di Vita, Pasolini documenta um mundo que estava fora do “radar” da maioria dos romanos. A Roma de Pasolini não está no centro, era desconhecida pelos turistas e ignorada pela Direita. Na opinião do poeta-cineasta, os conjuntos habitacionais construídos pela Democracia Cristã (Partido de centro-direita que dominou a política italiana de 1948 até princípio dos anos 60) são iguais às borgate rapidissime criadas por Mussolini e seus fascistas. Nos primeiros anos do século passado, quem chegava próximo a Roma de trem ou automóvel (principalmente pelo sul) encontrava pela frente favelas e bairros pobres. Essas áreas eram visíveis também a partir dos muros da cidade velha (a Muralha de Aurélio). Mussolini demoliu as favelas e bairros pobres do centro de Roma e transferiu a população para fora das muralhas. As borgate rapidissime são subúrbios construídos rapidamente para alojar essa população (2). Começa a saga das populações sem dinheiro ou trabalho, alojadas longe demais do centro de Roma. Na década de 60, algumas dessas áreas haviam sido alcançadas pela expansão da cidade.

Falando de Roma Mesmo Quando Não Está lá


Por outro lado, e apesar de amar essa gente, nos últimos anos de sua vida Pasolini se mudou para um bairro burguês. Com uma abreviatura como nome, EUR (Esposizione Universale Roma) havia sido projetado durante a era fascista de Mussolini como a cidade ideal. Quando lhe questionavam porque uma pessoa como ele havia escolhido morar por lá, dizia que era para dar mais conforto para a mãe. Ela poderia cultivar um pequeno jardim e, no horizonte, a paisagem apontava na direção do mar – mais especificamente Ostia, ironicamente o local onde Pasolini seria assassinado. (imagem acima, ruínas do passado romano em meio às plantações e na vizinhança da cidade moderna, Gaviões e Passarinhos)

Embora EUR tivesse sido mostrada no cinema por vários cineastas italianos, pelo menos em seus dois primeiros filmes Pasolini só mostrava a periferia – nessa época ele ainda morava por lá. Durante as filmagens de Teorema (1968), chegou a dizer que foi a única vez que conviveu com burgueses – uma gente que afirmava detestar. Federico Fellini mostrou EUR em As Tentações do Doutor Antônio (Le Tentazioni del Dottor Antonio, segmento de Boccaccio ’70, 1962), Michelangelo Antonioni fez o mesmo em O Eclipse (l’Eclisse, 1964). Nos dois casos, como em Teorema, embora o foco variasse entre os três exemplos, tudo apontava para aspectos da burguesia decadente. Em Accattone. Desajuste Social e Mamma Roma, Pasolini mostraria respectivamente a favela e o conjunto habitacional. A seguir, dirigiria A Ricota (La Ricotta, segmento de Rogopag, 1963), também filmado na periferia de Roma e não muito diferente da visão de Cecafumo em Mamma Roma, embora os prédios estejam bem distantes (3). 

A Ricotta, afirmou John David Rhodes, é uma alegoria do proletariado romano. Stracci, o personagem que morre de verdade na cruz, personifica a morte que ocorre longe dos olhos da burguesia. Em seu próximo filme Pasolini sai de Roma, mas continua mapeando o horizonte da pobreza na Itália. O Evangelho Segundo São Mateus (Il Vangelo Secondo Matteo, 1964) foi filmado em locações no sul do país. Para representar Jerusalém, Pasolini escolheu Matera. Localizada na Basilicata, na época era um dos lugares mais miseráveis do país – em algumas partes as pessoas moraram em cavernas até meados do século passado. (imagem abaixo, Ettore caminhando por uma vizinhança encontrável em qualquer país do chamado Terceiro Mundo. Mas ele está no centro de Roma em 1962. Note-se, no horizonte ao fundo de pelo menos três imagens, o topo branco do Monumento Nacional à Vittorio Emmanuelle, o Altar da Pátria, localizado na Piazza Venezia)


Matera foi evocada nas memórias de Carlo Levi (1902-1945), Cristo Parou em Eboli (1945), um dos monumentos da literatura neorrealista. Levi fora exilado em Matera por ordem do governo fascista, o título do livro foi inspirado numa frase muito repetida por lá. A ideia era que Cristo parou em Eboli porque não queria se aventurar num lugar tão miserável com Matera. Entretanto, de acordo com Rhodes, Pasolini queria deixar claro que o Cristo dele, ao contrário do Cristo neorrealista, iria a Matera. Existe ainda outro elemento de ligação entre Matera e Roma, na mesma época estava em curso um projeto habitacional para a região. La Martella, considerada um marco da arquitetura neorrealista, se tornou um projeto público de habitação tão famoso quanto Tiburtino ou Tuscolano II, na capital do país. Agora Pasolini pensa numa escala global, na periferia de Roma ele enxergava a periferia de todas as cidades daquilo que se chamava então Terceiro Mundo.

De acordo com Angelo Restivo, Federico Fellini apresentou um mapa cognitivo de Roma bastante distinto. A cidade como uma capital internacional de produção de imagens e uma “sociedade do espetáculo” - emergente entre as nações capitalistas emergentes. Restivo se refere ao grande sucesso que foi A Doce Vida (La Doce Vita, 1960), de cuja construção do roteiro Pasolini participaria. Em 1960, os desdobramentos do Milagre Econômico no pós-guerra se fizeram sentir em Roma. Localizada no centro geográfico do país, ressoava a problemática relação entre o norte (industrializado) e o sul (subdesenvolvido), assim como a modernidade e a antiguidade. Problemática esta que é central em A Doce Vida e nos filmes italianos de toda a década de 60. Na opinião de Restivo Roma é, invocando a fórmula de Jacques Lacan, aquilo que “na Itália é mais do que a Itália”. Isso explica porque Roma se manteve como o centro de produção da imagem - a história da cidade substitui a da própria Itália (4).

Muitas cenas de Accattone. Desajuste Social foram filmadas no bairro/favela Gordiani, enquanto Mamma Roma foi filmado no bairro/conjunto habitacional Tuscolano II. Gordiani foi descrito por Pasolini como um campo de concentração. O poeta-cineasta afirmou que a melhor maneira de se compreender o fenômeno do crescimento de Roma é através do olhar. Aparentemente, seu trabalho cinematográfico nasce dessa necessidade. Referindo-se ao cinema italiano de sua época, Pasolini admitiu que se mostrasse a favela. Entretanto, não se tratava da favela real.  O Teto (Il Tetto, direção Vittorio De Sica, 1956) e Noites de Cabíria (La Notte di Cabiria, 1957), por mais realistas que sejam em alguns momentos, no final se rendem ao sentimentalismo. Rhodes acredita que Pasolini não considerou filmes como O Amor na Cidade (Amore in Città, filme em episódios, 1953). Na crítica de Pasolini às representações açucaradas da favela no cinema italiano da década de 50 reside seu confronto com o legado do Neorrealismo (5).

Accattone e a Favela Romana


Pasolini   via   nos  cafetões  e  prostitutas  do   subproletariado
de Roma a mesma pureza dos camponeses do Friuli. Precisamente
 porque todos eles eram excluídos ou ignorados pelo “centro” (6)

As prostitutas entraram no elenco de personagens de Pasolini na década de 50. Foi nessa época que se tornou amigo de Sergio Citti, um garoto de rua que posteriormente se tornaria cineasta. Citti deu a Pasolini uma perspectiva privilegiada em relação à população local, incluindo os cafetões e as prostitutas, cuja linguagem e interação intrigavam ao cineasta-poeta. Os primeiros resultados foram Ragazzi di Vita e Una Vita Violenta. No final da década de 50, Pasolini seria chamado a colaborar numa série de roteiros que tocavam no assunto (7). Foi consultor para as cenas com prostitutas romanas em dois filmes dirigidos por Fellini, Noites de Cabíria e A Doce Vida. Também escreveu o tratamento e o roteiro de A Morte (La Comare Secca, 1962), primeiro filme dirigido por Bernardo Bertolucci – que havia sido assistente de direção no primeiro filme de Pasolini, um ano antes. Esses filmes eram ambientados na periferia de Roma. (imagem acima, cena do delírio do cafetão Accattone)

Accattone. Desajuste Social retrata um aspecto menos conhecido da realidade italiana do pós-guerra, a vida dos subproletários nas borgate (favelas de barracos ou cortiços nas margens de Roma). Pasolini mostra seus assaltantes, cafetões e prostitutas, vivendo o dia-a-dia sem demonstrar nenhum sinal de consciência social ou progresso em relação ao centro da cidade. Quando Accattone consegue passear com Stella, moça pura e pobre, ela não deixa de notar as prostitutas na rua. Então ele comenta que ela parece muito ingênua e sem malícia. Até que pergunta para ela, “você é de Roma?” Quando Stella começa a fazer parte do mundo de Accattone, ele até pensa que vai mudar. Mas não há novo começo. Assim como os novos conjuntos habitacionais na periferia de Roma não se revelaram um novo começo. É nesta hora do filme que Pasolini nos deixa ver os novos prédios construídos rapidamente na década de 50. O casal está literalmente na margem da cidade quando Stella confessa que não é tão santa, pois sabe “como é a vida” (já que é filha de uma prostituta). Antes da confissão dela, Pasolini faz uma panorâmica do caminho que os dois percorrem ao longo das novas construções (8).

De acordo com Maurizio Viano, na década de 60 Accattone. Desajuste Social emergiu da tradição neorrealista italiana no cinema - retratando a pobreza, o desemprego e o desespero social nas vidas das massas no pós-guerra.  Todavia, difere significantemente em termos de estilo e abordagem ao desafiar as leis da plenitude, naturalismo e continuidade que definiam o Neorrealismo na década anterior. O filme de Pasolini, ao contrário, favorece a fragmentação e a visível reconstrução da realidade (9).

Já na sequencia de abertura, Restivo chama atenção para um detalhe pouco comentado. Geralmente se lê a respeito da cena em que Accattone se prepara para mergulhar de uma ponte “com anjos” (10). Em primeiro lugar, Restivo resgata o ponto de vista de Viano, que privilegia uma análise baseada num padrão espacial alto-baixo. Em segundo lugar, esclarece que certamente se trata da Ponte Sant’Angelo adornada com as esculturas feitas por Gian Lorenzo Bernini (1598-1680). A ponte liga a parte baixa da cidade velha e o castelo Sant’Angelo – do qual podemos ver uma pequena parte, de um ângulo de baixo para cima. Na Idade Média, esse castelo serviu como prisão. Antes disso, durante o Império Romano, o imperador Constantino viu a aparição de um anjo. Isso o levou a decretar o Cristianismo como a religião oficial do Império. Além disso, Restivo se esqueceu de citar, entre a ponte e o castelo temos a Via della Conciliazione, uma avenida aberta por Mussolini em comemoração ao tratado entre o Estado italiano e o Vaticano.


Accattone na via Formia, borgata Gordiani, Pinetto. Na parede
se lê: “Queremos uma casa honesta” (Vogliamo una casa civile)

Um lugar tão carregado de sentido logo no início do filme estabelece imediatamente uma imagem dialética tão forte que é capaz de demolir a visão utópica de uma fronteira estável com a imagem da prisão que guarda aquele que ameaçam a ordem. Desfaz-se a polarização espacial, agora a prisão se combina livremente com as imagens da periferia pobre, da favela na periferia romana da década de 60. Restivo reafirma que não se trata de uma oposição, mas de uma “estética da contaminação”. Pasolini não estaria se rendendo ao clichê do bairro pobre da periferia/favela (borgata) como prisão. Queria pensar como e em que sentido a nova geografia urbana (que se estabeleceu primeiro com os planos urbanísticos de Mussolini e depois com o desenvolvimento econômico do pós-guerra) criou uma prisão.

“(...) A interação entre centro e periferia animou o trabalho de Pasolini enquanto cineasta, especialmente em suas primeiras e últimas obras. No princípio dos anos sessenta, quando a máquina do milagre econômico estava correndo a todo vapor, Pasolini podia encontrar na esquálida periferia em torno do centro de Roma a realização espacial das contradições no capitalismo emergente (...)” (11)

Em Roma, Cidade Aberta (Roma Città Aperta, direção Roberto Rossellini, 1945), a primeira cena identifica Roma e a ocupação nazista. No início de Ladrões de Bicicleta (Ladri di Biciclette, direção Vittorio De Sica, 1948), se não sabemos que estamos nas ruas do projeto habitacional fascista Val Melaina, pelo menos reconhecemos a iconografia de um conjunto habitacional de massa. Mas temos dificuldade em nos localizar na primeira cena de Accattone. Desajuste Social. Na opinião de Rhodes, isso acontece porque é a favela! (12) Só sabemos que estamos num lugar da Itália da década de 60 onde a cidade encontra o campo - e o edifício encontra o casebre. Só “encontramos” Roma na sequência seguinte, quando Accattone pula da ponte, ladeado pelos anjos de Bernini e o castelo Sant’Angelo - um lugar, diga-se de passagem, de onde ele e sua turma são excluídos (imagens abaixo, exceto a segunda fotografia no lado inferior à direita, que retrata o acidente que matará Accattone no final do filme). Na época, muitos romanos talvez tenham se lembrado de outros excluídos. Para a construção da Via della Conciliazione houve o deslocamento de milhares de trabalhadores residentes no local há séculos (um projeto que só foi concluído no pós-guerra), sendo empurrados para os bairros populares na periferia. É como se a presença de Accattone ali produzisse uma contaminação entre o presente e o passado.


A sequência em que Accattone tenta arrumar dinheiro com Ascenza (a ex-esposa) foi filmada na borgata Gordiani – embora no roteiro Pasolini se referisse ao lugar apenas como “estrada miserável”. Tempos depois, Accattone e Stella caminham na mesma estrada (via Formia, em Pinetto?) que ele havia caminhado com Ascenza. Na caminhada com a esposa, víamos a periferia pelos cantos da tela enquanto Accattone mentia para ela. Agora, continuamos olhando para os cantos, enquanto Accattone mente para Stella. Logo ela estará “nas ruas” para ele. Nenhum novo começo para Accattone, nem para os conjuntos habitacionais que os circundam. As novas casas dos pobres estão lado a lado com os prédios de luxo, mas a divisão de classes se manteve intacta na Roma do pós-guerra. Na opinião de Rhodes, a caminhada de Accattone com sua esposa resume a situação das pessoas que vivem nas favelas mais afastadas do centro da cidade.

As pessoas são mais definidas pelas distâncias forçadas a percorrer do que por seus empregos – Accattone é um cafetão e não conseguiu trabalhar mais de um dia, sua esposa era lavadora de garrafas. Construída vários quilômetros a sudoeste da estação Termini, Gordiani era totalmente isolada de Roma. Uma das piores borgate rapidissime (13), sua função era alojar a população deslocada da região da Piazza Venezia – pela re-urbanização de Mussolini. Não havia água corrente ou eletricidade. Com trinta anos na época, as construções pareciam ter três vezes essa idade. Na época das filmagens, em 1960, ainda estavam em curso demolições que Pasolini descreveu em seu ensaio, “Os Campos de Concentração” (1958). De acordo com Rhodes, o primeiro filme de Pasolini contém algumas das últimas imagens daquele lugar antes que desaparecesse totalmente – ao que parece, ainda durou até os anos 80. Além disso, naquela época a cidade já havia crescido naquela direção.

A casa de Accattone ficava em Pinetto, uma área a leste do centro de Roma, fora da Via Casilina (numa transversal à Via Ettore Giovenale?). Na cena final, depois de roubar uma motocicleta e sofrer um acidente, ele morre. A batida aconteceu na ponte Testaccio, com o bairro operário homônimo ao fundo (imagem acima, no lado inferior, à direita). Testaccio foi a primeira favela de Roma - sua primeira periferia. Mesmo aqui não há lugar para Accattone. O roubo foi em Testaccio, mas sua morte acontece fora de lá. Antes de morrer, Accattone diz: “Estou bem agora” (“Mo, sto bene”). O filme parece sugerir que apenas a morte traz alívio para as classes inferiores. Se assim é, aqui Pasolini rompe com o otimismo, sentimentalismo e naturalismo do Neorrealismo. Todavia, Rhodes afirma que Pasolini desejava apenas subverter a ideologia do Neorrealismo, mas não sua política.

Mamma Roma e a Política Habitacional


A única cena no centro de Roma mostra Mamma Roma espiando
o filho no emprego de garçom. A ironia está em ver uma personagem
com  o  nome da cidade  reduzida  a  uma  espectadora/consumidora.
Para morar, só mesmo num conjunto habitacional fora da cidade (14)

Embora Accattone. Desajuste Social apresente várias mulheres e até duas mães, não dá muita atenção aos cuidados maternais e não trata de famílias ou gerações. Se o primeiro filme dirigido por Pasolini acompanha a vida dos vadios e prostitutas oprimidas, de maneira a oferecer um vislumbre da sobrevivência diária na Roma do pós-guerra, em seu segundo projeto a maternidade e as diferenças entre as gerações entram em cena – embora a vida dura da Roma do pós-guerra para os desprivilegiados continue a mesma. Mamma Roma, espirituosa prostituta de meia idade sempre com uma risada na ponta da língua, juntou dinheiro e conseguiu se livrar de seu cafetão. Mudou-se para a periferia de Roma e comprou uma barranca na feira. Trouxe consigo o filho Ettore, que ela havia deixado com parentes pobres em Guidonia, fora da capital. As aspirações da mãe por uma mudança de classe social logo entram em choque com o temperamento de Ettore. Ele não consegue se adaptar numa cidade que é muito distante de suas raízes culturais. Acaba assaltante e morre nas mãos da polícia (15).  
Bruna é mãe solteira e rivaliza com Mamma Roma em relação à Ettore. Ela se encaixa no ideal pasoliniano da mãe jovem (madre fanciulla), representando um espaço fora de Roma não muito diferente da terra onde ele foi criado. Não por acaso, Ettore a conhece nos terrenos baldios que circundam o primeiro conjunto habitacional onde foi morar com a mãe. Bruna aprofunda a dicotomia entre a vida de Ettore antes e depois da chegada na vizinhança de Casal Bertone - e posteriormente em Cecafumo, ainda na periferia. O conjunto habitacional Casal Bertone (imagem acima) é descrito como se fosse o inferno: “Casal Bertone se ergue amarelo cinzento contra o céu como a cidade de Dis” (uma referência ao Inferno, de Dante). Uma zona habitacional da classe baixa, Cecafumo é agora considerada parte da área metropolitana de Roma. Em Mamma Roma, Cecafumo representou um passo adiante em relação a Casal Bertone. Miséria e um horizonte cinza caracterizavam a zona, tornando-a de muitas maneiras uma extensão da periferia. Além de Mamma Roma, Casal Bertone também serviu de locação para Os Eternos Desconhecidos (I Soliti Ignoti, direção Mario Monicelli, 1958). Além de Bruna e Mamma Roma existe uma terceira prostituta, Biancofiore.

“As três prostitutas em Mamma Roma representam diferentes níveis de consciência cívica; elas expressam diferentes níveis de interesse ou determinação com respeito à Roma simbólica ou aos ideais burgueses que gradualmente penetram os espaços de vida (projetos habitacionais modernos) e mentes (desejo por bens materiais e melhoria do status social) da maioria das comunidades de classe baixa por volta de 1960. Em outras palavras, essas mulheres personificam o sub-proletariado em vários estágios de assimilação cultural em relação ao padrão dominante [mainstream]. Mamma Roma claramente abraçou a moral ética e material da cultura dominante; Bruna permanece num estado ambíguo de adolescência, mantendo-se enraizada num passado instintivo e sem consciência; e Biancofiore combina os dois, dando e tirando de cada domínio o que precisa, de maneira a viver confortavelmente. De muitas formas, a abordagem de Biancofiore é a mais prática, uma vez que ela não é nem inteiramente limitada por um passado opressivo ou totalmente direcionada para um futuro intangível. Vive aqui e agora, aparte alguns comentários cínicos, ela parece estar relativamente satisfeita” (16)


Com Mamma Roma, Pasolini lança sua crítica aos desdobramentos do Milagre Econômico. Cujos efeitos, materializados nos projetos habitacionais públicos, estavam alcançando as camadas mais baixas da sociedade e engendrando uma mutação pequeno-burguesa. Para Pasolini, isso poderia levar essas pessoas a talvez se tornarem fascistas e conformistas. Inicialmente, Mamma Roma traz Ettore para morar com ela, num bairro de trabalhadores. Ela pede desculpas ao filho pelo tipo de gente que se encontra ali e pelo estado degradado do prédio, insistindo que em breve se mudarão para uma vizinhança “com gente de outra classe” - Mamma Roma está se referindo a Tuscolano II. Neste filme Pasolini repete a cena da caminhada pela via Formia (?) (de Accattone com Ascenza e depois com Stella), só que agora ele enquadra uma Mamma Roma cambaleante e de frente – e ao contrário do primeiro filme, aqui não sabemos muito bem onde ela está. Durante a caminhada, o assunto de Mamma Roma são os conjuntos habitacionais fascistas:

“Na frente da minha casa havia um velho muito rico. Não sabia o que fazer com o dinheiro. Ele se vestia como Robespierre – bigode, bengala – parecia o rei de Santa Calla... Você sabe como ele conseguiu o dinheiro? Na época do Fascismo. Mussolini disse-lhe assim: ‘Quero que me faça um bairro para o povo’ – que então seria Pietrarancio. Esse senhor fez a primeira casa, com lindas paredes e tantas privadas... onde se podia até comer de tão bem feitas. Mussolini veio e disse, ‘Excelente, era exatamente o que eu queria’. Esse filho da puta. Quando o Duce foi embora, só fez privadas, não fez mais casas. Agora chamam aquele bairro de Privadônia. Ha! Ha! É toda uma longa extensão de cagatórios”

Na cena seguinte o que vemos é o bairro de Cecafumo, com uma parede de prédios e a rotunda da igreja San Giovanni Bosco se erguendo no meio deles. Este bairro fica ao sul da Via Tuscolano, ocupando os dois lados da estrada. Cecafumo não está muito longe dos estúdios da Cinecittà. Depois de uma passagem pela igreja, onde Mamma Roma mostra ao filho o tipo de gente com quem ela espera que ele se case, acompanhamos os dois caminhando em direção ao prédio Muratori em Tuscolano II. Na entrada do prédio, a posição da pilastra evoca um crucifixo. Rhodes aponta uma retórica pasoliniana do sublime operando em Mamma Roma. O elemento sublime está na sensação da periferia como algo além da compreensão, um excesso que não pode ser compreendido, digerido, ou mesmo representado. Como na imagem panorâmica de Cecafumo que se repete oito vezes durante o filme. Para Rhodes, talvez essa imagem não deva ser considerada apenas nos termos do sublime kantiano, mas também no de Lyotard: uma “dor” ou “falha de expressão”. O poder daquela imagem reside em sua estranheza (17).


Cecafumo no horizonte, os terrenos
vazios ao redor sugerem como foi a vida
nos “bairros  para  o  povo”  construídos
por   Mussolini   na   década   de   30
Outro exemplo do sublime seriam as ruínas de um aqueduto no terreno baldio ao lado de Tuscolano II. Ruínas de um sublime Romântico, como nas referências de Shelley e Byron a Roma. O sublime de Pasolini, por outro lado, é o da periferia: marrom, caiada de branco, imensa, sem forma. É o sublime do excessivo, incompreensível, porém impossível de ignorar. Em sua crítica ao Neorrealismo, Pasolini pretendia impedir que os espectadores desenvolvessem uma aceitação confortável da realidade urbana moderna. Ele percebeu que essa realidade é muito variada e complexa demais para ser representada corretamente. Foi então que adotou uma retórica estética do sublime, queria forçar nos espectadores uma consciência da experiência que ele próprio vivera na periferia. Mas ele não nos dá os contos de fada dos sem teto de Milagre em Milão (Miracolo a Milano, direção Vittorio De Sica, 1951), Pasolini insiste que testemunhemos seu esforço em fazer o que acredita ser impossível: dar voz e visão à experiência da vida na periferia de Roma.

Alegorias da Vida


“Para o observador europeu, o processo de criação artística
no mundo subdesenvolvido é de interesse apenas na medida
em   que    satisfaz    uma    nostalgia    pelo    primitivismo”

Glauber Rocha (18)

Assim como Pasolini fizera uso da analogia para articular Matera e Jerusalém, agora utiliza alegorias para se referir há muitos lugares, ainda que se concentrasse em apenas um – a periferia de Roma. Em Gaviões e Passarinhos (Uccellatti e Uccellini, 1966), Pasolini parece citar a seqüência final de O Eclipse – que, aliás, mostra a paisagem arquitetônica burguesa de EUR. Quando Ninetto e Totó entram num bairro pobre e procuram entender o que aconteceu com um morador, Pasolini realiza uma série de tomadas dos prédios na vizinhança – assim como a famosa seqüência final do filme dirigido por Antonioni. Na opinião de Rhodes, a conexão entre os dois filmes neste ponto é óbvia. Mas por que Pasolini desejaria parodiar Antonioni? De acordo com Rhodes, o método de Antonioni consistia em focalizar estruturas arquitetônicas tipicamente sem atrativos, de tal forma a revelar sua dimensão abstrata ignorada ou escondida. Como se fosse uma meditação a respeito do potencial de um fragmento para renovar ou reorientar nossa percepção. Pasolini desejava, afirma Rhodes, demonstrar que o método de Antonioni não dá conta de áreas degradadas como a periferia de Roma daquela época. A metáfora alegórica seria a única meio de dar conta daquelas favelas e periferias (19). (imagem acima, ruínas do passado romano nos arredores dos novos complexos habitacionais, Mamma Roma)

A seguir, Ninetto e Totó caminham por uma estrada deserta, com a periferia romana na linha do horizonte atrás deles. De repente uma placa, “Istambul 4253 km”, talvez parte do catálogo de periferias do mundo... Em seguida, estão subindo a rampa de um elevado (Tangenziale Est) que leva a uma estrada que conecta o centro de Roma à Autostrada del Sole, que liga a capital ao norte e ao sul do país – os 755 quilômetros iniciais haviam acabado de ser completados em 1964. Para Pasolini, essa estrada era uma espécie de não-lugar. Viajando pela autoestrada, os dois personagens deixam Roma para traz da mesma forma que a cidade (enquanto encarnação de uma série de histórias e práticas urbanas específicas) não interessa mais a Pasolini. Isso aconteceu devido ao fato de que a especificidade daquela cidade sucumbiu às forças homogeneizantes do capitalismo.

Na opinião Pasolini, aquela autoestrada era uma expressão concreta das forças de homogeneização – o lado negro do Milagre Econômico. A “cultura do automóvel” remodelou as cidades italianas e suas periferias. Um idioma italiano padronizado sufocou a riqueza e a diversidade dos dialetos, especialmente através dos jornais e da televisão. Restivo mostrou como a construção dessa via expressa “re-mapeou” a Itália – a publicidade focada no turismo foi mais determinante do que propriamente o asfalto. Analisando a propaganda de uma empresa de petróleo/postos de gasolina (Gulf), Restivo viu na imagem de um automóvel em movimento a ideia de “velocidade” num registro futurista. Futurismo que se infiltra no espaço medieval e renascentista das cidades italianas. Curiosamente (ou não) o Futurismo foi uma corrente artística muito identificada com a construção da nação durante o período fascista (20).

A passagem para uma alegoria fica patente nos filmes entre 1967 e 1969. A Terra Vista da Lua (La Terra Vista dalla Luna, episódio de As Bruxas, Le Streghe, 1967) foi filmado numa favela em Fiumicino e também próximo a Ostia, além do centro de Roma (no Coliseu). Juntamente com O Que São as Nuvens? (Che Cose Sono le Nuvole, episódio de Capriccio all’Italiana, 1968), trata-se de dois médias-metragens alegóricos. No primeiro, pai, filho e madrasta desejam ascender socialmente – nisso o filme lembra Mamma Roma. É uma peça cômica, embora Pasolini faça com que a aspiração de mobilidade social se identifique a um instinto de morte. A moral do filme é anunciada num intertítulo que fala dos pobres: “estar morto ou vivo é a mesma coisa”.


“Em 1967 Pasolini realizou sua versão de Édipo Rei, iniciando um ciclo de filmes interessados em reeditar a tragédia clássica (os outros filmes nesse sentido são Medeia [Medea, 1969] e Notas Para Uma Oréstia Africana [Appunti per Una Orestiade Africana, 1970]). Estas adaptações de textos clássicos, míticos, eram também concebidas e comentadas por Pasolini enquanto tratamentos alegóricos do presente. Notas Para Um Filme Sobre a Índia [Appunti per Un Film sull’India. 1967-8], baseou-se numa fábula indiana. Teorema, a respeito de uma família burguesa de Milão desfeita em função da visita sexualmente carregada de um estranho, é descontroladamente alegórico. Assim como é Pocilga [Porcile, 1969]. Claramente, a mudança para a alegoria é dramática, elaborada e completa. E em cada caso o recurso ao mito e alegoria deriva de um infatigável desejo de criticar as forças da modernidade e do progresso capitalista” (21)

Em A Sequência da Flor de Papel (La Sequenza del Fiore di Carta, episódio de Amor e Raiva, Amore e Rabbia, 1969) (imagens acima), Ninetto Davoli caminha pelo centro de Roma. Mais especificamente, partindo da Piazza della Republica ele segue pela Via Nazionale. Uma escolha apropriada da parte de Pasolini, já que esta avenida é considerada uma via pública da Roma moderna. Datando do final do século XIX, ela teria inaugurado o mau uso do espaço urbano daquela cidade, cujos efeitos eventuais foram favelas e projetos habitacionais na periferia. “Assim, de certa forma, é a rua que leva à corrupção do presente” (22). Nos filmes da Trilogia da Vida, Pasolini procurava ambientar sua ode à autenticidade dos corpos inocentes (e seus órgãos sexuais) no Terceiro Mundo – apesar de algumas locações na Europa. 

No documentário Os Muros de Sana (Le Mura di Sana’a, 1964), montado a partir de material extra de As Mil e Uma Noites (Il Fiore delle Mille e Una Notte, 1974), Pasolini faz um apelo à UNESCO pela preservação das muralhas dessa cidade. Embora Rhodes chame atenção para um olhar ingênuo de Pasolini no que diz respeito a decidir o que é melhor para países do Terceiro Mundo como o Iêmen, acredita que o importante no documentário é a consistência da visão (articulada a uma paisagem urbana) de Pasolini. Ela nos permite perceber a alegórica, porém muito real violação mútua entre o Primeiro e o Terceiro mundos. Falando de Sana, na verdade Pasolini se refere à Itália. De acordo com Rhodes, o fato de Pasolini utilizar alegorias, na medida em que suas análises se tornaram mais urgentes e sombrias, está dentro da natureza do próprio discurso alegórico.

“(...) O modo alegórico de Pasolini foi – e talvez ainda possa ser experimentado como – uma forma de costurar o Iêmen à Itália e ao Ocidente, de forçar sua interpenetração da mesma forma que seus primeiros filmes foram métodos de reincorporar as vidas periféricas de romanos na consciência da Itália moderna. Nossa habilidade de compreender como os filmes posteriores de Pasolini funcionam como alegoria depende de alcançarmos a especificidade, a história, a materialidade dos lugares que ele documenta e nos oferece através de um modo de visão inquietante. E para entender tudo isso, temos que compreender primeiro o lugar do qual esse modo de visão se origina. Isto é: emerge de Roma, de um encontro com uma cidade – um encontro do qual Pasolini nunca se recuperaria” (23)


Exceto por pequenas variações de configuração do texto que não modificam seu conteúdo, Roma de Pasolini foi publicado originalmente na Revista Universitária do Audiovisual, da Universidade Federal de São Carlos, São Paulo (RUA/UFSCar) em 16 de fevereiro de 2011.
 

Leia também:

Roma de Antonioni
Pasolini e o Cinema de Poesia  
Quando Fellini Sonhou com Pasolini
O Duplo que Franz Kafka não Queria Ser
Ettore Scola e o Cinema Dentro do Filme
Ettore Scola e o Milagre em Roma

Notas:

1. RHODES, John David. Stupendous, Miserable City. Pasolini's City of Rome. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2007. Pp. 21, 24, 25-6.
2. Idem, pp. 429-30, 33, 167n38.
3. Ibidem, pp. 136 e 140.
4. RESTIVO, Angelo. The Cinema of Economic Miracles. Visuality and Modernization in the Italian Art Film. Durham & London: Duke University Press, 2002. Pp. 36, 46.
5. RHODES, John David. Op. Cit., pp. 36-8.
6. RYAN-SCHEUTZ, Colleen. Sex, the Self, and the Sacred. Women in the Cinema of Pier Paolo Pasolini. Canada: University of  Toronto Press, 2007. P. 28.
7. Idem, pp. 76, 78.
8. RHODES, John David. Op. Cit., p. 73.
9. VIANO, Maurizio. A Certain Realism (1993) in: RYAN-SCHEUTZ, Colleen. Op. Cit., p. 242n10.
10. RESTIVO, Angelo. Op. Cit., pp. 55-6.
11. Idem, p. 149.
12. RHODES, John David. Op. Cit., pp. 40-1, 44, 168n7.
13. Idem, pp. 46, 49, 66-7, 71, 74, 169n15, 16.
14. Ibidem, p. 123.
15. RYAN-SCHEUTZ, Colleen. Op. Cit., pp. 46 e 244n37, 38.
16. Idem: pp. 91-2.
17. RHODES, John David. Op. Cit., pp. 115, 120, 126, 135.
18. ROCHA, Glauber. Aesthetic of Hunger, 1982 in RESTIVO, Angelo. Op. Cit., p. 147.
19. RHODES, John David. Op. Cit., p. 144-6.
20. RESTIVO, Angelo. Op. Cit., pp. 72, 76.
21. RHODES, John David. Op. Cit., pp. 148-9.
22. Idem, pp. 150, 152.
23. Ibidem, p. 154.

31 de out. de 2014

Casanova de Fellini e o Infantilismo Italiano


 (...) O filme me ensinou que a ausência  de amor 
é  o pior sofrimento que alguém pode suportar”

Federico Fellini (1)

Casanova de Laforge
Giacomo Girolamo Casanova, nasceu em Veneza em 2 de abril de 1725, num local curiosamente chamado Rua da Comédia (Calle della Commedia). Filho de atores, ele estudou lei em Padua e evitou o sacerdócio, sua juventude transcorreu entre muitas viagens. Violinista e intelectual excêntrico, escritor panfletário, aventureiro, trapaceiro, frequentador de bordéis, jogador, envolvido com cabala e ocultismo, Mason, dramaturgo e auto-proclamado Cavaleiro de Seingalt. Preso por heresia em 1756, fugiu da prisão em Veneza e trinta anos depois escreveu a história de sua vida. Em 1774 sua volta a Veneza foi autorizada, mas como espião para o governo. Pouco depois, sua obra foi banida, e ele deixou sua cidade para sempre, se tornando um andarilho (2).
Aos sessenta anos, em setembro de 1785, Casanova se torna bibliotecário do conde Waldstein. Ignorado pela nobreza e ridicularizado pelos serviçais, ele se põe a trabalhar no livro que o imortalizará. Casanova morrerá ali, em 1798. Para compreender Casanova de Fellini (Il Casanova di Federico Fellini, 1976), explica Kezich, é necessário, antes de tudo, esquecer o personagem histórico. Por outro lado, é curioso descobrir que esse personagem talvez já seja uma ficção. Sua biografia seria publicada apenas em 1820, após modificações significativas introduzidas por Jean Laforge, que aprofundou a libertinagem (apenas uma pequena parte do original se referia à sedução de mulheres) e efetivamente modificou o espírito do livro. Fellini convidou Donald Sutherland para o papel de Casanova. O ator juntou e leu dezenas de livros sobre o personagem, mas Fellini sugeriu que ele jogasse tudo fora.


Da escura lagoa de Veneza surge a grande 
cabeça de Vênus, mas logo ela volta para o fundo. 
No final do filme,  Casanova  reencontra esse par 
de olhos quando a lagoa estiver congelada

Casanova e Berlusconi

Amarcord (1973) foi um grande sucesso de público na Itália, Federico Fellini dizia que a razão disso foi uma profunda identificação com os personagens – os italianos se viram na tela. Embora muitos daqueles que gostaram do filme não tenham percebido, existe uma mensagem política subjacente marcando uma mudança de rumo na trajetória da obra de Fellini, que ali atacou a mentalidade infantil de seus compatriotas – referindo-se aos italianos, o cineasta procurou problematizar “um fascismo dentro de nós”. Em Casanova de Fellini, Ensaio de Orquestra (Prova d’Orchestra, 1978) e Cidade das Mulheres (La Città delle Donne, 1980), o cineasta continuou misturando sua visão pessoal do cinema com temas sociais contemporâneos. No caso específico do filme sobre Casanova, são invenções de Fellini: a giganta de Londres, a boneca mecânica do final, a traição amorosa do embaixador inglês e vários outros elementos que não existem nas Memórias do veneziano.
A partir desta contextualização, proposta por Peter Bondanella, Casanova de Fellini adquire uma “sutileza profunda” que muitos críticos da época não foram capazes de enxergar. Fellini rejeitou o óbvio, ao invés de um retrato do amante latino arquetípico, nos mostrou o Casanova como um homem mecânico, cuja sexualidade foi reduzida aos movimentos automáticos de uma máquina e para quem a parceira mais satisfatória é uma boneca mecânica. Deste ponto de vista fica fácil ver Casanova como uma continuação do argumento de Amarcord, já que Fellini via o veneziano do século XVIII como uma antecipação da personalidade fascista apresentada no outro filme – um eterno adolescente sem qualquer individualidade. 

“(...) Enquanto o filme é ambientado no século dezoito, seu alvo é a glorificação do sexo nos dias de hoje. A incansável busca de Casanova por novas aventuras sexuais não produz nenhuma mudança em seu caráter, nenhum melhoramento em sua condição, e nenhum aumento de auto-compreensão. Seu fracasso final pra atingir o inatingível é prefigurado no carnaval da seqüência de abertura – um exemplo clássico do virtuosismo felliniano – com suas multidões frenéticas, pródigos trajes históricos e cenários extravagantes: uma enorme cabeça de Vênus é içada momentaneamente da água, então subitamente se solta de seus cabos e mergulha nas águas turvas da laguna. Como esse símbolo enigmático, o amor e as mulheres são para sempre incompreensíveis para Casanova; e a figura da Vênus aparece novamente no belo final do filme, onde num sonho Casanova se imagina deslizando sobre uma lagoa congelada com sua boneca mecânica, uma arrepiante imagem de sexualidade mal direcionada e impotência na velhice. Como observou no set de filmagem o [assistente de direção de Fellini], ‘apenas um homem de meia-idade tornando-se cínico poderia fazer tal declaração. Como é triste. Como é honesto’” (3)


Existe ainda outra questão para compreender o lugar de Casanova de Fellini na obra de Fellini: a competição da televisão. Contrariado com a recepção negativa à Cidade das Mulheres, Fellini empreendeu um passeio incógnito pelos cinemas de Roma. Foi então que o cineasta se deu conta de que “o público mudou de planeta, ele não existe mais” (4). De acordo com Àngel Quintana, esta constatação desolada permite compreender o lado um tanto testamentário e de resistência dos filmes desse último período de Fellini. Depois do sucesso de Amarcord, o público deixa de se interessar pela obra do cineasta, ainda que a estética felliniana barroca e excessiva se populariza. As mídias reduzem o autor à sua própria caricatura, ao passo que suas obras são objeto de incompreensão, de polêmicas e até de indiferença.
Segundo Quintana, entre Casanova (1976) e A Voz da Lua (La Voce della Luna, 1990), o cinema italiano atravessa uma grande crise criativa, cujo estopim foi a emergência dessa “neo-televisão”. O desconhecimento desse fato explica a incompreensão de críticos que, baseados apenas em estatísticas de bilheteria, depreciam obras de autores sem realizar a devida contextualização, gerando mais desinformação do que propriamente informação – a decadência, em termos de bilheteria, teria mais relação com a competição da televisão do que com desinteresse do público. A emergência do império da televisão de Silvio Berlusconi (que se desdobra até hoje em sua carreira na política) gerou a crise no cinema italiano (o público passou a assistir aos filmes em casa) diretamente responsável pela trajetória de cineastas italianos trabalhando no exterior – veja-se a obra de Michelangelo Antonioni e Bernardo Bertolucci. Fellini se entrincheirou nos estúdios da Cinecittà e tentou resistir à sociedade do espetáculo. 

“(...) Subitamente, depois de Amarcord, concebido como a reconciliação definitiva entre o autor e o mundo onde crescera, Federico encontrou inspiração para se tornar um homem-contra-a-sociedade. Casanova de Fellini chama o super-macho mediterrâneo ao trabalho; Ensaio de Orquestra critica os elementos destrutivos da revolução social de 1968; A Cidade das Mulheres fecha contra o feminismo radical; E la Nave Va [1983] desafia uma sociedade que ignora os sinais de um apocalipse iminente. E assim, Ginger e Fred [1985], quando visto através dessas lentes, pode ser entendido como o filme contra a televisão de massa e Silvio Berlusconi (...)” (5).

De fato, quando acompanhamos os últimos acontecimentos da vida política de Berlusconi, primeiro ministro italiano (escândalos sexuais com prostitutas e sua declaração recente sobre o país, dizendo que vai embora desse “país de m...”, um pouco como quem abandona o barco que ajudou a afundar), a questão do infantilismo dos italianos que perpassa Amarcord e Casanova de Fellini torna-se razoavelmente perceptível. 

Um Parto Difícil

Apenas após ter assinado o contrato para dirigir o próximo filme é que Fellini se deu ao trabalho de começar a ler as Memórias de Casanova, o que deixou o cineasta com o pressentimento de ter dado um passo em falso (trata-se de uma coleção de seis volumes com mais de 2000 páginas). Consequentemente, Fellini confessou, até o ponto de vista de Casanova de Fellini surgiu apenas por necessidade e desespero, estranho ao livro, à Casanova, ao século XVIII e a tudo que havia sido escrito sobre o assunto até então. Sem ideias e oscilando entre a depressão e o tédio, o cineasta tira justamente daí uma direção para o filme. Casanova de Fellini conta a história de um homem que nunca nasceu, uma marionete fúnebre sem idéias próprias, sentimentos ou pontos de vista. Nas palavras do cineasta, um “italiano” aprisionado no ventre da mãe num filme abstrato e informal sobre a “não-vida” (6).

Fellini disse que o ator Donald Sutherland tinha um rosto (o nariz e o queixo eram falsos) perfeitamente adaptado à imagem de um italiano imaturo, juvenil, uma espécie de “Pinóquio no útero”. Essa era a imagem que o cineasta tinha de Casanova, um stronzo, um idiota. Além disso, os olhos azuis do ator expressavam muito bem as fantasias masturbatórias e estéreis de Casanova, a quem Fellini descreveu como um banco de esperma ambulante sofrendo de insônia crônica. Por falar em semelhanças, Fellini sugeriu que, às vezes, a boneca mecânica com quem Casanova dança na última cena do filme lembrava sua esposa Giulietta Masina no final da década de 50 do século passado. Durante os três longos anos da produção, houve uma série de acidentes e contratempos, Fellini se convenceu então que deveria estar sendo perseguido pelo fantasma do verdadeiro Casanova por ter arruinado sua reputação. 


  A primeira aventura de Casanova, 
Fellini já nos havia apresentado um
mar  de  plástico   em   Amarcord

Começar a ler as memórias de Giacomo Casanova somente depois de assinar o contrato para fazer um filme sobre ele não foi a única “proeza” de Fellini. Ele só assinou, nem chegou a colocar o título da futura obra. Dino De Laurentiis, o famoso produtor italiano, insistiu nesse ponto e a primeira coisa que Fellini pensou foi Il Casanova. Segundo Tullio Kezich, não era a primeira vez que o cineasta precipitava esse tipo de situação. Também não havia lido nada quando concordou em dirigir Toby Dammit (1968), baseado em Histórias Extraordinárias, de Edgar Allan Poe, o mesmo também sucedendo em relação ao texto de Petrônio (27-66 d.C.) quando assinou o contrato para Satirycon de Fellini (Satirycon - Fellini, 1969). A única coisa que Fellini sabia é que há quase vinte anos falava sobre fazer um filme sobre o aventureiro veneziano (7).
 
Provisoriamente, o projeto chegou a se chamar Os Sonhos de Casanova (I Sogni di Casanova). Um ano depois, De Laurentiis pulou fora, segundo Kezich o motivo foi a escolha do protagonista. Os parceiros norte-americanos de De Laurentiis queriam uma celebridade, primeiro cogitaram o nome de Marlon Brando e Al Pacino, depois sugeriram Robert Redford. Fellini recusou, achava Redford um tipo físico muito pouco europeu. Além disso, o cineasta italiano não queria fazer o filme em inglês, o que definitivamente desagradou o grupo de De Laurentiis. Fellini acabou optando pelo canadense Sutherland, que conheceu durante as filmagens de 1900 (direção Bernardo Bertolucci, 1976), onde este atua como um fascista de Mussolini. 

Por outro lado, Kezich esclarece que Sutherland concordou em trabalhar por um salário baixo, enquanto Redford pediu um milhão de dólares! – Chris Wiegand, por outro lado, afirmou que Fellini conheceu Sutherland durante as filmagens de Alex in Wonderland (direção Paul Mazursky, 1970), no qual o personagem é um cineasta que procura Fellini para pedir conselhos (8). A propósito da caracterização do personagem, um produtor norte-americano da Universal questionou Fellini, pois achava que o personagem de Casanova deveria ser alegre, e não um zumbi. O cineasta balbuciou alguma coisa sobre aquela história de Casanova ser um morto-vivo estúpido, ao que o produtor retrucou dizendo que tudo isso são apenas “masturbações mentais”! Joguinhos para intelectuais! (9)
No fundo, Fellini não sabia o que esperar de Sutherland. Enquanto isso, os prazos foram estourando e o cineasta perdeu mais um financiador. O próximo da fila exigiu e conseguiu que o filme fosse feito originalmente em inglês. As coisas andavam ruins, Fellini não escondia sua falta de interesse pelo projeto e a imprensa também não. Em função de todos esses problemas, fica fácil compreender porque Fellini chamava Casanova de versão ruim do homem italiano, um fascista vulgar! E o que é o fascismo, vocifera Fellini, senão a adolescência prolongada no mundo adulto? Casanova é um Pinóquio que se recusa a crescer. Depois disso, ou antes, o cineasta rasgou as 2000 mil páginas do livro de Casanova em 1000 pedaços. Na época de seu lançamento, Casanova de Fellini só fez sucesso no Japão.

Casanova, padroeiro dos italianos?


“A recusa de Fellini em reconhecer a sexualidade contemporânea
como     uma     força     libertadora     é     uma     resposta     direta
 à   radical   mudança    de    costumes   sexuais   naquela   década” 

Peter Bondanella (10)

Em 1975, no documentário E il Casanova di Fellini? (direção de Franco Angelucci e Liliane Betti), Fellini citou Jorge Luis Borges (“cada escritor cria seus próprios precursores”) para sugerir que os italianos se achavam grandes sedutores e transformaram Casanova em seu precursor. Sob a sombra diária da frustração sexual, disparou Fellini, era praticamente seu destino que os italianos criassem a lenda de um homem que conquista todo mundo! Fellini continuou a carga afirmando que, depois de séculos de ensinamentos xenófobos e misóginos por parte da Igreja Católica, o homem latino fabricou um anseio tão paralisante pelas mulheres que ele permaneceu um eterno adolescente, alguém que não quer crescer. No final de sua preleção antropológica Fellini conclui: “Eu odeio Casanova”.
Aqueles que tinham os escritos de Casanova em alta conta questionaram o ponto de vista felliniano. Um deles, Piero Chiara, chegou a sugerir que, pelo menos em relação à Casanova, Fellini seria o caso clássico de negar aquilo que ama – ou aquilo com o que se identifica muito. O “Casanova de Fellini”, sugeriu Chiara, guarda dentro de si muito do cineasta. Alguém pode se lembrar que o protagonista de Fellini 8 ½ (Otto e Mezzo, 1963) sempre foi relacionado como alter-ego de Fellini. Contudo, Kezich afirma que apenas algum tempo depois o cineasta admitiu reconhecer elementos autobiográficos no hesitante Guido Anselmi – alguém que mistura mentiras e mulheres como Casanova. No caso deste personagem, Fellini levaria um longo tempo para admitir uma “auto-paródia expressionista”. 


A    anemia   de   Anamaria    acaba
 depois de uma noite com Casanova 

Desfilando por outros possíveis alter-egos de Fellini, Kezich sugere ainda que o tom pessimista da seqüência final de A Doce Vida (La Dolce Vita, 1960) retorna em Casanova de Fellini. Mais especificamente na cena do primeiro na qual, depois da orgia, o bando confuso vai para a praia e acompanha a retirada de um monstro marinho das redes dos pescadores. Em Casanova, Fellini dá um zoom na cabeça de um monstro – a grande cabeça da deusa Vênus sendo içada da lagoa no começo do filme já seria uma alusão. Casanova flutua na desintegração, como Marcello. Muitos sempre perguntavam quando o cineasta faria outro A Doce Vida, e Fellini se queixou de que ninguém percebeu que ele o fez – Casanova de Fellini é A Doce Vida do século XVIII (11). Casanova também seria um vitellone (mas num sentido negativo, referência a Os Boas-Vidas, I Vitelloni, 1953) e um Zampanò (A Estrada da Vida, é a referência aqui, La Strada, 1954), um cigano que usa as mulheres como objetos.

O escritor belga Georges Simenon (1903-1989), que participou do júri em Cannes e lutou para que A Doce Vida ganhasse o prêmio, gostou muito de Casanova de Fellini. O escritor surpreenderia Fellini ao afirmar já ter feito sexo com dez mil mulheres (sendo oito mil prostitutas), tendo começado aos treze anos e meio de idade – eis porque Katzone de Cidade das Mulheres incorpora Simenon. A experiência mostra que, de fato, para muitos e muitos homens, dizer que fez parece ser mais importante do que fazer. Referindo-se a si mesmo, Fellini acaba por definir o dilema cotidiano de Casanova: “Fama e lenda não são a mesma coisa. A fama torna mais fácil trabalhar, a lenda torna isso impossível” (12).

Os Homens de Fellini 


Na  obra  de  Fellini,   a  figura  feminina 
é objeto, mas também pode significar a saída 
do   labirinto   machista  para  o  homem

No princípio de Casanova de Fellini, as águas do Grande Canal transformam-se no cenário onírico de uma Veneza imaginária de onde surge a cabeça da Vênus. De acordo com Quintana, a cena aponta para duas questões chave. Por um lado, Fellini se apóia sobre o carnavalesco para conceber uma imagem grandiosa e simbólica da feminilidade, apontando como a exploração do mito do eterno sedutor pode se estabelecer sobre uma construção visionária da mulher, que será desenvolvida novamente nos labirintos oníricos de Cidade das Mulheres. Por outro lado, Quintana acredita que a geografia de Veneza está claramente em paralelo com a idéia das cidades invisíveis, desenvolvida pelo escritor italiano Ítalo Calvino (1923-1985) (13). Em Cidades Invisíveis (1972) Calvino descreve cinqüenta e cinco cidades imaginárias com nomes femininos. Um verdadeiro mundo mental, onde nenhuma delas tem ligações com a realidade, o espaço e o tempo são totalmente abstratos. Na Veneza de Fellini a famosa ponte Rialto é justaposta à Praça São Marcos e as águas são evocadas por um mar de plástico, criando um universo espectral, oposto ao mundo empírico. 
Reencontraremos o Casanova de Fellini reencarnado no senhor Katzone, o conquistador de milhares de mulheres em Cidade das Mulheres, super macho em extinção cuja casa possui um labirinto repleto de lembranças sonoras de suas conquistas. Katzone receberá a visita de Snaporaz (personagem muito próximo do cineasta egoísta de Fellini 8 ½), que se deleita no labirinto sonoro de seu anfitrião. Nesse sentido, argumenta Quintana, Casanova de Fellini é o inverso de Cidade das Mulheres - aqui o cineasta italiano conta a história de um pesadelo vivido por seu duplo (Snaporaz) e observa como, após a morte do homem, emerge outra realidade cujo futuro é mulher. Assim como a mulher ideal de Casanova é uma boneca, acompanhamos Snaporaz perdido nos labirintos de seu próprio eu, afrontado justamente por aquela que considerava a mulher ideal – ele sobe num balão com o formato dela, em seguida, ela, em carne e osso fora do balão, derruba o avoado com uma metralhadora. Casanova e Snaporaz só encontram a parceira ideal em sonho. O primeiro só consegue com a condição de estar morto, o segundo a perde no próprio sonho.

“Um pouco como em Casanova de Fellini, depois de se perder na selva feminina o macho termina preso na armadilha de uma figura inanimada, [um balão de ar quente no formato de uma grande boneca voadora]. Casanova de Fellini e Cidade das Mulheres são duas obras realmente alucinadas, onde o cineasta coloca em cena múltiplas imagens suscitadas pela mulher em seu inconsciente. Novas explorações da feminilidade, os dois filmes parecem levar ao extremo sua capacidade visionária” (14)

E finalmente, uma sequência cortada na edição final apresentava uma aventura homossexual de Casanova. Trata-se de um episódio que consta das Memórias de Casanova e conta sobre uma viagem que fez à Turquia, o único conto onde ele confessa uma “perturbação homossexual” (palavras de Fellini). “(...) Ele fica encantado, fascinado pelo príncipe que o hospeda, que, por sua vez, parece que se apaixona por Casanova”. Mesmo aí Fellini adicionou uma sequência ficcional, onde Casanova suborna alguns guardas para que o deixem espiar o harém. Os guardas são punidos, mas Casanova é convidado pelo príncipe para navegar por um pequeno canal adjacente, onde consumaram o ato sexual (15). Autobiográfico ou não, é fato que Fellini sonhou com o poeta e cineasta Pier Paolo Pasolini lá por fevereiro de 1961:

“Eu estava na cama com Pasolini, no pequeno quarto em Rimini onde eu estudava quando era garoto (trinta anos atrás). Dormimos juntos toda a noite como dois irmãozinhos, ou talvez como marido e mulher, porque agora que ele está levantando, vestindo camiseta e cueca, dirigindo-se ao banheiro. Eu percebo que estou olhando para ele com fortes sentimentos de terna afeição” (16)

As Mulheres de Fellini


“Ela é uma bêbada, uma glutona! Quem sabe o quê ela nos doará, 
depois!   Miuna   prostituta,   nádegas   defecantes,   velha   mulher
subterrânea,     velha     mulher     fedorenta     ou     grande     Miuna,
flertadora   e   desonesta,   a   quem   somos    forçados    a   aceitar
como     esposa,     mãe,     sogra      degenerada,     irmã     e     avó”

Recitado enquanto sobe do fundo da lagoa
a cabeça Vênus, símbolo da feminilidade

Logo após a visão do carnaval de Veneza no início do filme (onde a enorme cabeça da Vênus a meio caminho para fora d’água se assemelha a uma das gôndolas que a circundam e caracterizam a cidade), Casanova segue para o local do encontro sexual com uma freira – ato assistido furtivamente pelo embaixador francês que a acompanha. A seguir, Casanova é preso pela Inquisição, mas foge em seguida e vai pulando de um encontro sexual para outro. Anamaria, uma bordadeira anêmica, é curada depois de uma noite de sexo com ele. Madame d’Urfé espera tornar-se imortal ao engravidar de Casanova. Chega a se apaixonar por Henriette, mas ela o abandonará no meio da noite (ele chegou a pensar em suicídio). 

Assistimos uma competição onde ele sai vencedor depois de apostar quem é capaz de fazer mais atos sexuais durante uma hora. Numa seqüência bastante carnavalizada, transa com uma atriz corcunda que parece satisfazê-lo bastante, como demonstra a sombra gigante do pássaro mecânica que carrega consigo e denota seu orgasmo. Depois de um encontro sem maiores consequências com sua mãe, no final do filme é de se esperar que Casanova só se encontre em Rosalba, a boneca mecânica, imagem em espelho daquele amante latino em crise.

Todas as mulheres de Casanova parecem bastante disponíveis à fama do amante latino veneziano, e Fellini dá a todas o que procuram. Como não poderia deixar de ser, reencontramos em Casanova de Fellini algumas das obsessões do cineasta. Poderíamos ter reencontrado os grandes seios de Anita Ekberg em A Doce Vida e As Tentações do Doutor Antônio (Le Tentazioni del Dottor Antonio, episódio de Boccaccio ’70, 1962), não fosse uma cena cortada de Casanova (na sequência com a anêmica Anamaria e da mulher que queria ser chicoteada) onde uma mulher de seios enormes (que cresceram milagrosamente) se oferece a Casanova. Mas é difícil decidir onde está o auge da obsessão mamária de Fellini, na gigantesca Ekberg de Boccaccio ’70 (ela coloca o minúsculo e puritano doutor Antônio preso em seu decote), ou na mulher da tabacaria em Amarcord, que quase sufoca Titta em seus seios fartos.

O corpo feminino nu é recorrente e marcante em Fellini, mesmo que seja indiretamente. O tobogã de Cidade das Mulheres é, na verdade, uma grande vagina; em A Voz da Lua, quando um homem se refere ao astro celeste que baixou na terra como “culo di pietra!”, certamente ele não está se referindo apenas à influência daquele astro na agricultura (17); ao afundar novamente, a grande cabeça da Vênus-gôndola em Casanova de Fellini seria uma metáfora da condição feminina? Bem, Fellini insistiu que não fazia um cinema de “mensagens”. O que não quer dizer, esclareceu o cineasta, que seus filmes não carreguem mensagens ou que seus personagens não lhe enviem algumas. Aprendi com Casanova, disse Fellini, que a falta de amor é a suprema dor (18). Uma afirmação curiosamente “feminina” para um cineasta cujos personagens femininos são quase sempre caricaturas e/ou máquinas de sexo – é claro, sempre podemos nos lembrar da pureza chaplinesca de Gelsomina, em A Estrada da Vida.

Fellini se interessava pela psicanálise e anotava seus sonhos (utilizando inclusive seus dotes de desenhista de quadrinhos), o que fica evidente com a importância que deu ao seu sonho com Pasolini. O cineasta preferia falar em termos de arquétipos junguianos, deixando Freud de lado. Fellini 8 ½ é um filme muito impregnado por esse interesse. Dois exemplos dignos de nota são a cena em que Guido Anselmi (reconhecido como alter-ego do cineasta) delira um encontro onde sua amante confraterniza com sua esposa e a antológica seqüência do harém dele – onde a esposa é a única que faz o trabalho pesado, solícita faxineira e cozinheira. Dois momentos de fetiche machista delirante. Méjean nos sugere uma interpretação de outra natureza para a confraternização na primeira cena – uma interpretação, digamos, “feminina”. Elas sabem que irão perder esse homem, uma porque é sua esposa, a outra porque gostaria de ser (19). Na vida real, Fellini se dizia incondicionalmente apaixonado por sua esposa, Giulietta Masina. 

Enfim, o campo era fértil o suficiente para que Fellini articulasse as questões sobre a sexualidade à função da mulher em suas fantasias. Em Cidade das Mulheres, na cena final o protagonista parece aliviado por concluir que tudo que presenciou no congresso feminista não passou de um sonho ruim na poltrona do trem. Mas o próprio Fellini admitiu: “Nada é mais honesto do que um sonho” (20).

Kezich afirmou que Fellini adorava “atuar” como um grande sedutor. Em relação à Anita Ekberg, durante as filmagens de A Doce Vida, muitos queriam saber se ele tinha um caso com ela. Depois de convencer a um amigo de que ele teve um caso, pediu que este espalhasse a informação. No Brasil, é bem verdade, existe até uma piada sobre esse tema. Uma bela e famosa atriz flerta com um homem, mas quando se dirigiam para o motel ela pede que ele guarde segredo. Então o homem desistiu e foi embora!

Kezich cita o comentário de Indro Montanelli em suas memórias. Ele escreveu que quando Ekberg foi à Roma para filmar A Doce Vida, logo convidou Fellini a seu quarto de hotel, recebendo-o nua. Contudo, pego de surpresa, o cineasta entrou em pânico, deu uma desculpa e sumiu. Nada disso é verdade, apesar da dúvida implícita a respeito de sua potência sexual, não é impossível, sugere Kezich, que a fábula tenha sido inventada pelo próprio Fellini (21).

A Coisa da Reputação...


O Casanova de Fellini desagradou aos produtores
norte-americanos, que o consideraram um zumbi, sem
a alegria que eles esperavam e mergulhado num filme
repleto de masturbações mentais para intelectuais

Aquele que Sabe Viver (Il Sorpasso, direção Dino Risi, 1962) e Pasqualino Sete Belezas (Pasqualino Settebelleze, 1975) são exemplos deste tema no cinema italiano daquela época. No primeiro caso, um playboy de meia idade contracena com um jovem tímido. Muito ligado em seu carro, um símbolo da inserção da Itália na sociedade de consumo do pós-guerra, o playboy fala muito, mas nunca o vemos realmente conquistar mulher nenhuma. No segundo caso, Pasqualino é o típico machão napolitano que dá em cima de todas as mulheres, mas mantém as mulheres de sua família sob estrita vigilância. Chegada a guerra, sua única chance de sobrevivência no campo de concentração nazista é seduzir a sanguinária alemã que comanda o inferno. No final, Pasqualino será subjugado pela mulher gigante, insaciável e dominadora, numa inversão total de papéis sociais.

Jean-Max Méjean considerou Casanova de Fellini um filme admirável, mas de uma tristeza infinita e de um completo desespero (22). O erotismo na obra de Fellini é curiosamente pudico, mesmo que seus filmes sejam repletos de frases obscenas, ruídos intempestivos e seios generosos. A visão de Casanova é perturbadora e embaraçosa, no limite da pornografia, mas sem chegar a ela. A presença de um passarinho metálico para simbolizar, quando ela chega, a ereção do membro viril de Casanova, é muito mais significativa do que teria sido a visão explícita – em italiano, como em português, a palavra “passarinho” também designa o membro sexual masculino, tendo já sido utilizado um passarinho em publicidade de cuecas no Brasil.

De fato, poderíamos traçar um paralelo com outro filme que aborda o contexto “sócio-patológico” do machismo latino. Marcello Mastroianni, um dos arquétipos do amante latino nas telas de cinema, é o siciliano Antonio Magnano em O Belo Antônio (Il Bell’Antonio, direção Mauro Bolognini, 1960). Cobiçado pelas mulheres, seu problema é que ele é impotente quando tenta transar com a mulher que ama - ele só funciona sexualmente com prostitutas. A família o “ajuda” arranjando seu casamento com a empregada da casa que Edoardo, seu melhor amigo, engravidou – ela será exposta para a cidade no balcão da casa. O filme é uma adaptação do romance homônimo de Vitaliano Brancati (1907-1954) publicado em 1949, que articula o gallismo, ou o complexo de Don Juan característico dos homens do sul da Itália, a uma mentalidade fascista. 

Brancati sugere assim o fracasso do fascismo de Mussolini, ele próprio um homem que se vangloriava de seu poder sobre as mulheres que, durante seus discursos, deixavam suas calcinhas pelas calçadas. Para que não fosse visto como a origem da “doença” do filho, seu pai (que se vangloriava de haver sido eleito pelos fascistas o federale da cidade de Catania porque transou com nove mulheres) vai ao bordel e tem relações sexuais até morrer. Porém essa demonstração de machismo vai por água abaixo quando sua esposa confessa à infeliz esposa de Antônio que o pai dele falhou por dois anos após o casamento. Méjean especula se Fellini não estava mandando uma mensagem ao pai com Casanova. Não o seu próprio, mas à figura paterna no plano simbólico: erradicar, castrar o pai ideal italiano. 

Casanova de Simenon


O Casanova felliniano encontra seu
prolongamento no excêntrico senhor Katzone, o
Don Juan de Cidade das Mulheres. Personagem
inspirado no escritor Georges Simenon (23)

Fã de Casanova e Fellini, já sabemos das dez mil mulheres de Simenon, portanto era previsível que considerasse Casanova de Fellini uma obra prima e que chorou ao ver o filme. Foi após o lançamento na França em 1977, quando se publicou uma conversa entre os dois amigos (24). O cineasta disse que sua primeira conclusão quando começou a (tentar) ler as memórias (que chamou de “lista telefônica”) de Casanova foi que não se tratava de um artista – “ele nunca fala da natureza, das crianças, dos cachorros, nada” (25). De acordo com o próprio Fellini, trata-se de um filme sobre o vazio existencial, de alguém que representa o tempo todo e que se esqueceu de viver realmente. No final, marionete de si mesmo, Casanova contempla seu universo feminino. Tentando fazer Simenon entender, Fellini confessaria:

“Foi então, evidentemente, que compreendi o sentido da profunda aversão que senti em relação à Casanova. Esse filme que recusei tanto iria marcar uma fronteira não em minha carreira, mas em minha vida. Depois desse filme, deveria morrer enfim a parte de mim versátil e mutante, a parte de mim indecisa, eternamente tentada pelos compromissos, a parte de mim que não quer se tornar adulta. O filme, para mim, é bem isso, ‘a passagem da linha’, o escorregão na direção do último pagamento da vida. Eu tenho 57 anos, os sessenta estão chegando. Inconscientemente, talvez, eu coloquei nesse filme todas essas ansiedades, esse medo que me sinto incapaz de afrontar. O filme, talvez, se alimentou de meu medo. Eu não me expliquei bem...” (26)
Na opinião de Simenon, com Casanova Fellini fez uma verdadeira psicanálise da humanidade. Comparando o cineasta a Baudelaire, van Gogh e Edgar Allan Poe, Simenon chama Fellini de poeta maldito. Ou seja, explicou o escritor, todos aqueles “malditos” que trabalham mais com seu subconsciente do que com a consciência. Simenon disse também que Casanova de Fellini evoca Goya, o pintor espanhol. Como ele, o cineasta “pinta” com o coração. Como nos trabalhos de Goya, as festas em Veneza, os jantares e as festas do filme apontam para a morte. 

A mulher ideal do Casanova de 
Fellini é uma boneca mecânica

Simenon notou outra particularidade no Casanova construído por Fellini, ele não tira as calças na hora do sexo. De fato, Fellini disse que os produtores norte-americanos ficaram chocados com isso! “O filme não é erótico, diziam eles, não é sexy...”. Em relação às calças de Casanova, Fellini contou uma outra história mais interessante. Certa vez em Roma um casal se aproximou dele e o cumprimentou pelo novo filme. Então, o homem afastou um pouco a mulher e, intrigado com a grande distância que Casanova parecia se afastar durante o ato sexual, perguntou a Fellini quais eram as verdadeiras medidas do membro de Casanova. O cineasta respondeu que tudo aquilo é encenação, simulação! Fellini disse que o rosto do homem se iluminou repentinamente e ele repetiu a resposta enfaticamente para a mulher. 

Outra coisa que chamou atenção de Simenon foi o estranho sutiã que Casanova usa. Fellini esclareceu que não se trata de nenhuma peça de roupa do século XVIII, apenas algo que o próprio cineasta usou durante sua infância (e ainda na época da entrevista, confessou aos risos). A intenção, justamente, era acentuar o aspecto infantil de Casanova. Fellini disse que durante as filmagens da cena final quando Casanova dança com a boneca mecânica, todos os funcionários pareciam emocionados. O cineasta acredita que a cena materializou um desejo infantil deles em possuir uma mulher como aquela. Contudo, ao mesmo tempo, a cena aflorava neles certo remorso tipicamente italiano. O remorso de considerar a mulher como uma coisa morta, uma coisa para fazer amor ou para pendurar na lareira.

Em 1984, ao encerrar uma série de entrevistas com Giovanni Grazzini, e sem saber o que dizer sobre o que seria seu próximo filme, Fellini confessa que gostaria de contentar aquelas pessoas, na maior parte mulheres, que se aproximam timidamente dele depois de cada filme lançado e perguntam esperançosas: “Mas por que você nunca faz uma bela história de amor?”



Exceto por pequenas variações de configuração do texto que não modificam seu conteúdo, Casanova e o Infantilismo Italiano foi publicado originalmente na Revista Universitária do Audiovisual, da Universidade Federal de São Carlos, São Paulo (RUA/UFSCar).

Leia também: 


Notas:

1. PETTIGREW, Damian. I’m A Born Liar. A Fellini Lexicon. New York: Harry Abrams Inc., 2003. P.  39.
2. KEZICH, Tullio. Federico Fellini. His Life and Work. New York/London: I.B. Taurus, 2006. P. 318.
3. Italian Cinema. From Neorealism to the Present. New York/London: Continuum, 3ª ed, 2008. P. 320-1
4. QUINTANA, Àngel. Federico Fellini. Paris: Cahiers du Cinéma, 2007. P. 71.
5. KEZICH, Tullio. Op. Cit., p. 367.
6. FELLINI, Federico. Fazer Um Filme. Tradução Mônica Braga. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2ª edição,2004. Pp. 221-2; PETTIGREW, Damian. Op. Cit., pp. 38-9.
7. PETTIGREW, Damian. Op. Cit., pp. 317-29.
8. WIEGAND, Chris. Federico Fellini. A Filmografia Completa. Köln: Taschen, 2003. P. 151.
9. GRAZZINI, Giovanni. Fellini par Fellini. Entretiens Avec Giovanni Grazzini. Paris: Flammarion, 1984. Pp. 164-5, 184-5.
10. BONDANELLA, Peter. Italian Cinema. From Neorealism to the Present. New York/London: Continuum, 3ª ed., 2008. P. 321.
11. CHANDLER, Charlotte. I, Fellini. New York: Random House, 1995. P. 190.
12. Idem, p. 189.
13. QUINTANA, Àngel. Op. Cit., pp. 72-4.
14. Idem, p. 75.
15. Fellini, a História de Um Mito (Fellini dice...). Paris Filmes, 2004. DVD, Documentário.
16. BOARINI, Vittorio; KEZICH, Tullio (eds.). Federico Fellini. The Book of Dreams. New York: Rizzoli, 2008. P. 474.
17. LEGRAND, Gérard. Federico Fellini. In : BERGALA, Alain; DÉNIEL, Jacques; LEBOUTTE, Patrick (orgs). Une Encyclopédie du Nu au Cinéma. Éditions Yellow Now/Studio 43 – MJC/Terre Neuve Dunkerque, 1991. P. 158.
18. CHANDLER, Charlotte. Op. Cit., p. 190.
19. MÉJEAN, Jean-Max. Fellini, un Rêve, une Vie. Paris: Éditions du Cerf, 1997. P. 20.
20. BONDANELLA, Peter. The Films of Federico Fellini. UK/US: Cambridge University Press, 2002. P. 96.
21. KEZICH, Tullio. Op. Cit., p. 164.
22. MÉJEAN, Jean-Max. Pp. 213-4.
23. QUINTANA, Àngel. Op. Cit., p. 75.
24. FELLINI, F; SIMENON, G. Carissimo Simenon, Mon Cher Fellini. Paris: Éditions de l’Étoile/Cahiers du Cinéma, 1997. Pp. 88-96.
25. Idem: 89.
26. Ibidem, p. 90.

Sugestão de Leitura

As Mulheres de Federico Fellini (I)

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