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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

29 de ago. de 2009

As Mulheres de Pier Paolo Pasolini (XII)

Medéia


“Quando eu
escolhi essa tragédia de
barbarismo, onde vemos uma
mãe assassinar seus filhos por
causa do amor por um homem,
o qu
e mais me fascinou foi a
falta de limites e o exagero
de seu amor” (1)



A Narrativa

Essa estória antiga nos conta a respeito de Medéia, que se vinga de Jasão matando os filhos que teve com ele, assim como sua atual esposa. Medéia incorpora um mundo arcaico e religioso. Jasão, um herói da época, ao contrário, é racional e pragmático. Tendo o sucesso como única preocupação, ele perdeu o sentido do mundo imaterial. No fundo uma estória de amor, o drama gira em torno da incompatibilidade entre duas culturas. Uma adaptação de Pasolini do texto escrito no século V a.C. por Eurípedes, o filme começa com Jasão, sua educação com pelo Centauro e sua busca pelo Velocino de ouro. Pasolini filma Medéia (Medea) em 1969.


“Dá vida à
semente e
renasce com
a semente”


Medéia, depois que o sacrifício
humano foi feito e queimado
durante o ritual
de fertilidade


Então passamos para o mundo de Medéia, onde acompanhamos um ritual com sacrifício humano. Seria um ritual de fertilidade, onde todos comem a carne do morto e esfregam alguns dos pedaços e o sangue em suas plantações. Com isso somos apresentados ao mundo dessa mulher, uma sacerdotisa e suas ligações com o sagrado. Veremos o choque entre o mundo dela e o de Jasão, essa mulher renuncia a seu universo em nome de Jasão e no final percebe que este homem não pretende ser nada para ela.



“Tenho um sombrio pressentimento de dor”

Medéia, quando manda
seus filhos levarem o presente
mortal para Gláucia



Medéia abandona sua posição de sacerdotisa em Cólquida (filmado na Capadocia, Turquia) para acompanhar Jasão até Corinto (filmado na Cidadela em Alepo na Síria; e na Piazza dei Miracoli, em Pisa, Itália). Ela rouba a pele sagrada do carneiro de ouro (matando seu irmão Absirto no processo), centro espiritual de sua comunidade, para ofertá-la a Jasão, cuja única intenção desde sempre foi repassar essa pele como condição para reaver seu trono. Desde o primeiro momento que ela chega à terra de Jasão, percebemos a diferença em relação ao mundo que pertencia. Quando Medéia, em função de suas conexões com o sagrado, corre assustada avisando a Jasão e seus homens que falta um centro naquele lugar, tudo que eles fazem é rir dela.

A situação, que vai se deteriorando, desmorona quando Jasão recebe a mão de Gláucia com as benções do pai dela, Creonte, o rei de Corinto. Traída pelo homem por quem abriu mão de seu mundo sagrado, Medéia mata Gláucia e os dois filhos que teve com Jasão. Ele não está interessado na vida espiritual dela, sua ligação com Medéia é puramente utilitária. Ela não passa de um meio para alcançar um fim. Trata-se de uma abordagem materialista em relação a essa união física, que não demonstra nenhuma preocupação com o modo de vida autêntico da comunidade e Medéia.


“Não! Não insista!
É inútil! Nada mais
é possível agora”


Medéia para Jasão,
durante o desfecho trágico


No prólogo do filme, centralizado na vida de Jasão com o Centauro, já podemos perceber a indiferença do menino. Ainda criança, Jasão já se mostra entediado (e acaba dormindo) enquanto o Centauro lhe afirma que tudo é sagrado e nada é natural. Tudo está ligado a um deus, nada é apenas natureza. Jasão não reterá nada desses ensinamentos, batendo de frente com o estilo de vida da sacerdotisa, totalmente direcionado ao sagrado e ao metafísico (2).

A Mãe do Marido

Medéia é, ao mesmo tempo, mãe biológica e, como sacerdotisa, mãe espiritual de todos (incluindo a geração de filhos representados por Jasão). Sendo assim, a coisa vai além da traição e vingança entre marido e esposa. Como Mamma Roma (no filme homônimo, 1962), Médeia pertence a uma cultura primitiva e marginal (no caso da primeira, a periferia de Roma). Como Mamma Roma, Medéia está visivelmente atraída para a nova vida – o mundo desconhecido de Jasão. Um pouco além dos dotes de Mamma Roma (3).

Seja para criar ou destruir, Medéia age de acordo com crenças que sustentam a vida através de conexões espirituais profundas. Mesmo o fato de ela roubar a pele do carneiro dourado não pode ser reduzido a um capricho, mas está ligado ao seu desejo de associação com o divino. Todas as suas ações (trair seu povo, assassinar Absirto, envenenar Gláucia, ou mesmo matar seus filhos) têm como objetivo salvar o sagrado.

Os Olhos de Medéia

Pasolini procurou mostrar esse sentimento de Medéia através de closes do rosto e olhos. Ao contrário da forma como apresentou mães em outros filmes, ela também é mostrada de perfil. O olhar de Medéia está sempre focado, sua postura ereta e seu silêncio fazem dela uma figura a parte. Durante o ritual de fertilidade, Pasolini alterna entre planos médios e closes dela e, enfatizando sua vigilância severa, muitas vezes ela é mostrada de perfil. Pasolini privilegia o mesmo perfil novamente mais tarde, quando uma Medéia adormecida prevê a chegada de Jasão.

Esses planos de perfil revelam sua natureza dupla: enquanto uma parte dela está firmemente enterrada na realidade espiritual de Cólquida e seu povo, o outro lado está aberto ao desconhecido e a fenômenos que a levarão para longe de suas origens. Pasolini também fez uso de planos gerais, imergindo Medéia no ambiente agrícola de Cólquida – como elemento central dos rituais de fertilidade ou em sua posição ligeiramente destacada da multidão. No final da estada em Cólquida, pudemos ver Médeia e sua família tão incrustada na pedra da moradia que se fundem visualmente.

Outro meio utilizado por Pasolini para mostrar a autenticidade de Medéia é enfatizando sua difícil inserção naquele novo mundo. Ao chegar da longa viagem marítima, Medéia procura por um sinal do sagrado que possa restabelecer sua comunicação com os deuses. Aqui, os planos gerais não conotam comunhão ou imersão no novo mundo. Ao contrário, sugerem desorientação em relação a essa terra. É nesse momento que Jasão e seus homens riem de Medéia, enquanto ela procura avisar que aquela terra não possui um centro.

Jasão nem percebe a importância dessa união física para Medéia, ela pretende se conectar com ele literalmente, fazendo dele o centro de sua existência. Ela nunca será central para ele, durante a viagem marítima os olhos de Medéia se fixam em Jasão e o estudam como a um objeto estranho. Da parte dele, nenhum olhar para ela. Ele não procura contato, nem com ela, nem com o sagrado nela. Será depois disso que, já em terra, ele e seus homens riem da preocupação com a falta de um centro naquela terra. Nem mesmo durante o sexo, quando os olhos dela estão procurando uma conexão com ele, Jasão olha para cima (em nossa direção). Apesar de ter dois filhos com Medéia, ele aceita a permissão de Creonte para se casar com Gláucia.

O Mundo físico e o Metafísico

Em Cólquida, Medéia tinha uma função central na associação entre o físico e o metafísico. Quando ela vê Jasão pela primeira vez, numa visão ou sonho, Medéia o percebe como uma nova divindade. Por esse motivo abraça sua chegada sinceramente. Por essa razão, quando ele realmente chega a Cólquida, ela rouba para ele o velocino dourado e se junta a esse que ela acredita que é um novo deus. Mais adiante, Medéia une os aspectos físico e metafísico de sua vida através do sexo com Jasão – ela redescobre o poder do sagrado no sexo (4).

Durante o sexo, ela tem um olho aberto todo o tempo, e seu reino de visão está totalmente consumido pela presença de Jasão. Quando Medéia deixa Cólquida, ela perde o papel central que tinha na sociedade. Ainda assim, a essência de sua vida e espiritualidade mantém-se intocada, já que ela investe sua energia em construir uma relação duradoura e sacro-santa com Jasão. Em nenhum outro momento isso é mais aparente do que quando ela estuda o corpo dele, após transar com ele pela primeira vez. Ela olha para o homem enquanto está dormindo.

Seguindo o ponto de vista de Medéia, a câmera acompanha o perfil daquele corpo, da cabeça aos pés. Foi o próprio Pasolini que filmou a cena, na qual a silenciosa observação de Medéia reflete a expressão de sua subjetividade espiritual, presente desde o começo do filme. Através desse ritual privado, ela estabelece o corpo de Jasão como seu centro espiritual. A emoção é tão forte que ela acorda o homem para fazer amor com ele (isto é, fazer contato com o sagrado) uma vez mais (5).

As Visões de Medéia (que não vimos)

Pasolini filmou algumas seqüências de sonhos, que decidiu retirar da versão final (6). O filme contém apenas uma, que prenuncia o feitiço sobre Gláucia. A primeira visão era para seguir o momento que Jasão abandona Medéia e ela mergulha numa crise. É a segunda (e definitiva) crise que a alcança após a fuga de Cólquida. Inicialmente, seu amor compensou sua perda religiosa. Mas agora, ela “novamente perde qualquer conexão possível com a realidade, que se torna um lugar de pesadelo para ela, uma prisão, um mero espaço físico em qualquer sentido” (7).

O próximo sonho é um pesadelo. Medéia está cavando em Cólquida, enquanto dois homens se preparam para realizar um sacrifício humano. A vítima não tem rosto e Medéia não consegue cavar a terra, enquanto os homens a apressam. Eles matam e esquartejam a vítima, com risos e uma linguagem gutural de sonho eles dizem para ela esperar. A cena é uma variação daquela que acompanhamos no princípio do filme. Nesse pesadelo, contudo, ela é reduzida a passividade; meramente uma presença muda assistindo a um sacrifício humano (8).

Então ela está em sua casa em Corinto e o sol aparece para ela em forma humana. Uma duplicação acontece. Uma Medéia, da realeza, se expressa através dos versos de Eurípedes e fala de vingança, confiante e senhora de si e da realidade. A outra Medéia, ao contrário, observa, tremendo, ansiosa, infeliz, suplicante, e que não teme em exibir seu terrível medo e insegurança enquanto assiste ao que acontece (9). Medéia se torna uma só novamente e observa uma série de maravilhas, que Pasolini chamou de “ressurreição dos corpos”: uma semente floresce e torna-se uma planta, noutro momento, Medéia se metamorfoseia tornando-se um enorme olho.

Entretanto, esta não era uma semente comum, mas sangrentos membros humanos que se juntam para formar um corpo humano. Ratos saem das aberturas e se transformam em seres humanos com máscaras, a morte. O único olho de Medéia olha como um grande peixe. A carruagem do sol vem e a leva com seus dois filhos. No roteiro do filme, Pasolini escreve que o sol é ao mesmo tempo o deus da fertilidade e o da morte. Nessa visão Medéia também é uma presença passiva.

O sol retorna no segundo sonho de Medéia, e uma vez mais ela é partida. Uma está na cama ao lado de seu amante, ansiosa e implorante. A outra segue o sol. Essa visão acontece depois que Medéia e Jasão fizeram sexo (após o fim da relação), e precede a visão profética do presente para Gláucia – um vestido confiado à Medéia pelo sol, que fala com ela inclusive. A visão do presente fatal para Gláucia, que se manteve na versão final, é uma profecia do crime e vingança da sacerdotisa. Primeiramente um ritual que acontece na imaginação, e em seguida na realidade.


Visões
de Medéia
foi o título
provisório
do filme

Sufocando (de amor) a Filharada

A harmonia do começo não resiste à indiferença de Jasão e a essência divina de Medéia. Indiferença tão problemática quanto a dificuldade de diferenciar-se da mãe que encontramos no “Ettore de Mamma Roma” e no “Édipo de Jocasta” (em Édipo Rei, Edipo Re, 1967). A incapacidade de Ettore e Édipo em superar a influência materna dominante em suas vidas também destruirá seu eu e a sensação de controle sobre suas vidas. A postura de Jasão impedirá qualquer futuro para sua família, além de cavar um abismo cultural intransponível.

Ainda assim, a atração de Ettore e Édipo pelo mundo de suas mães e identidade com o passado torna a coexistência no presente dessas mães e filhos fértil para o estudo das origens culturais puras e autenticidade humana nos filmes de Pasolini. “(...) É como se, através de suas lutas, Pasolini estivesse sugerindo que precisamos ver e sentir a subjetividade do ‘Outro’ de maneira a viver efetivamente e de forma autêntica, mesmo que essa união leve a um fim trágico (...)” (10). Já vimos que, enquanto sacerdotisa, Medéia também pode ser como uma mãe de Jasão.

Ela experimentou essa relação com o filho contando que ele assumiria certa função de responsabilidade enquanto fortaleza espiritual de suas vidas. Apenas após descobrir a falta de autenticidade dele (seus planos com Gláucia) Medéia reúne suas forças e impõe sua visão e sua vontade. Ao contrário de Mamma Roma ou Jocasta, Medéia não exerce controle direto sobre a mente de Jasão. Entretanto, eventualmente ela inibe a ação dele e elimina sua habilidade de controlar o próprio futuro. Ele nada pode contra a onipotência dessa mãe espiritual.

Contudo, a tragédia em Medéia não é o resultado de imersão psicológica excessiva entre mãe e filho. Pasolini (e Eurípedes?) vai além. A tragédia seria o resultado de um profundo choque cultural através do qual Medéia exige sua onipotência materna e libera sua identidade espiritual primária punindo Jasão e seu mundo pela profanação. A exclusão cultural de Medéia fica evidente no fato dela morar fora dos muros de Corinto. No esquema das coisas, o mundo de Jasão é corrupto e sem sentido. Mesmo seus descentes devem morrer, pois não há como viver assim.

A Medéia de Eurípedes teria mandado seus filhos para o sol, para renascer num domínio novo e sem corrupção. Medéia de Pasolini termina com o rosto atrás de uma parede de fogo. Se o pôr-do-sol, que surge depois do rosto de Medéia no fogo, sugere o fim de Jasão e seu legado, pode também sugerir que o nascer do sol (quer dizer, vovô Apolo) carregou as crianças de Medéia para casa e para um novo começo. Conclusão, pelo menos, da seqüência final: “Não há lugar para a sacralidade e a autenticidade cultural de Medéia, seja na esfera pública ou na privada” (11).


“Um grande sol
vermelho/sangue fe
cha
a estória
, da mesma
forma como foi aberta
no princípio”
(12)


Notas:

1. Pier Paolo Pasolini. Citado em SCHWENK, Bernhart; SEMFF, Michael (eds.). P.P.P. - Pier Paolo Pasolini and Death. Ostfildern-Ruit, Germany: Hatje Cantz Verlag, 2005. Catálogo de exposição. P. 197.
2. RYAN-SCHEUTZ, Colleen. Sex, the Self, and the Sacred. Women in the Cinema of Pier Paolo Pasolini. Canada: University of Toronto Press, 2007. P. 71.
3. Idem, p. 68.
4. FUSINI, Nadia. Il Grande Occhio di Medea. In Laura Betti & Michle Gulinucci (eds.) Le Regole di Un’illusione (1991). Citado em RYAN-SCHEUTZ, Coleen. Op. Cit., p. 241n44.
5. RYAN-SCHEUTZ, Coleen. Op. Cit., p. 70.
6. Parcialmente preservadas, elas foram lançadas como Visioni della Medea, num dvd em torno de 40 minutos e que também trás algumas tomadas alternativas.
7. Pier Paolo Pasolini. Medea. Milano, 1970. P. 63. In SCHWENK, Bernhart; SEMFF, Michael (eds.). Op. Cit., p. 100n22.
8. SCHWENK, Bernhart; SEMFF, Michael (eds.). Op. Cit., p. 101.
9. Ver nota 7. P. 101n24.
10. RYAN-SCHEUTZ, Coleen. Op. Cit., p. 71. O grifo é meu.
11. Idem, p. 73.

12. BERTELLI, Pino. Pier Paolo Pasolini. Il Cinema in Corpo. Atti Impuri di un Eretico. Roma: Edizioni Libreria Croce, 2001. P. 227.


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