Quando o cinema
nos leva há um tempo
e espaço longe deste
em que vivemos (sem
nos descolarmos dele), então nós descobrimos finalmente que existiu
um cineasta chamado
Valerio Zurlini
Verão Violento (Estate Violenta, 1959), A Moça com a Valise (La Ragazza com La Valiglia, 1961) (imagem acima) e A Primeira Noite de Tranqüilidade (La Prima Notte di Quiete, 1972) são os filmes que compõem o que Antonio Costa chama de Trilogia da Riviera Romagnola, do cineasta Valerio Zurlini. Com este nome Costa se refere a uma região da Itália muito conhecida como cenário para filmes que se passam nas férias e que, por sua vez, tem relação com a fase do Milagre Econômico italiano – uma época em que as pessoas passam a dispor de mais dinheiro e tempo livre.
Rimini, a cidade natal de Federico Fellini está localizada no litoral da Emilia Romagna. Uma cidade a qual o cineasta se refere, direta ou indiretamente, em seus filmes. Na mitologia do cinema italiano, Rimini é a cidade das férias a beira mar, ponto de referência de um “cinema balneário” – ou de comédia de balneário. Toda uma nova iconografia, distante do Neo-Realismo italiano, aflora: a praia a barraca de praia, o carro popular, a auto-estrada, as canções da época, dão forma a uma mitologia do consumismo motorizado e de feriado. (imagem ao lado, Verão Violento)
Como Fellini, embora com diferente sensibilidade, Zurlini é um exemplo da fidelidade de um autor a uma paisagem, a um “clima figurativo”. Antonio Costa chama atenção para a abordagem de Zurlini em relação à pintura de Morandi, para exemplificar a maneira como o cineasta mostra aquela região italiana. A propósito de Morandi, Zurlini escreveu: “tendendo a afastar-se sempre mais da própria geografia real, da própria essência física para ganhar a duras penas e incrível certeza o tempo do espírito, o secreto e despido ritmo da contemplação e da fantasia” (1). No cinema de Zurlini, não estamos mais no tempo e no espaço onde aparentemente nos encontramos...
Em Verão Violento, o tema da transgressão e do desejo daquele casal é reservado a um lugar autônomo, absoluto: apenas em parte ele se deixa contextualizar, apenas em parte se deixa “situar” pelo filtro da memória histórica. Mesmo nas várias cenas realistas, Zurlini dá maior ênfase à dimensão psicológica e individual – como nas cenas em que assistimos a reação da multidão ao fim de Mussolini ou ao ataque aéreo no final do filme. A estória é ambientada em Riccione, e os locais de férias vêm “datados” através da dança da época, com uma música que produz um estranhamento em relação às imagens e sons do Fascismo.
“Já neste primeiro capítulo da trilogia, Zurlini se coloca naquela ‘tradição dos cineastas da paisagem’, segundo a definição de Jean Gili, tornando essencial a escolha da ambientação, que se torna ‘parte integrante da obra’, e não elemento puramente decorativo” (2)
Em A Moça com a Valise (imagem acima), a ambientação costeira é evidente, em elementos de uma iconografia do ambiente de férias: o bar, a máquina de música (jukebox), os cartazes publicitários, a praia, a estação ferroviária (uma estação em Rimini, ao mesmo tempo reconhecível e abstrata). O desenvolvimento da trama, a vida da mulher vítima de um mundo cínico e vulgar e o amor impossível de um adolescente, encontra seu clímax nas mais óbvias e banais situações das cidades balneário. Mas é justamente neste cenário que o drama do adolescente encontra um sotaque de intensidade e verdade singular.
Em A Primeira Noite de Tranqüilidade (imagem acima), Zurlini retorna a Rimini durante o inverno. Apesar de algumas cenas externas detalhadas, como a da Praça Cavour onde Gerardo estaciona seu Miura, Zurlini privilegia interiores sujos ou de decoração desalinhada, paisagens nebulosas, vistas marinhas ou detalhes da praia: privilegia um espaço agora sem perspectiva (nos sentidos técnico e metafórico). Espaço desestruturado que remete a um sentimento de perda.
Espaço que Zurlini contrapõe ao cenário da Igreja em ruínas, onde Daniele e Marina visitam a imagem da Madonna del Parto (1467), de Piero Della Francesca. Nesta imagem, lembra Costa, o princípio organizador do espaço é o corpo humano, que, neste sentido, contrapõe-se idealmente a espacialidade “esvaziada” que prevalece no filme. A morte de Daniele num acidente automobilístico, Costa sugere ainda, lembra a mítica de James Dean. Mais que introduzir na estória um efeito de volta ao passado, esta escolha da direção parece querer confirmar aquela idéia de inevitabilidade de um destino de distanciamento e de perda que percorre todo o filme.
Leia também:
O Cinema Político de Valerio Zurlini
Notas:
1. COSTA, Antonio. Paesaggi Visivi e Sonori Nella “Trilogia della Riviera” IN ACHILLI, Aberto; CASADIO, Giamfranco. Elogio Della Malinconia. Il Cinema di Valerio Zurlini. Ravenna: Edizioni Girasole, 2000. P. 25.
2. Idem, p. 26.