Meu Deus! Meu Deus! Meu Deus!
Mesmo em filmes como Roma, Cidade Aberta (Roma, Città Aperta, 1945), Paisà (1946) e Alemanha Ano Zero (Germania Anno Zero, 1948), famosa trilogia pela qual Rossellini é muito lembrado, é possível perceber que ele não está abandonando preocupações existenciais mais profundas em nome de um discurso mais engajado na realidade da Itália do imediato pós-guerra. Esta é a opinião de Amédée Ayfre, padre jesuíta e amigo do crítico francês Andre Bazin, que se tornou um estudioso do cinema preocupado com a interseção entre as imagens da sétima arte e o sagrado. Bazin e Ayfre compartilhavam uma visão fenomenológica do cinema que, de acordo com Dudley Andrews, após a morte de ambos (entre 1958 e 1963) perderia a força que teve (2). Ayfre sugeriu que Rossellini opõe à força das armas e da lei um “espírito desarmado”. Assim como Joana D’arc no Fogo (Giovanna d’arco al Rogo, 1954), o militante comunista de Roma, Cidade Aberta morrerá invicto sob a tortura, enquanto o padre olha para os carrascos nazistas e se entrega à ira ao vê-lo morto (“Malditos. Serão esmagados como vermes”) (imagem acima). Em Europa 51 (1952), Irene se oporá a todos os conformistas, seja do seu meio, da Igreja ou do Partido, antes de ser trancada pela ciência oficial no manicômio. Mas será ela quem testemunhará o melhor para a liberdade de espírito, como em Onde Está a Liberdade? (Dov’é la Liberta, 1954), com um pouco mais de humor (3). Entretanto, ele se pergunta à que vítima seria permitido proclamar a vitória da Verdade sobre a aparente vitória de seus carrascos? O mal triunfará, conclui Ayfre, se o mártir o for apenas para si mesmo!
Adepto de uma
teoria fenomenológica
do cinema, Amédée Ayfre pretendia desvendar uma
verdade impossível de
reduzir à lógica (4)
Ayfre invoca os escritos de Intuições Pré-Cristãs, onde Simone Weil disse que a infelicidade teria como função forçar a alma a gritar: “por que”. A alma gritará sempre que a falta de finalidade inerente ao universo tocar o vazio. Se não se renuncia a amar, chegaríamos um dia a ouvir, não uma resposta porque esta não existe. Mas um silêncio muito mais significativo, a própria palavra de Deus. É por este caminho que Irene sai do impasse, mas só perceberá quem pensa como Weil. O próprio Rossellini disse que fez de Irene uma irmã espiritual de Simone Weil. Ayfre acredita que esse grito do qual falava Simone pode ser ouvido de uma forma ou de outra em todos os filmes do cineasta. Na oração silenciosa do padre, e mesmo de seu gesto de cólera diante do torturado em Roma, Cidade Aberta; ou daquela mulher que grita ao ver o menino cair do prédio, se aproxima para olhar, exclama um “Meu Deus!” e se ajoelha diante da criança morta no final de Alemanha Ano Zero (última imagem do artigo); das lágrimas de Irene enquanto se afastam aqueles que vêem nela uma pobre louca; do casal de Viagem à Itália (Viaggio, in Italia, 1954), separado por tantas coisas, mas bruscamente procurando se reunir sem saber por que no final do final, no meio da multidão delirante da procissão (abaixo, à direita); ou ainda mais explicitamente em Stromboli (Stromboli, Terra di Dio, 1950), Karin no topo do vulcão “Meu Deus! Meu Deus!” (imagem acima). “Meu Deus!”, explicou Rossellini, “é a invocação mais simples, a mais primitiva, a mais comum que pode sair da boca de um ser invadido pela dor. Pode ser uma invocação mecânica ou a expressão de uma verdade superior. Num caso ou noutro, é sempre a expressão de uma mortificação profunda que pode ser também o primeiro brilho de uma conversão” (5).
assim como a pobre
mulher de O Milagre
mulher de O Milagre
Esses gritos da “voz humana” nas trevas são sempre um apelo mais ou menos consciente à Luz – referência de Ayfre ao texto de Jean Cocteau, Uma Voz Humana, filmado por Rossellini em 1947 e lançado num filme em dois episódios, O Amor (l’Amore), o segundo sendo O Milagre (baseado em texto de Federico Fellini) (imagem acima); ambos protagonizados por Anna Magnani. Esta é a conclusão de Ayfre, para quem o mal não é um absoluto, defendendo a existência de um para além do mal. Para alcançá-lo, diria Rossellini, não seria suficiente ir ao psicanalista, ou se encher de cocaína e tranqüilizantes. Trata-se, sobretudo de, e ainda sob a égide de Simone Weil, sentir “através do sofrimento, a presença de um amor análogo àquele que lemos no sorriso de um rosto amado”. Não se trata também de abandonar o combate necessário à miséria do mundo, porém ela terá adquirido outra feição explica Rossellini: “É preciso que o homem esteja na luta, com uma imensa piedade por todo mundo, por si mesmo, pelos outros, com muito amor, mas é preciso estar muito firme na luta”. Mas ultrapassar o desespero e o ódio, Ayfre sugere, não faria nenhum sentido se não se acredita que possa ser ouvido o apelo ao Testemunho supremo de toda justiça.
Segundo Ayfre,
muitos dos estudos
sobre arte impõem as leis
da sociologia, da lingüística, semiótica, etc, para descobrir
a posição de um trabalho
em relação à vida. Mas
nunca estudam a
própria vida (6)
muitos dos estudos
sobre arte impõem as leis
da sociologia, da lingüística, semiótica, etc, para descobrir
a posição de um trabalho
em relação à vida. Mas
nunca estudam a
própria vida (6)
Por outro lado, Ayfre alerta que a confiança de alguns na possibilidade da resposta não significa que sejam santos. Afinal, aqui em baixo, santos não são sempre pecadores? Talvez seja o caso de Irene em Europa 51, cheia de defeitos embora considerada uma santa para os desvalidos que ajudou. Além do que, as razões de suas ações permanecem tão obscuras para ela quanto para seus parentes, que não compreendem o interesse dela pelos pobres após a morte de seu filho. Ayfre enumera alguns equívocos e incongruências presentes no comportamento dela: renúncia genuína e auto-acusação mórbida muitas vezes misturam-se; sua hipersensibilidade que muitas vezes exagera, distorcendo as manifestações mais puras; certo irrealismo; falta de experiência que a impede de encarar situações imprevistas - de modo que Irene nem sempre escapa à extravagância gratuita e ao ridículo. Se existe alguma santidade, aflora apesar das fraquezas dela. Irene prefere estar próxima daqueles cujo destino pretende influenciar, mas compreende quando eles não se contentam com um paraíso que só será conhecido pelas gerações futuras.
Em conversa com
André, o comunista,
Irene diz que para ela
só existe um paraíso,
que inclui os vivos e
também os mortos (7)
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Roberto Rossellini e os Mistérios da Fé (II)
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Notas:
1. AYFRE, Amédée. Sens et Non-Sens de la Passion Dans L’univers de Rossellini In ESTÈVE, Michel (org.) La Passion du Christ Comme Thème Cinématographique. Paris: M.J. Miniard – Lettres Modernes, Études Cinématographiques, 10-11, vol. II, 1961. P. 172.
2. ANDREW, Dudley. As Principais Teorias do Cinema. Uma Introdução. Tradução Tereza Ottoni. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1989. P. 242.
3. AYFRE, Amédée. Op. Cit., p. 175.
4. ANDREW, Dudley. Op. Cit., pp. 185 e 243.
5. AYFRE, Amédée. Op. Cit., pp. 176-7.
6. ANDREW, Dudley. Op. Cit., pp. 242-3.
7. AYFRE, Amédée. Op. Cit., pp. 177-8.