“(...) Os católicos italianos viram Rossellini como um aliado bem vindo,
numa época em que a maioria do cinema esteve alinhado com a esquerda”
Stephen Gundle (1)
Breve Introdução Histórica
Antigamente, lá na época do Império Romano, os cristãos eram mortos como moscas. Num desses estádios, conhecido como Coliseu, gladiadores lutavam até a morte para diversão da massa, e parte do espetáculo consistia em deixar grupos de cristãos serem massacrados por feras (se fossem cidadãos romanos seriam apenas decapitados). No ano 313, o imperador Constantino tem uma visão e passa a tolerar o cristianismo. Entre 391 e 392, o cristianismo é proclamado religião do Império. Com a desintegração do Império, e durante muito tempo, Igreja e Estado eram a mesma coisa. (imagem acima, o helicóptero carregando a estátua de Cristo se aproxima do Vaticano, seqüência inicial de A Doce Vida)
Antigamente, lá na época do Império Romano, os cristãos eram mortos como moscas. Num desses estádios, conhecido como Coliseu, gladiadores lutavam até a morte para diversão da massa, e parte do espetáculo consistia em deixar grupos de cristãos serem massacrados por feras (se fossem cidadãos romanos seriam apenas decapitados). No ano 313, o imperador Constantino tem uma visão e passa a tolerar o cristianismo. Entre 391 e 392, o cristianismo é proclamado religião do Império. Com a desintegração do Império, e durante muito tempo, Igreja e Estado eram a mesma coisa. (imagem acima, o helicóptero carregando a estátua de Cristo se aproxima do Vaticano, seqüência inicial de A Doce Vida)
Até que em 1789 aconteceu a Revolução Francesa, que teve como uma das bandeiras a abolição dos poderes e privilégios da nobreza (os donos do Estado) e do clero (a Igreja Cristã, que tinha poder sobre os nobres). Neste particular, a idéia é que a Igreja não deveria interferir na forma como o Estado vai gerir a sociedade - uma breve leitura sobre o episódio nefasto da Inquisição bastaria para nos convencer disso. Ou melhor, as decisões do Estado não devem ser baseadas nas tradições religiosas, seja qual for a religião.
Levando tudo isso em consideração, a noção conhecida genericamente por “liberdade de expressão” seria alcançada uma vez que os cidadãos fossem livres, tanto da imposição de dogmas religiosos quanto de poderes ditatoriais de Estados tiranos, para expressar suas idéias e descobertas.
A religião católica é um dos elementos geralmente presentes nos filmes italianos, pelo menos até a década de 80 do século passado. Muito daquilo que poderíamos chamar de choque entre o velho e o novo é representado pelas relações quase sempre conflituosas entre a visão de mundo católica (com sua capacidade de influenciar a censura oficial que se poderia impor aos filmes) e os costumes dos novos tempos marcados pelo Milagre Econômico do pós-guerra.
A Virgem e a Prostituta

“Ouvindo, ouvireis, e de maneira
alguma entendereis; e, vendo, vereis,
e de maneira alguma percebereis”
Mateus, 13:14




Prostitutas e Milagres

"Os deuses não querem luxo,
mas pureza de coração"
Merope,
mas pureza de coração"
Merope,
Personagem de Édipo Rei, 1967
Direção Pasolini
Quando se fala de Federico Fellini, geralmente lembramos de sensações alegres. Filmes alegres e tristes, mas sempre envolvidos por uma aura de poesia. Ele se apresenta como "um grande mentiroso", mas como esquecer das “supostas” memórias de Fellini a respeito de sua educação em colégio de padres em Fellini 8 ½ (Otto e Mezzo, 1961) ou Amarcord (1973)? Muitos de seus filmes trouxeram-lhe problemas com a Igreja, que se considerava distorcida e questionada pelo cineasta.

Entretanto, antes de lá chegar, o helicóptero sobrevoa uma piscina em que Fellini mostra mulheres usando biquíni de uma forma que as vemos por trás (imagem acima, à esquerda). O cineasta cria desta forma um triângulo entre Cristo, uma máquina voadora e mulheres quase nuas que talvez representem uma nova sexualidade que explodia na década de 60 do século passado.

Sem esquecer a entrevista de um dos tios, onde o entrevistador dá um papel para o entrevistado com aquilo que ele deve dizer. Aqui Fellini não deixa por menos, pois o tio demonstra que é analfabeto, tendo o repórter de literalmente colocar palavras na boca do entrevistado. O episódio se passa na periferia de Roma, entre os pobres, o que desenha outro triângulo, desta vez entre pobreza, Igreja e mídia. Nesta seqüência, a ignorância e analfabetismo da pobreza são manipuláveis pelas duas forças, a velha (Igreja) e a nova (imprensa sensacionalista).


O Novo, o Velho e o Católico

"Ei, Satanás,
levante o rabo! Mostre
onde guarda os monges
no inferno"
Pedido de um anjo à Satanás em
Os Contos de Canterbury, 1972
Direção Pasolini
levante o rabo! Mostre
onde guarda os monges
no inferno"
Pedido de um anjo à Satanás em
Os Contos de Canterbury, 1972
Direção Pasolini
Em Ontem, Hoje, Amanhã (Ieri, Oggi e Domani, direção de Vittorio De Sica, 1963), temos três estórias. Numa delas, Sophia Loren, uma prostituta de luxo, é a vizinha voluptuosa e extrovertida de um casal de idosos (imagem ao lado). Eles estão preparando o neto, que irá ordenar-se padre brevemente. Mas o rapaz se interessa por ela e até pensa em largar o celibato. Uma crise familiar se instala entre aquelas duas coberturas. Enquanto Pasolini representava as prostitutas como santas em filmes sérios, De Sica mostrou que a comédia italiana também era capaz de abordar os dilemas de uma religião milenar.
No final, é a prostituta, mais do que a devoção religiosa de seus avós, ou mesmo a dedicação ao neto, que convence o rapaz a seguir sua vocação religiosa. Como em A Doce Vida, o cenário também é Roma, a cidade onde está o local em que um imperador, depois de ter uma visão, acabou tornando o cristianismo a religião oficial do Império Romano.





A Itália e a Liberdade de Expressão

filhos desobedientes"
Comentário de Pasolini em relação à
Pocilga, filme que dirigiu em 1969
L’Osservatore Romano, o jornal do Vaticano, publicou muitos artigos incendiários contra A Doce Vida e contra Fellini. Queriam proibir o filme e queimar os negativos, o que equivale a destruir o filme para sempre. Sugeriu-se até mesmo deixar Fellini sem passaporte, o que significava transformar a Itália em sua prisão. O cineasta conta que na Piazza di Spagna certa vez uma velhinha saltou do carro e, referindo-se a A Doce Vida, lhe disse que era melhor amarrar uma pedra no pescoço e se jogar no mar ao invés de fazer esse tipo de filme.
Noutro momento, estava em Pádua e viu um grande cartaz na entrada de uma igreja que dizia: “rezemos pela alma de Federico Fellini, pecador público” (4). O cineasta comentoru também a respeito de uma publicação jesuíta pedia para que Fellini fosse preso (5).
As Tentações do Doutor Antonio (Le Tentazioni del Dottor Antonio, 1962), parte da coletânea Boccaccio ’70, cujo tema era a resposta de vários diretores à opressiva censura italiana (6). Primeiro filme colorido de Fellini, logo na primeira cena existe uma referência explícita ao Vaticano (imagem acima). Duas freiras, uma de cada lado da tela, guardam um grupo de meninas cujo uniforme consiste em saia amarela e blusa branca – as duas cores do Estado do Vaticano. Logo em seguida, padres com hábito vermelho atravessam em fila, da direita para a esquerda – seria uma provocação? Na próxima cena vemos um grupo de mulheres posando para fotografias de moda, enquanto do lado esquerdo passa outra fila de padres, desta vez com hábito de cor cinza. (abaixo)




Era um filantropo que, depois de ter uma visão (como o imperador romano!), passou a distribuir roupas e comida para os necessitados diariamente. Fellini acompanharia aquele homem por algumas noites, e disse ter presenciado coisas extraordinárias. Como aquela vez em que descobriu que havia uma velhinha morando no esgoto. Ou como aqueles mendigos que eram levados pelo vigia noturno de um palácio da região (sede do partido socialista à época) para dormir escondidos.


Então surgia de trás de um barranco sujo uma antiga prostituta que era conhecida como “bomba atômica”, e que foi reduzida a levar uma existência de toupeira. Em seguida, Cabíria aceita ser levada para casa no pequeno carro daquele homem, muito emocionada com as coisas que ele dizia. Fellini acredita que foi obrigado a cortar essa seqüência porque aquele homem com a sacola não tinha nenhuma relação com a Igreja Católica. (imagens acima, à esquerda, A Trapaça; à direita, Noites de Cabíria)
Antes de Noites de Cabíria, Fellini havia dirigido A Trapaça (Il Bidone, 1955), onde ladrões disfarçados de padre e cardeal rodavam pelas periferias e pelo campo enganando as pessoas e roubando-lhes as poucas poses. O cineasta não faz nenhum comentário conectando os dois filmes e a postura da Igreja em relação a ele, podemos concluir então que seria um exagero tirar conclusões a esse respeito...
Leia também:
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Buñuel, o Blasfemador (I), (II), (final)
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Ingmar Bergman e a Prisão do Espírito
A Religião no Cinema de Carl Dreyer
A Face do Mal (I), (II), (final)
Suicídio é Pecado Mesmo?
O Exótico e o Cinema Italiano
Ettore Scola e o Milagre em Roma
Ettore Scola e o Filme Dentro do Filme
Mussolini e a Sombra de Auschwitz
Notas:
1. GUNDLE, Stephen. Saint Ingrid at the Stake: Stardom and Scandal in the Bergman-Rossellini Collaboration In FORGACS, David; LUTTON, Sarah; NOWELL-SMITH, Geoffrey (orgs.). Roberto Rossellini, Magician of the Real. London: British Film Institute, 2000. P. 73.
2. RYAN-SCHEUTZ, Colleen. Sex, the Self, and the Sacred. Women in the Cinema of Pier Paolo Pasolini. Toronto: University of Toronto Press, 2007. Pp. 7, 135 e 252.
3. RESTIVO, Angelo. The Cinema of Economic Miracles. Visuality and Modernization in the Italian Art Film. Durham & London: Duke University Press, 2002.
4. GRAZZINI, Giovanni. Fellini par Fellini. Entretiens Avec Giovanni Grazzini. Paris: Flammarion, 1984. P. 114.
5. CHANDLER, Charlotte. I, Fellini. Random House: New York, 1995. P. 139.
6. Idem.
7. GRAZZINI, Giovanni. Op. Cit., pp. 106-8.