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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

9 de set. de 2010

O Dragão Rossellini e a Santa Ingrid


“Bergman
foi cons
truída por Rossellini
em seus f
ilmes como uma presença
sem simpatia e perturbadora. Os
filmes se concentravam em sua figura deslocada como
personagem, como mulher, e como uma atriz de Hollywood (1)


Certo dia em 1948, a muito famosa atriz de Hollywood Ingrid Bergman assistiu a Roma, Cidade Aberta (Roma Città Aperta, 1945). O filme, dirigido por Roberto Rossellini, causou profunda impressão na atriz – que nunca ouvira falar dele, julgando que fosse um desconhecido principiante. Meses depois, ela assistiu a Pai (1946), do mesmo cineasta para ela um ilustre desconhecido – sem saber que se tratava de um dos filmes mais discutidos da época. Muito impressionada, Ingrid escreve uma carta para ele onde se oferece para atuar num de seus próximos filmes. O contato entre os dois foi estabelecido, em março de 1949 ela chega a Roma. Em fevereiro de 1950 nasce o primeiro filho do casal – e eles se casam meses depois. Ingrid já era casada e mão de uma filha, além disso, era também uma atriz de Hollywood com uma carreira de sucesso. Forma-se assim aquele que foi considerado o primeiro grande escândalo mediático do pós-guerra. Ingrid foi chamada por seus detratores de “cultista do amor livre e apóstola da degradação”, ou ainda “uma poderosa influência do mal”. Rossellini, por sua vez, foi acusado de serpentear “como uma víbora (...) para cima da cama dos outros” (2). (todas as imagens do artigo são de Joana d'Arc no Fogo)




É curioso como parece

impressionar alguns que alguém
possa não dar importância a uma carreira em Hollywood







De acordo com Stephen Gundle, Rossellini viu no interesse de Ingrid em colaborar uma oportunidade para a tentativa dele em ultrapassar os filmes relacionados com a guerra (que fizeram a fama do neo-realismo). Em 1948, Rossellini já havia dado um passa nessa direção com O Amor, filme em dois episódios estrelado por Anna Magnani (então mulher dele), onde ele explorava o que chamou de “neo-realismo da pessoa”. Ingrid Bergman, por sua vez, apesar de uma carreira sólida em Hollywood, mostrava-se insatisfeita com filmes como Joana d’Arc (Joan of Arc, direção Victor Fleming, 1948). Ela o considerou muito artificial com suas batalhas montadas em estúdio, com vilas francesas pintadas num pano de fundo e uma Joana muito maquiada. Compreende-se então o interesse dela por um cinema como o de Rossellini, onde o mundo era real.




Ingrid Bergman não
parecia se importar com
o desmoronamento da
sua imagem de santa







Além do fato de que Ingrid Bergman e Roberto Rossellini nunca fizeram esforço para esconder sua relação (o que alimentava a mídia), os papéis nos quais ela atuara em Hollywood eram o oposto da imagem que ficou marcada no subconsciente do público a partir da atuação dela em Joana d’Arc. Ou melhor, Bergman carregava uma imagem virginal, radiante, natural e pura. Segundo Gundle, desde o começo de sua carreira em Hollywood, a imagem de Ingrid fora construída para se contrapor ao estilo da “mulher fácil” que também era fruto da fábrica de Hollywood. A imagem de estabilidade marital confirmaria o estereótipo no qual Ingrid havia sido encaixada. Embora não fosse uma totalmente falsa dela, esta imagem escondia o temperamento ruim dela, assim como seus casos extraconjugais. Sendo assim, ela acabou sendo identificada pelo público como uma encarnação moderna de Joana d’Arc. O que pouco se fala é que antes do filme da pura Joana d’Arc, ela havia atuado noutros onde foi prostituta ou uma mulher promíscua: O Médico e o Monstro (Dr. Jekyll and Mr. Hyde, direção Victor Fleming, 1941), Mulher Exótica (Saratoga Trunk, direção Sam Wood, 1945), Interlúdio (Notorious, direção Alfred Hitchcock, 1946), O Arco do Triunfo (Arch of Triumph, direção Lewis Milestone, 1948). Noutros filmes ela teve casos: Intermezzo (Intermezzo: A Love Story, direção Gregory Ratoff, 1939), Casablanca (direção Michael Curtiz, 1942), Por Quem os Sinos Dobram (For Whom the Bells Tolls, Sam Wood, 1943), Quando Fala o Coração (Spellbound, direção Alfred Hitchcock, 1945).



A Igreja
Católica Romana na
América conduziu uma
campanha virulenta
contra a atriz







Na opinião de Gundle, o que caracterizava os papéis de Ingrid é o envolvimento emocional e não a contemplação indiferente e a moralidade radiante. Gundle sugere que Ingrid assumiu deliberadamente o papel de Joana d’Arc moderna numa época (o pós-guerra) em que havia uma necessidade de restaurar a moralidade perdida nos anos da guerra. Daí o choque das platéias quando a notícia de que ela estava trocando sua família por um novo homem. Talvez esse contexto, especulou Gundle, tenha direcionado a ira contra os produtores de Stromboli, Terra de Deus (Stromboli, 1948), o primeiro filme que ela atuou para Rossellini. As pessoas acreditavam que os produtores haviam criado tudo isso para divulgar o filme (3). Quando Stromboli, Terra de Deus foi lançado nos Estados Unidos, não foi um sucesso – a cópia que circulou naquele país havia sido alterada pela RKO para uma forma diferente da concepção de Rossellini. A crítica norte-americana considerou o filme muito mal feito e as platéias assobiavam e vaiavam – embora Gundle não seja específico aqui, presume-se que ele se refere às platéias norte-americanas acostumadas com os filmes de Hollywood, que fluem num outro ritmo (4). Viagem à Itália (Viaggio in Italia, 1954), que foi saudado pela crítica francesa e demonizado pela norte-americana, também não respondeu positivamente na bilheteria.


Xenofobia estava por trás,
que Ingrid Bergman era vista como a mulher pura
do norte assediada pelo homem libidinoso do sul






Outro elemento presente na polemica era o “problema” étnico ou racial... Embora Ingrid fosse uma sueca com uma sensibilidade européia, é como se o público norte-americano acreditasse que ela era nascida nos Estados Unidos, Não se admitia que Hollywood perdesse uma estrela para a Itália. Na cultura popular norte-americana, o homem e a mulher italianos eram (?) vistos como gente cheia de apetite sexual que ameaçavam a virgindade e liberdade inglesas. Rossellini seria justamente aquele homem latino que desvirtuou uma mulher branca e pura do seio de sua família. A Igreja Católica atacou o casal de forma virulenta. Essa coisa toda acontecia nos Estados Unidos. Na Itália, a polêmica era muito menor – a estrutura da imprensa e da opinião pública eram outras, havia outra relação com o público e o privado, a posição que as estrelas de cinema ocupavam (ainda) era outra, o país era uma espécie de santuário para aqueles julgados pela opinião publica em seus próprios países. Apesar da força da Igreja Católica na Itália, havia uma atmosfera de tolerância na Itália – na verdade, havia evidencias de que a Igreja Católica italiana via Ingrid com benevolência.


Ingrid não era católica
,
então a Igreja na Itália
inicialmente não adotou
a postura dos católicos
norte-americanos
(5)






Por outro lado, a esquerda italiana via Ingrid com desconfiança. Como um ser importando de Hollywood, a presença dela nos novos filmes de Rossellini seria uma prova de que ele estaria renegando o neo-realismo (6). Anna Magnani, a mulher anterior de Rossellini, era vista com muita simpatia por muitos italianos como um símbolo do espírito do povo num tempo de adversidade – como durante a guerra e o pós-guerra. Rossellini dizia que Hollywood era como uma fábrica de salsichas, mas fez uso do status de estrela de Ingrid Bergman para conseguir fundos para Stromboli. Terra de Deus – ao mesmo tempo, ele não gostou quando durante as filmagens Ingrid se referiu como estrela a si mesma. Gundles afirma que a “aura” de Ingrid está presente em Stromboli e Europa 51 (1952). No episódio reservado a Ingrid em Nós, as Mulheres (Siamo Donne, 1953), com Rossellini na direção, ele percebeu que não conseguiu subordinar a persona estrela de Hollywood a seu cinema. Rossellini admitiu que fama reconhecimento fosse parte integral da realidade dela.


Rossellini
não conseguiria
dobrar o poder e apelo simbólico da “profissão”de estrela de Hollywood da (rostinho bonito)

Ingrid d'Arc


O próximo projeto, Joana d’Arc no Fogo (também conhecido no Brasil como Joana d’Arc de Rossellini, Jeanne d’Arco al Rogo, 1954), no qual a própria Ingrid estava interessada (ela era co-produtora), Rossellini faz uma versão filmada do Oratório Joana na Fogueira (Jeanne au Bûcher, libreto de Paul Claudel e música de Arthur Honegger). Ingrid poderia então questionar a Joana d’Arc artificial que “santificou” sua imagem perante o público norte-americano. Rossellini não teve chance, o interesse do público estava direcionado à identificação entre Ingrid e a versão anterior de Joana. A apresentação teatral viajou a Europa, mas o filme não deu muito certo. Além disso, não havia traços da estrutura de um trabalho rosselliniano, pois o cineasta teve de se acomodar à estrutura do Oratório. O último trabalho do casal, O Medo (La Paura, 1955), também não foi bem aceito. Rossellini sentiu-se frustrado quando Ingrid decidiu romper a exclusividade profissional e voltar a filmar em Hollywood. Anastásia. A Princesa Esquecida (Anastasia, direção Anatole Litvak 1956) foi seu próximo papel, indicada ao Oscar. Ela inclusive recuperou a simpatia que havia perdido em 1949, pois Rossellini a abandonaria por uma roteirista indiana em 1957 (7).



Assim sendo
, conclui Stephen
Gundles
, Roberto Rossellini foi confirmado no papel clichê de vilão/demônio, enquanto Ingrid Bergman aos poucos retornou
à segura santidade anterior





Notas:

Leia também:

Rossellini e Sua Europa (I), (II), (final)
Rossellini e os Mistérios da Fé (I), (II), (final)
Rossellini e o Corpo do Herói Paisano
Roberto Rossellini, Cidadão Italiano
Novo Neo-Realismo: Duas Hipóteses
A Itália em Busca do Realismo Perdido (I), (II), (final)
Religião e Cinema na Itália
Ingmar Bergman e a Prisão do Espírito
A Diva e a Magnani
A Fabricação do Herói (I), (final)
Os Biblioclastas (I), (II), (final)
Suicídio é Pecado Mesmo?
Arte do Corpo: Carolee Schneemann, Cindy Sherman, Yoko Ono, Shigeko Kubota
Conexão Seios (I), (II), (III), (epílogo)
Rostos: Fisiognomonia (III), (V)
O Passado Nazista do Cinema de Entretenimento
Puritanismo e Ficção Científica (I), (II), (final)
As Mulheres, Entre Ocidente e Oriente (I), (II), (final)
Café(tão) Brasil: Os Bordéis da Rede Globo com a Mão na Massa
Comentário Sobre o Comportamento Sexual Feminino

1. ROHDIE, Sam India in FORGACS, David; LUTTON, Sarah; NOWELL-SMITH, Geoffrey (eds.). Roberto Rossellini, magician of the Real. London: British Film Institute, 2000. P. 118.
2. GUNDLE, Stephen. Saint Ingrid at the Stake: Stardom and Scandal in the Bergman-Rossellini Collaboration in FORGACS, David; LUTTON, Sarah; NOWELL-SMITH, Geoffrey (eds.). Op. Cit., pp. 64-5.
3. Idem, p. 70.
4. Ibidem, p. 68.
5. Ibidem, p. 71.
6. Ibidem, pp. 70-1, 73.
7. Ibidem, pp. 75-6.

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