“E como acabarão as
palavras de teu Deus,
as promessas sagradas,
a fé dos juramentos?
É melhor ter como
inimigos os homens
do que os deuses”
Únicas palavras de Pílades, primo
de Orestes, na Oréstia de Ésquilo
palavras de teu Deus,
as promessas sagradas,
a fé dos juramentos?
É melhor ter como
inimigos os homens
do que os deuses”
Únicas palavras de Pílades, primo
de Orestes, na Oréstia de Ésquilo
O Arcaico e o Moderno
Vivendo numa época em que os povos africanos estavam se libertando de seus colonizadores europeus, Pier Paolo Pasolini se perguntava até que ponto eles estava se libertando. O que se rotulava na época de Pasolini com a expressão “Terceiro Mundo” era, segundo o poeta-cineasta, o único lugar aonde se poderia ainda encontra alguma autenticidade. Notas Para Uma Oréstia Africana (Appunti per un'Orestiade Africana, 1970) (acima, a primeira imagem do documentário mostra o mapa do continente africano e um exemplar da Oréstia), documentário filmado por ele na busca de locações, (assista trechos no segundo vídeo) Pasolini narra sua justificativa para fundir a África de então e a Oréstia, tragédia grega escrita por Ésquilo (Eleusi, 525 a.C. – Gela, 456 a.C). De acordo com Pino Bertelli, Notas Para Uma Oréstia Africana é outro pedaço do Poema do Terceiro Mundo, iniciado um ano antes com Notas Para Um Filme Sobre a Índia (Appunti per um Film sull’India, 1967-1968). Pasolini desejava chegar à origem da sacralidade poética e da tradição africanas, transpondo para o imaginário coletivo ocidental os valores e a riqueza cultural de uma sociedade tribal por muito tempo violentada.
Para tanto, Pasolini pretendia se valer da terceira parte da trilogia de Ésquilo (formada por Agamenon, As Coéforas e As Eumênides). Especificamente, a metáfora política onde as Eríneas (deusas do momento animal do homem, cuja arma é o massacre e a vingança) seriam transformadas, através da intervenção de Atena (deusa da justiça), em Eumênides. Estas seriam então forçadas a dar vida à primeira forma de democracia possível: aquela do tribunal. A função de Orestes, o libertador (que retorna à pátria para assassinar Egisto o usurpador e a mãe traidora Clitemnestra, é levar as forças irracionais que governam a sua gente a confrontar-se com a racionalidade organizativa que nasce do trauma da libertação. Na figura de Orestes se reflete a condição daquela jovem elite intelectual africana que havia se formado no exterior, a partir de um modelo anglo-saxão ou francês, e que volta à pátria para fazer a revolução – e cujos instrumentos políticos para uma mudança da identidade do povo pertencem aos usurpadores de quem eles se libertaram (1).
Além das locações na Europa, quatro longas-metragens e três documentários de Pasolini contaram com locações na África e na Ásia. Os documentários, Notas Para Uma Oréstia Africana, em Uganda e Tanzânia. Locações na Palestina (Sopralluoghi in Palestina, 1963-1965), na Galiléia, Jordânia e Síria, e Notas para um Filme Sobre a Índia, em vários pontos do subcontinente indiano. Dos longas-metragens, Édipo Rei (Edipo Re, 1967), em Marrocos. Medéia (Medea, 1970), na Turquia e Síria (2). O Decameron (Il Decameròn, 1971), no Iêmen. As Mil e Uma Noites em Esfahan (Iran), Iêmen, Eritréia (ao norte da atual Etiópia), Afeganistão, Somália, no Hadramaut (região do Omã) e Katmandu (capital do Nepal). Ao final das filmagens no Iêmen, Pasolini filma o documentário Os Muros de Sana’a, concebido como um apelo à UNESCO pela salvaguarda da antiga cidade. A industrialização do Iêmen foi imposta de fora para dentro. A realidade do consumo que vem com ela, está por toda parte destruindo o mundo antigo (3). Ao voltar à Itália filma outro documentário, La Forma della Città. Trata-se de mostrar a cidade medieval chamada Orte, construída no topo de um monte e que aos poucos estava sendo descaracterizada pela construção de edificações em estilo moderno-funcional no entorno do monte. Pasolini chegou a inserir imagens do documentário sobre Orte naquele sobre Sana’a com o objetivo de estabelecer uma analogia entre locais ameaçados - e sugerir que Sana'a ainda tinha salvação (veja no vídeo abaixo) (4).
Na obra de Pier Paolo Pasolini, a África assume um lugar de destaque. Lá ele encontra rostos e valores de uma civilização que, no ocidente, estava sendo consumida pelo neo-capitalismo. Como ele disse: “A burguesia está triunfando, está tornando burguês aos operários e aos camponeses. Através do neo-capitalismo, a burguesia está para coincidir com a história do mundo” (5). Pasolini não era contra o progresso, o problema está mais claro na segunda parte da frase – justamente aquela que tem mais a ver com a perda de valores simbólicos e sagrados como condição para se tornar um “consumidor de verdade”; alguém sem raízes e focado apenas na compra de bens de consumo. Na África, dizia Pasolini, ainda existem sinais de uma vitalidade e uma religiosidade que se perdera na Itália. Aos críticos, ele insistia em dizer que não se tratava de nostalgia. Insistia também em defender o sentimento do sagrado: “faço sua defesa porque é a parte do homem que oferece menor resistência à profanação do poder, e é a mais ameaçada pelas instituições da Igreja” (6).
Nem mesmo as raízes no Friuli do norte da Itália ou a tão amada periferia de Roma davam a Pasolini a um alento de que em seu país ainda se poderia encontrar alguma coisa de mais puro... Mais vital e menos burguês. Não poderia ser diferente, com Milagre Econômico do pós-guerra, a Itália vai incorporando o hábito do consumo da forma mais inconseqüente possível – e, custe o que custar, ninguém estará disposto a abdicar do direito de comprar. Mas armas do marxismo, na opinião dele, eram tão ineficazes para conter o estrago quanto uma crítica racionalista. Como resumiu Maria Betânia Amoroso, “nos livros de poesia La Religione del Mio Tempo (1961), Poesia em Forma di Rosa (1964) e Transumanar e Organizar (1971), ou nos filmes Édipo Rei, Medéia ou Anotações Para Uma Oréstia Africana, a África aparece como única alternativa” (7).
Anotações Para Uma Oréstia Africana é apenas um pequeno relato aproximando-se do documentário, Pasolini estava pesquisando locações e rostos para um filme sobre a Oréstia, de Ésquilo. O filme não se concretizou, mas Anotações se mantém como o testemunho da capacidade de Pasolini encontrar a Grécia Antiga até mesmo nos rostos dos africanos. Enquanto vemos imagens de Uganda e Tanzânia numa época em que a África estava se livrando de seus algozes colonizadores europeus (com exceção de Portugal, que ainda se agarraria lá com unhas e dentes até 1975), ouvimos os comentários de Pasolini sobre os rostos, as pessoas, os locais. Ele também vai explicando como pretendia transpor a Tragédia Grega para a África contemporânea. A luta sem fim entre as forças racionais e as irracionais estava presente ali, naquele continente. Inicialmente, Pasolini pensava em fazer uma Oréstia recitada, como num coro grego antigo. Em certo momento, muda de idéia, talvez fazê-la cantada ao estilo do jazz norte-americano (8). Elemento após elemento da Oréstia, Pasolini vai encontrando aqui e ali. No caso das Erínias (ou Fúrias), não haveria correspondente humano. Então Pasolini se volta para a natureza. Como ele disse, a irracionalidade é animal, as Fúrias são deusas do momento animal do homem. Na Oréstia de Ésquilo, entretanto, as Fúrias estão destinadas a ser vencidas, a desaparecer. Com elas desaparece o mundo do ancestral. Em seu filme, explicou Pasolini, desaparece também parte da África antiga. As Fúrias se metamorfosearão em Eumênides. Como Pasolini resumiu entre 1968 e 1969: “A Oréstia sintetiza a história da África destes últimos cem anos: a passagem brusca e divina de um estado ‘selvagem’ a um estado civil e democrático” (9).
Nas últimas frases do
documentário, Pasolini
se refere às novas nações
africanas que surgem
documentário, Pasolini
se refere às novas nações
africanas que surgem
Mas aqui encontramos uma questão importante para Pasolini. Não há uma passagem, mas uma coexistência entre o antigo e o novo. Como ele diz pouco antes das últimas linhas de Anotações Para Uma Oréstia Africana, convivência entre as antigas divindades primordiais e o novo mundo da razão e da liberdade. Como explico Amoroso, encenar uma tragédia que representa a passagem da tirania ao governo democrático e ao mesmo tempo enfatizar nesse mundo novo o que era velho no mundo africano, era ver nesse universo uma saída existencial que funcionasse como fantasia para as sociedades pós-industriais (10). Nas palavras de Pasolini: “Todas as pessoas avançadas estão de acordo sobre o fato de que a civilização arcaica (chamada superficialmente de folclore) não deve ser esquecida, desprezada e traída. Mas deve ser assumida no interior da nova civilização, integrando esta última e tornando-a específica, concreta, histórica. As terríveis e fantásticas divindades da pré-história africana devem sofrer o mesmo processo das Erínias e tornarem-se Eumênides” (11).
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Notas:
1. BERTELLI, Pino. Pier Paolo Pasolini. Il Cinema in Corpo. Atti Impuri di un Eretico. Roma: Edizioni Libreria Croce, 2001. P. 237.
2. Idem, pp. 262, 356, 359-60.
3. NAZÁRIO, Luiz. Todos os Corpos de Pasolini. São Paulo: Perspectiva, 2007. P. 91.
4. SITI, Walter; ZABAGLI, Franco (eds) Pier Paolo Pasolini per il Cinema. Milano: Mondadori, 2 vols. 2001. Vol. I, p. CX.
5. Idem, p. CII.
6. AMOROSO, Maria Betânia. Pier Paolo Pasolini. São Paulo: Cosac & Naify. 2002. Pp. 72.
7. Idem, p. 73.
8. SITI, Walter; ZABAGLI, Franco (eds). Op. Cit., p. 1185.
9. Idem, pp. 1199-1200.
10. AMOROSO, Maria Betânia. Op. Cit., p. 75.
11. SITI, Walter; ZABAGLI, Franco (eds). Op. Cit., p. 1200.