“Se a África ainda está
como está, ou vocês não
nos ensinaram nada ou
teria sido melhor que
não o tivessem feito”
Resposta de Lalubi ao oficial holandês
que sugeriu que a África sem os europeus
se entregou à barbárie do genocídio
Novamente os Sádicos Europeus
Estamos na África negra ao sul do deserto do Saara, mas poderia ser lá também. Os europeus ainda se encontravam em suas colônias africanas na década de 60 do século passado quando começam a irromper movimentos que levam à independência da maioria dos países africanos que por séculos estiveram sob as botas de ferro das mais variadas nações européias – que abaixo do equador rasgaram todos os seus princípios de igualdade, fraternidade, liberdade e democracia em nome de seus interesses econômicos. Lalubi, é um dos líderes de um desses movimentos de libertação nacional. Prega a não violência e o direito a autodeterminação de seu povo. É caçador por militares europeus no que parece ser o antigo Congo belga. Nos momentos iniciais do filme, sucedem-se imagens de seus encontros clandestinos com o povo oprimido de seu país e chacinas patrocinadas pelo invasor branco em seu encalço. São os derradeiros momentos de uma aventura colonialista sanguinária – o colonizador português resistirá até meados da década seguinte, quando uma revolução em seu próprio país libertará os portugueses da opressão e do atraso político.
Os governos
europeus falam de liberdade e justiça,
mas mataram todos os africanos que puderam
e ainda hoje se servem
do caos na África
As tropas belgas finalmente encontram Lalubi e, como seria de se esperar de um colonizador europeu desesperado, torturam-no com requintes de crueldade típicos da arrogância européia. Também parecem neste momento os parceiros africanos dos brancos imperialistas. Sem pudores, sugerem que Lumumba deveria ser assassinado. O oficial holandês encarregado do centro de tortura parece cansado de comandar um bando sanguinário de açougueiros, mas coopera com os políticos corruptos da área porque é assim que os europeus trabalham. Simulam uma fuga de Lalubi e o matam, juntamente com o ladrão italiano com quem dividiu a cela. Sentado a sua direita, o italiano olha o corpo morto de Lalubi. No momento seguinte, ele próprio será fuzilado e cairá sobre o corpo do africano formando uma cruz. Os europeus saíram, mas continuam lá. Agora vendem armas para alimentar seus bolsos com o sangue das intermináveis guerras civis. Continuam lá e lá ficarão até que todos os africanos que sobraram se mudem para a Europa, que então fará renascer seus líderes políticos xenófobos e nazistóides. Reivindicarão “a Europa para os europeus”, até que o próximo Hitler seja parido de suas próprias entranhas e dê uma surra em todos eles novamente.
No país do neo-realismo,
era difícil abordar a
história por outro ângulo
Sentado à Sua Direita (Seduto alla sua Destra, 1968), penúltimo longa-metragem dirigido por Zurlini, recebeu críticas muito negativas na época de sua estréia (1). Na superfície um filme aparentemente distante da temática zurliniana, seu conteúdo explicitamente político está perfeitamente inserido no contexto de 1968, um ano conturbado na vida política e cultural da Europa Ocidental – que falava em liberdade, mas sustentava seu crescimento econômico em grande parte com a exploração de suas colônias na África e Ásia, onde também dava asas a um sadismo racista inconfessável. O filme é uma adaptação da biografia de Patrice Lumumba (1925-1961), líder nacionalista do Congo – ex-colônia belga no centro da África. Chegou a Primeiro Ministro depois da independência, mas rapidamente foi deposto e assassinado – até hoje existem suspeitas de que os belgas foram auxiliados pelos Estados Unidos. Giacomo Martini fala de um “cinema político” de Zurlini, não apenas pelo conteúdo de Sentado à Sua Direita, mas também em função de um questionamento dos cânones neo-realistas. De acordo com Martini, o cinema de Zurlini mostrou como capturar as contradições de uma sociedade também através da metáfora, da parábola, da ironia e do paradoxo através de uma análise de caráter psicológico e existencial. De fato, no próprio Michelangelo Antonioni encontramos indícios disso.
Martini está sugerindo que o cânone neo-realista, cuja importância não pode ser negada, tornou-se um fardo pesado demais para o cinema italiano, impedindo que se considerasse lícito contar a História laçando mão de elementos psicológicos e existenciais e não apenas sociológicos e políticos (2). Uma história pode ser contada a partir da alma e das dores de personagens, a dimensão privada e existencial pode servir a análise social e política sem recorrer a imagens “documentais” de forte impacto “realista”. A propósito de Antonioni, por exemplo, veja-se a mudança de clima em Profissão: Repórter (Professione: Reporter, 1975), quando o cineasta insere imagens supostamente documentais de um fuzilamento na África – embora Antonioni sempre tenha se recusado a indicar a fonte do material ou mesmo sua veracidade (3). Zurlini não faz isso em Sentado à Sua Direita, mantêm-se dentro daquela cela com Lumumba e seu amigo, o ladrão e factótum italiano. A solidão de Lumumba, líder negro africano assassinado pelas multinacionais européias, é mais importante para Zurlini do que as imagens de arquivo que muitos cineastas utilizam para marcar a “autenticidade” de um roteiro. Zurlini era um homem de esquerda, mas havia sido acusado por quase toda a crítica de fazer filmes excessivamente intimistas. O cineasta afirmou o “realismo” não é a única maneira de compreender a realidade, de contar a história de um personagem pouco importante, tragado pela condição de objeto ou instrumento de uma dimensão social cruel e contraditória (4).
Como Mostrar a Verdade Afinal?
De acordo com Martini, o elemento central na obra de Zurlini, a solidão de seus personagens, dolorosa e profunda, a incapacidade de comunicar, é o produto de uma sociedade que gera injustiças e monstros. Os personagens de Zurlini, inclusive o revolucionário Lumumba, são impregnados de uma profunda e angustiante solidão. De Verão Violento (Estate Violenta, 1959) e O Deserto dos Tártaros (Il Deserto dei Tartari, 1976), a mesma solidão presente em Dois Destinos (Cronaca Familiare, 1962), se encontra em Sentado à Sua Direita. No caso de Lumumba, solidão que adquire um significado subversivo profundo na cena do cárcere e no encontro com a solidão do ladrão com quem compartilha seus últimos momentos. Na opinião de Martini, esta cena é uma das mais belas do cinema de Zurlini. A crítica afirmou que o cineasta fez um filme muito intimista. Ele respondeu dizendo que “se pode contar, ler a realidade social, também de modo diferente daquele ‘realista’, talvez contando a vida ‘privada’ de um personagem pouco importante ou representativo, mas sempre objeto e instrumento de uma dimensão social cruel e contraditória” (5).
A solidão
de Lalubi contamina
e dá força ao tema
político em Sentado
à Sua Direita
de Lalubi contamina
e dá força ao tema
político em Sentado
à Sua Direita
Do ponto de vista de Martini, desde Quando o Amor é Mentira (Le Ragazze di San Frediano, 1954) até Dois Destinos, encontramos personagens que apontam para a existência de uma dimensão social precária, marcada por injustiças antigas e novas. Em Dois Destinos, o conflito de classes transparece num drama familiar privado. “Se é verdade que no cinema de Zurlini é dominante o drama dos sentimentos pessoais, não podemos esquecer que a contextualização na qual a história se desenvolve representa um ato de denúncia de uma sociedade onde as divisões e as injustiças são dominantes” (6). Martini ressalta que em Sentado à Sua Direita podemos encontrar todo um complexo de problemáticas que a esquerda sempre condenou: colonialismo, racismo, os mercenários, o poder econômico das multinacionais, a violência do capitalismo contra as aspirações de liberdade e independência do povo africano e de líderes como Lumumba.
Considerado
sob o ângulo da
solidão de Lalubi, o filme não se distancia muito do restante da obra
de Zurlini
sob o ângulo da
solidão de Lalubi, o filme não se distancia muito do restante da obra
de Zurlini
A seguir ao assassinato de Lalubi, uma testemunha foi morta para que a farsa fosse completa – a vítima foi um terceiro companheiro de cela, que, apesar de alguns momentos de hesitação enquanto o italiano cuidava dos ferimentos do líder negro, nunca tomou partido na questão e até surrou o italiano quando este lhe pediu um pedaço de sua camisa para poder passar óleo nas feridas de Lalubi. A seguir, o grupo de mercenários belgas encontra outra testemunha. Um menino enrolado num pano branco, que foge enquanto os europeus tentam alcançá-lo com as balas da metralhadora. Mas ele consegue escapar. Obviamente, conclui Martini, esta imagem que compõe a cena final de Sentado à Sua Direita, representa a esperança, a continuidade da luta do povo negro pela liberdade – embora não devamos esquecer que o africano que permitiu a prisão de Lalubi ao delatá-lo também estava envolto num pano branco. Este final foi muito criticado como simples e óbvio demais. Era a primeira vez, disse Martini, que o sempre “apocalíptico” cinema de Zurlini esboçava uma mensagem positiva, uma esperança.
Antes, reclamava dos
filmes existenciais de
Zurlini. Agora, a crítica
reclama que Sentado
à sua Direita é óbvio!
“Mas não poderia ser diferente, visto o caráter marcadamente ‘político’ e terceiro-mundista do filme. Era uma escolha obrigatória apenas porque o tema que o filme seu propôs não poderia se fechar com a morte do protagonista, mas tinha de deixar aberta uma fenda. Talvez hoje, se ainda fosse vivo, Zurlini mudaria aquele final, porque a história contemporânea da África demonstrou e demonstra que também a esperança era e é uma utopia. Mas aquele final permanece uma escolha justa. Porque Zurlini, decidindo fazer aquele filme, havia aceitado um modo de trabalhar ideológico e político que não lhe pertencia. Era talvez um desafio para demonstrar a si mesmo que estas questões também não lhe eram estranhas. Mas como me disse em nosso encontro, queria se misturar, confrontar-se com um clima, uma situação dominante, para responder aos críticos que o acusavam de fazer filmes ‘intimistas’” (7).
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Notas:
1. MARTINI, Giacomo. Zurlini e le Contraddizioni del Sessantotto in ACHILLI, Aberto; CASADIO, Giamfranco (orgs.) Elogio Della Malinconia. Il Cinema di Valerio Zurlini. Ravenna: Edizioni Girasole, 2000. P. 87.
2. Idem, p. 88.
3. BRUNETTE, Peter. The Films of Antonioni. New York: Cambridge University Press, 1998. P. 140.
4. MARTINI, Giacomo. Op. Cit., p. 89.
5. Idem.
6. Ibidem.
7. Ibidem, p. 90.