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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

19 de ago. de 2010

Roberto Rossellini e os Mistérios da Fé (II)




Com O Milagre
,
Rossellini se aproxima do cinema de Buñuel

Charles
Tesson (1)






 

De Paisà ao Beijo do Leproso

Ao contrário de Amédée Ayfre, Charles Tesson vê certa semelhança entre Buñuel e Rossellini. Segundo Tesson, Nazarin (Nazarín, 1958), dirigido por Buñuel, poderia ser uma refilmagem de Europa 51: redimir uma falha, justificar sua vida, dar um sentido à existência, o duro caminho da compaixão e a necessidade de sofrimento. O destino dos personagens (especialmente de Nazarin) que encontram sua verdade no final, mas ficam com um gosto amargo sem relação com a revelação e a graça, a redenção e a saúde, não estão longe dos personagens de Rossellini – mesmo que os caminhos destes sejam complexos e tortuosos, como em Stromboli e Viagem à Itália. A loucura e a santificação, estado final de Irene em Europa 51, é também o que espera Nazarin. Não nos surpreenderíamos, conclui Tesson, ao encontrar a mendiga de O Milagre ao lado de Nazarin, acompanhada por Andara e Beatriz, suas duas seguidoras. Ayfre parece preferir acreditar que Rossellini tinha uma maneira particular de olhar para “esses mistérios do mundo”. O mistério da morte, por exemplo, recebe tratamento especial em Paisà. Não é a câmera que vai buscar o guerrilheiro morto que desce o rio Pó numa bóia. Fixa num ponto, ela o espera passar e se aproximar da lente. Como seres incompletos, somos forçados a buscar nossos semelhantes. Mas em várias cenas os personagens se afastam daqueles que os rodeiam. O jogo ou, a hesitação, entre as câmeras objetiva e subjetiva inquieta ao evidenciar as incertezas do estar-no-mundo. Alguns outros exemplos na obra de Rossellini onde se pode perceber essa câmera de “duplo foco” em que uma consciência e uma paisagem se misturam são, o passeio do jovem Edmund nas ruínas de Berlim antes de se suicidar em Alemanha Ano Zero; Nanni escalando a montanha guiada por uma cabra em O Milagre (Il Miracolo, 1947) (imagem acima, após chegar à igreja vazia no topo da montanha, ela dá a luz); Karin explorando o labirinto da vila em Stromboli; o primeiro dia de trabalho de Irene na fábrica em Europa 51; os passeios de Katherine por Nápoles em Viagem à Itália. A estranheza dessas cenas nasce mais do realismo de suas imagens do que de qualquer irrealismo. Que elas terminem num grito, conclui Ayfre, não deveria nos impressionar, já que tudo nelas prepara a explosão (2).

A fenomenologia
de Ayfre dependia da
crença na superioridade estética do neo-realismo
,
o que faz com que algumas
de suas idéias constituam mais uma ética do neo- realismo de que uma

teoria do cinema (3)





De acordo com Ayfre, Rossellini se afasta de Simone Weil ao ultrapassar a necessidade do recurso ao transcendente. O interesse dele na reencarnação é a importância que atribuía ao “espírito da infância”, Ayfre sugere, o afastam do estoicismo e maniqueísmo na obra dela. Rossellini estaria mais para um católico ortodoxo. Quanto a isso, Ayfre destaca dois lados da questão. Por um lado, o cineasta mistura os mistérios mais sobrenaturais à vida mais cotidiana que se possa imaginar. Se em Europa 51 são os problemas religiosos do sentido da vida e do sentido de cada um dos personagens (os problemas do casal sendo uma conseqüência) (imagem abaixo, à esquerda, a explicação de Irene sobre a fé em Europa 51 deixa o padre confuso), em Stromboli (imagem acima), O Medo (La Paura, 1954) ou Viagem à Itália, acontece o contrário. Neste caso, a maneira como a ternura, o ciúme e a indiferença são apresentados os transforma em outra coisa, carregando-se de um peso de eternidade, para além das flutuações psicológicas.



Para Ayfre e Bazin
,
o neo-realismo foi um realismo humano que
ilustra com sua técnica
um incessante diálogo
entre os homens e a
realidade física
(4)






Por outro lado, quando a graça, ou mesmo o milagre, intervém na trama, nunca se dá a partir de uma ruptura aparente ou extraordinária (ainda que às vezes seja pelo heroísmo), mas sim através de uma continuidade a partir de uma nova luz, de uma mudança de sentido. É por essa razão que acontecimentos como as lágrimas de Karin no topo do Stromboli, a multidão que grita por um milagre no final de Viagem à Itália, ou ainda os “mio santo figlio” da pobre em O Milagre, são sempre ambíguos sem jamais serem equívocos. Um “espírito da infância” atravessa toda a obra de Rossellini. Mas não se trata de saídas infantis. Supõe uma “alma nobre” e uma “perfeita alegria” incompatíveis com o inconsciente satisfeito e um otimismo sereno ou beato. O Cântico do Sol vem depois do Beijo do Leproso (última imagem do artigo) em Francisco, Arauto de Deus (Francesco, Giullare di Dio, 1950); e será apenas depois de um longo calvário que a “inocente” de O Milagre esquecerá toda dor, “feliz por ter colocado um filho no mundo”. (imagem abaixo, à direita, depois de ser pescado pelos companheiros, o guerrilheiro anti-nazista morto e lançado no rio Pó recebe uma sepultura; como lápide, o próprio aviso que os nazistas penduraram no cadáver que descia o rio)



De acordo com Amédée

Ayfre, a obra de Rossellini é sobre a Paixão de Cristo






Sem dúvida, revela Ayfre, o mistério cristão da redenção jamais é nomeado na obra de Rossellini. No entanto, tudo está na forma como ele apresenta as questões. Em sua crença na capacidade do neo-realismo em mostrar alcançar a realidade da vida Amédée Ayfre defendeu a hipótese de que A Paixão de Cristo está na própria alma do universo rosselliniano – a mudança de postura de Rossellini, defendendo um maior interesse pelos aspectos internos existenciais dos personagens em nada parece abalar a tese de Ayfre. Referências perceptíveis mesmo nas imagens de sua obra que pareçam mais afastadas e contrárias a esse universo religioso. Sem falar das imagens mais diretas, como a subida ao calvário de O Milagre e Stromboli, o Cristo indignado de Roma, Cidade Aberta, A Pietá de Alemanha Ano Zero, os gemidos “crucifixo, crucifixo” de São Francisco em Francisco, Arauto de Deus, ou os “bairros populares” (as favelas Primavalle e Tiburtino III) de Europa 51 (5).


“Só quem está
ligado a nada
, está
ligado a todos os
seres humanos”


Irene,
ao juiz que pretende
determinar se a fé dela
é na verdade loucura




Leia também:

Rossellini, Cidadão Italiano
A Diva e a Magnani
Accattone: Favelado, Cafetão e Cristo
A Itália em Busca do Realismo Perdido (I), (II), (final)
Roberto Rossellini e os Mistérios da Fé (final)  
Bertolucci e a Revolução Burguesa
Buñuel, o Blasfemador (I), (II), (final)
Yasujiro Ozu e Seus Labirintos

Notas:

1. TESSON, Charles. Luis Buñuel. Paris: Éditions de l’Étoile/Cahiers du Cinema, 1995. Pp. 227-8.
2. AYFRE, Amédée. Sens et Non-Sens de la Passion Dans L’univers de Rossellini In ESTÈVE, Michel (org.) La Passion du Christ Comme Thème Cinématographique. Paris: M.J. Miniard – Lettres Modernes, Études Cinématographiques, 10-11, vol. II, 1961. Pp. 179-80.
3. ANDREW, Dudley. As Principais Teorias do Cinema. Uma Introdução. Tradução Tereza Ottoni. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1989. P. 247.
4. Idem, p. 248.
5. AYFRE, Amédée. Op. Cit., p. 183. 


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