Rossellini e Francisco
O roteiro de Francisco, Arauto de Deus se baseia em alguns episódios da vida de São Francisco de Assis e de seus primeiros seguidores, entre eles Irmão Juniper – Fellini estava entre os colaboradores no roteiro. Certos episódios são baseados em dois textos italianos anônimos do século XIV, As Florzinhas de São Francisco (I Fioretti di San Francisco) e A Vida do Irmão Juniper (La vita di Frate Ginepro). Rossellini acreditava que o primeiro guardava ainda a mensagem franciscana original, embora provavelmente desconhecesse que o escrito ataca a supremacia então exercida pelos frades conventuais sobre a Igreja, além de estimular a prática da pregação a partir do exemplo – questões que não seriam desconhecidas dos padres católicos que o auxiliaram no roteiro. Para uma exploração do efeito do cisma religioso sobre a unidade da crença religiosa e suas instituições teríamos que esperar por Agostinho (Agostino d’Ippona, 1972). No campo da política, a convicção de Rossellini quanto à necessidade de unidade foi mostrado em Anno Unno, o Nascimento da Democracia Italiana (Anno Unno, 1974), filme que realizou sobre a trajetória do político Democrata-Cristão Alcide De Gasperi (2). (imagem acima, São Francisco prega aos pássaros)
“Deus, Deus...”, Francisco
cai ao chão e repete ante a visão do leproso que cruzou seu caminho. Identificado
com o sofrimento de Jesus... Francisco beija o coitado
Como a idéia do filme já vinha sendo gestada desde 1948, dois anos antes de o projeto ser iniciado, Millen não acredita que Francisco, Arauto de Deus tenha sido uma tentativa de Rossellini para aplacar a ira das autoridades eclesiásticas italianas (talvez também as norte-americanas) em relação ao escândalo que foi seu casamento com Ingrid Bergman – que se uniu ao cineasta sendo ainda casada e com uma filha pequena (3). De qualquer forma, foi aparentemente muito conveniente que seu lançamento no Festival de Veneza em 1950 tenha coincidido com o fato de que aquele foi declarado um Ano Santo pelo Papa Pio XII. Durante uma entrevista em 1954, para um jornal católico de cinema, Rossellini se referiu a esse período de sua vida como “cheio de amargura e desapontamento” e que este filme forneceu um modelo positivo para ele. Entretanto, confessou sua surpresa com o fato de sua intenção de compartilhar com o público a alegria que alcançou ao dirigi-lo não ter sido compreendida ou bem recebida – o filme não foi bem de bilheteria. (imagem acima, São Franscisco beija o leproso; abaixo, à esquerda, depois que o leproso se afasta)
Além de Francisco,
cobriram o rosto Karin,
em Stromboli, na pesca e no topo do vulcão, e Katherine,
em Viagem à Itália, ao ver
o casal morto preservado
pela lava de Pompéia
De modo geral, a crítica especializada tendia a dar mais importância a outros filmes dirigidos pelo cineasta – mesmo os críticos que admitiram gostar de Francisco, Arauto de Deus. Talvez a comparação entre a visão contestatória em relação ao poder em filmes como Roma, Cidade Aberta e Paisà ainda estivesse muito impregnada de uma interpretação política de esquerda. Além disso, apesar do fato de São Francisco ser um dos santos padroeiros da Itália, sua imagem fora construída a partir da Divina Comédia, de Dante Alighieri (Paraíso, Canto XI), e do poeta e ideólogo da direita, Gabriele d’Annunzio – a partir do acordo celebrado entre o Vaticano e o Estado Fascista italiano em 1929, São Francisco de Assis e Santa Catarina de Siena foram proclamados os santos padroeiros da Itália (4). Por outro lado, a década de 50 do século passado foi bastante instável no âmbito político e militar, a Europa Ocidental era induzida a aderir à OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte, liderada pelos Estados Unidos), para fazer oposição à Europa Oriental, por sua vez sob influência dos soviéticos. São Francisco de Assis, tendo uma Oração pela Paz atribuída a ele, pode ter sido uma contribuição de Rossellini ao diálogo entre as nações.
Francisco, Arauto
de Deus, poderia ser
a resposta de Rossellini
à incapacidade da Itália optar pela neutralidade numa época de enorme tensão entre a Europa ocidental e oriental. E
havia também tensão
entre o Vaticano e
ordens religiosas (5)
de Deus, poderia ser
a resposta de Rossellini
à incapacidade da Itália optar pela neutralidade numa época de enorme tensão entre a Europa ocidental e oriental. E
havia também tensão
entre o Vaticano e
ordens religiosas (5)
De acordo com Millen, as declarações de Rossellini a respeito de sua fé religiosa parecem bastante evasivas, embora se possa dizer em sua defesa que é da natureza da fé que não possa ser confirmada ou negada por outras. Nos filmes de Rossellini, afirma Millen, infortúnios e tribulações parecem cair sobre as vítimas sem aviso, inesperada e imerecidamente. Isso causa um efeito emocional de medo primordial, notadamente em Roma, Cidade Aberta. Em Francisco, Arauto de Deus, esse medo de sofrer se resolve através da “perfeita alegria” dos franciscanos – essa era a sensação que Rossellini desejava comunicar à platéia para mostrar o que sentiu enquanto estava fazendo o filme, numa época de “amargura e desapontamento”. O medo de Juniper em seu encontro com o tirano Nicolau, seu sofrimento nas mãos do bando dele se resolve através de sua devota e santa indiferença ao sofrimento infringido a ele – sua participação num estado de graça. Segundo a evidência das cenas finais de Stromboli e Viagem à Itália, a graça pode ter visitado personagens que não a esperavam ou não mereciam sua intervenção – graça preveniente, graça preventiva, graça salvadora (6). (imagem acima, São Franscico; abaixo, à esquerda, o tirano Nicolau enfretado por Juniper)
As Palavras de Rossellini
Sobre O Messias (Il Messia, 1978), último filme de Rossellini, o cineasta afirmou em entrevista que o projeto se encaixa perfeitamente em seu objetivo dos quatorze anos precedentes em que havia abraçado a televisão: a informação. E ele a distingue de uma busca da didática, em sua opinião não é preciso ensinar, mas fornecer dados brutos para que cada um possa elaborar por si mesmo. Neste contexto, a vida de Cristo, segue uma documentação que ele considera precisa porque baseada na bíblia. Rossellini procurou sempre se dirigir aos homens e tê-los como objeto. Cristo, disse Rossellini, em toda a história da humanidade foi aquele cuja mensagem soube mais profundamente explicar o homem para ele mesmo. Seguindo os Evangelhos, especialmente o de João, além de algumas passagens do Antigo Testamento. Rossellini disse também que se concentrou mais na palavra do que nos milagres. Estes são muito fáceis de serem criados na televisão e costumam convencer a poucos, já as palavras de Jesus são capazes de persuadir. O catecismo não dá conta delas. Além disso, muitos cristãos não conhecem as palavras de Cristo. Foi isso que Rossellini tentou fazer, colocar as palavras de Cristo em primeiro plano (7). (última imagem do artigo, todos se reúnem e São Francisco os dispersa pelo mundo para pregar a palavra)
No final, sempre giramos
em círculos e esbarramos na
maior dificuldade: explicar o homem para si mesmo
Rossellini ressaltou que as palavras de Jesus encontram sua força na simplicidade. Por exemplo, disse o cineasta, para ser compreendido, nas parábolas Jesus utilizou-se de fatos comuns da vida cotidiana. Assim que Rossellini reproduziu na tela essa vida cotidiana simples. Não criou efeitos espetaculares e preferiu atores não-profissionais ou atores desconhecidos. De acordo com o cineasta, um rosto conhecido encarnando Jesus seria como empregar os truques do cinema, ninguém seria persuadido. Rossellini insistiu em sua tese: apenas “mostrar”, um rosto conhecido iria “demonstrar”. Ele também destacou o papel do plano-seqüência em seu filme. Tudo concentrado no interior de uma única imagem, uma imersão do personagem em seu meio, a atmosfera, a luz, as horas que passam e os objetos que o circundam. Rossellini citou o exemplo das mãos de Pedro na Ceia. Um close nas mãos, enquanto pegam o pão e o vinho. Mãos cheias de calos de um trabalhador, de um homem simples. Em seguida, há um deslocamento para seu rosto. Seja um personagem mundano ou religioso, Rossellini buscava mostrar a realidade. Evocando certa realidade particular a Pedro, estas mãos “mostradas” “demonstram” mais do que demonstrações pretensiosas e subjetivas (8).
De acordo com Roberto Rossellini, não é preciso ensinar, mas fornecer os
dados para que cada um
os elabore por si mesmo
Antonioni e a Trilogia da Incomunicabilidade (I), (II), (III), (IV), (V)
Pasolini e o Sexo Como Metáfora do Poder (I)
Zurlini e o Deserto de Nossas Vidas
Uma Judia Sem Estrela Amarela
Fellini e a Orquestra Itália
Jacques Tait e Seus Duplos (I), (II), (final)
As Tentações do Rosto-Paisagem
Notas:
1. MILLEN, Alan. Francis God’s Jester in FORGACS, David; LUTTON, Sarah; NOWELL-SMITH, Geoffrey (eds.). Roberto Rossellini, magician of the real. London: British Film Institute, 2000. P. 80.
2. Idem, p. 82.
3. Ibidem, p. 80.
4. Ibidem, p. 93n3.
5. Ibidem, p. 92.
6. Ibidem, p. 89.
7. Entrevista com Rossellini à Gian Luigi Rondi, 1975 In APRÀ, Adriano (org.). La Télévision Comme Utopie. Roberto Rossellini. Paris: Cahiers du Cinéma, 2001. Pp. 187-8.
8. Idem, pp. 189-90.
Pasolini e o Sexo Como Metáfora do Poder (I)
Zurlini e o Deserto de Nossas Vidas
Uma Judia Sem Estrela Amarela
Fellini e a Orquestra Itália
Jacques Tait e Seus Duplos (I), (II), (final)
As Tentações do Rosto-Paisagem
Notas:
1. MILLEN, Alan. Francis God’s Jester in FORGACS, David; LUTTON, Sarah; NOWELL-SMITH, Geoffrey (eds.). Roberto Rossellini, magician of the real. London: British Film Institute, 2000. P. 80.
2. Idem, p. 82.
3. Ibidem, p. 80.
4. Ibidem, p. 93n3.
5. Ibidem, p. 92.
6. Ibidem, p. 89.
7. Entrevista com Rossellini à Gian Luigi Rondi, 1975 In APRÀ, Adriano (org.). La Télévision Comme Utopie. Roberto Rossellini. Paris: Cahiers du Cinéma, 2001. Pp. 187-8.
8. Idem, pp. 189-90.