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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

17 de abr. de 2010

Rossellini e Sua Europa (II)




Não resta dúvida
que
Pasolini não foi
o primeiro a insistir
em mostrar
italianos pobres no cinema




“Garbatella 51”: Rossellini Marxista?

De acordo com Sandro Bernardi, a força de Europa 51 está nas imagens do ponto de vista de Irene. Como na geral que ela dá em sua primeira visita ao bloco 3 de Garbatella, em Roma. Seu olhar descobre pequenos prédios de cortiço, monótonos e longos. Uma arquitetura nova, moderna, mas já caindo aos pedaços, devorados pela pobreza e a umidade. Crianças brincam na lama, entre as ruas recém inauguradas e as montanhas de lixo e entulho, como Pier Paolo Pasolini as chamaria em Ragazzi di Vita, livro eu escreveu em 1955, relatando a vida dos jovens da periferia pobre da capital italiana (1). (imagens acima e abaixo, à direita, Irene chega na casa de Passerotto, ou Pardal, como é conhecida a personagem interpretada por Giulietta Masina. Com muitos filhos, alguns adotados, o otimismo de Passerotto parece não se abalar com nada. Irene vai arrumar um emprego para ela)



Borgate eram as favelas de Roma, incluindo também
conjuntos habitacionais em graus variados de abandono




Em 1948, Vittorio De Sica mostrou a borgata Val Melaina em Ladrões de Bicicleta, construída a noroeste de Roma entre 1935 e 1940 – um dos últimos projetos concluídos pelos fascistas (2). Poderíamos incluir na definição de borgata também “bairros pobres” ou “bairros populares” (3), cuja característica principal seria a falta de presença do poder público - que indiretamente os transforma em guetos para isolar a pobreza que o próprio Estado produz e reproduz. Portanto, tais favelas ou bairros populares não eram cenários montados em estúdio, mas a realidade nua e crua. (imagem abaixo, vista geral de um dos prédios de Garbatella em 1951, nota-se o aspecto degradado da parede, que denuncia o desinteresse das autoridades públicas com a população de baixo ou nenhum poder aquisitivo. Além disso, todo o solo em torno é asfaltado, criando um ambiente anti-social; não há terra, balanços, gramado, nada que caracterize uma habitação saudável; sem dinheiro, sem emprego, sem sequer uma praça para sentar e conversar, não é difícil concluir que ser humano vai gerar. Numa de suas visitas a Garbatella, Irene pergunta a um menino o que ele vai ser quando crescer. "Delinqüente", ele respondeu)



Nas décadas de 20 e 30
do
século 20, Mussolini mudou a cara da cidade





O bairro proletário, ou borgata, de Garbatella que Irene freqüentou havia tomado esta forma alguns anos antes – lembrando que o filme foi lançado em 1952. O que Rossellini mostrou era fruto dos planos da reurbanização de Roma estabelecidos pelo ditador Benito Mussolini. Dentre as mudanças estava a relocação de populações proletárias do centro para a periferia. O centro perderia muitas construções medievais para dar lugar a prédios públicos imponentes, avenidas largas (que também seriam palcos muito convenientes para seus desfiles militares) e conjuntos habitacionais.(imagem abaixo, à direita, Irene caminha em meio a montes de entulho de obra e lixo enquanto vai verificar a notícia de um corpo encontrado no rio próximo; ao fundo, o que parece ser uma cerca protegendo barracos. Terrenos baldios como este povoam grande parte da obra de Pasolini. A crise do sistema habitacional era profunda no pós-guerra, estendendo-se até mesmo à década de 70)



Os proletários foram empurrados para“bairros populares”na periferia






Desde antes da Primeira Guerra Mundial existiam projetos de casas populares para trabalhadores em Roma, o regime fascista apenas se apropriou deles. Garbatella era um exemplo e, na planificação da expansão da cidade, foi estabelecido como um subúrbio para trabalhadores. O projeto original para Garbatella era bem diferente, os planejados jardins cederam lugar às questões de aproveitamento do espaço disponível. Por outro lado, na época em que o filme foi produzido, aquela região era considerada uma borgata – como podemos ouvir dos próprios personagens. (imagem abaixo, Irene sai a noite pela borgata em busca de um médico para Ines, a prostituta. Mas não há esperanças, em poucos dias ela morera, então Irene terá oportunidade de presenciar a morte dela como não pode presenciar a do filho. A escuridão dá uma idéia da "terra de ninguém" em que se transformavam os "bairros populares" italianos)



Alguns desses
bairros, “naturalmente”,
se transformariam
em favelas





Lá nos bairros populares, muitas vezes sem água encanada e iluminação, pessoas que antes possuíam um trabalho no centro da cidade ficaram à deriva. Algumas vezes, como era o caso de Garbatella, Mussolini concentrava nessas áreas isoladas populações com orientação política de esquerda – facilitando uma vigilância mais direta por parte do Estado (4). Um bairro operário, portanto suscetível a tendências comunistas, Garbatella chegaria ao pós-guerra como mais uma entre as tantas áreas de moradia popular degradadas da periferia de Roma. Foi neste lugar que Irene, uma habitante da parte rica da cidade, foi jogada por Rossellini. Lá, depois de perder o filho, ela dá os primeiros passos no caminho que a levará ao manicômio. Embora o cineasta tenha sido muito questionado pelos críticos italianos, que o acusaram de uma guinada radical para longe dos cânones da esquerda, não se pode deixar de notar a reação da família de Irene.

Em vez de concluir que
o interesse dela pelos pobres tivesse origem no sentimento de culpa em relação ao filho, seus familiares parecem mais incomodados com a sua
convivência com eles


Esperança e Consciência


A diferença entre dar o
peixe e ensinar a pescar
... Dilema vivido em Europa 51 caracteriza o contraponto
entre Irene e Andrea



À primeira vista, a conscientização de Irene em relação aos pobres não tem motivações socialistas. Parece que os pobres são apenas um veículo para um quadro emocional de substituição a partir do qual encontrou uma razão para viver. Depois de perder o filho que ela ignorava, precisava acreditar que sua presença pode mudar para melhor a vida daquelas pessoas pobres – talvez fosse mais narcisismo do que socialismo. Por outro lado, de acordo com Charles Tesson, Luis Buñuel teria bebido nessa fonte ao criar o protagonista de Nazarin (1958). (nas duas imagens acima e abaixo, à direita, Irene na fábrica substituíndo Passerotto. Na primeira, bem ao estilo de Michelangelo Antonioni, Irene olha confusa todas aquelas máquinas barulhentas. Na seguinte, ela tenta cumprir sua tarefa repetitiva, mas que exige toda a concentração. Na terceira, Irene olha para o feio prédio da fábrica, talvez tentando compreender o que, ali, significa liberdade. Ao voltar dela, irritada ela comentar sua experiência com Andrea, o cuminista que nutre uma fé cega no progresso material da humanidade. Segundo Irene, "(...) E pensar que se quer fazer, do trabalho, um deus!")



A diferença entre

fazer por si usando
os outros e fazer de
verdade pelos outros




De acordo com Tesson (5), assim como em O Milagre (segundo episódio de O Amor, 1948), o cinema de Rossellini se aproxima daquele de Buñuel, Nazarin é uma espécie de refilmagem de Europa 51: redimir uma culpa, justificar sua vida, dar um sentido a sua existência, o duro caminho da compaixão e a necessidade do sofrimento. A loucura e a santificação, estado final da heroína do filme de Rossellini (diagnóstico veementemente contestado pelos pobres que ela ajudou), estão claramente representados também no protagonista de Nazarin.


Talvez a
distância entre
encontrar a verdade ou encontr
ar-se de verdade
seja
maior do que
se imagina


Em Buñuel os personagens acabam encontrando a própria verdade no fim do caminho, mas ela deixa na boca um gosto amargo (Nazarin). Uma verdade interior, afirma Tesson, sem relação com aquela (a revelação e a graça, a redenção e a salvação) que compõe a personagem de Rossellini. Mesmo que para chegar lá ela trilhe caminhos tortuosos, como as protagonistas de Stromboli (Stromboli Terra di Dio, 1950) e Viagem à Itália (Viaggio in Itália, 194). (imagem acima, Irene incentiva o filho de um casal idoso que cometeu um delito a fugir, mas deve também pensar sobre o que fez e se entregar à polícia. O filme de Rossellini apresenta todo o ciclo da pobreza: primeiro as pessoas não possuem formação escolar; depois só conseguem trabalhar em profissões sem proteção social ou formação técnica; então não possuem poder aquisitivo ou visibilidade política para reivindicar direitos de cidadania que lhe são sistematicamente negados; são isoladas fisicamente e mantidas "calmas" pelos órgãos de repressão; quando alguém se rebela e comete uma contravenção, é caçado como um animal; o sistema, então, encontra uma justificativa para autorizar sua morte/humilhação pública; afinal de contas, essa pessoa é um "mal" para a sociedade)

Rossellini insistia que o Neo-Realismo, passada a fase do imediato pós-guerra, deveria concentrar-se no interior dos personagens. Não haveria contradição entre um filme de crítica social que também se concentra na psicologia dos personagens. Entretanto, ao direcionar Irene para uma postura mais salvacionista do que libertária Rossellini suscitou a desaprovação da crítica cinematográfica italiana de esquerda. O que Rossellini considera mudança de rumo, outros chamam de crise do Neo-Realismo (6). A busca de Irene representaria bem esse rompimento entre cinema e sociedade. Nas palavras de Vittorio Spinazzola:

“(...) Nenhuma das instituições operantes na sociedade civil oferece (...) a possibilidade de se identificar ativamente numa fé que lhe permita encontrar de novo a si mesma, no ato que lhe garante uma comunhão com seus semelhantes. As exigências de autenticidade nas relações interpessoais não encontram bases nas quais se fundamentarem; a ânsia de absoluto aparece como a prova de uma diversidade interior, à qual o mundo reage segregando a pessoa que traz em si os excluídos, no manicômio. E ela aceita essa sorte, pois somente desse modo preservará não contaminada sua vocação testemunhal” (7)

Um diálogo entre Irene e Andrea o comunista coloca claramente o dilema. Enquanto ela afirma que devemos agir para dar esperança aos pobres, ele insiste que devemos concentrar nossas ações de forma a não torná-los dependentes de nossa eventual boa vontade. Deveríamos, ele insiste, fazê-los tomar consciência de sua condição. Torná-los conscientes do por que são oprimidos. Embora Irene não faça as coisas com a bíblia na mão ou escoltada por um padre, este diálogo traduz a oposição que marcou a sociedade italian do pós-guerra (agravado pela radicalização/manipulação das massas no contexto da Guerra Fria): de um lado, uma instituição que concentra nela mesma a esperança e a fé (a Igreja Católica), e do outro, a necessidade de romper com o sono alienado das populações exploradas (marxismo).

Notas:

Leia também:

Yasujiro Ozu e Seus Labirintos

Nosferatu, o Retrato de Uma Época (I)

1. BERNARDI, Sandro. Rossellini’s Landscapes: Nature, Myth, History In FORGACS, David; LUTTON, Sarah; NOWELL-SMITH, Geoffrey (eds.). Roberto Rossellini, magician of the real. London: British Film Institute, 2000. Pp. 57 e 63n12.
2. RHODES, John David. Stupendous, Miserable City. Pasolini’s City of Rome. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2007. P. 7.
3. No dvd de Europa 51, lançado pela Versátil Home Vídeo em 2010, traduziu-se borgate por “bairros populares”.
4. PAINTER Jr., Borden W. Mussolini’s Rome. Rebuilding the Eternal City. New York: Palgrave Macmillan, 2005. Pp. 95-8.
5. TESSON, Charles. Luis Buñuel. Paris: Éditions de l’Étoile/Cahiers du Cinema, 1995. Pp. 227-8.
6. WAGSTAFF, Christopher. Rossellini and Neo-Realism In FORGACS, David; LUTTON, Sarah; NOWELL-SMITH, Geoffrey (eds.). Roberto Rossellini, magician of the real. London: British Film Institute, 2000. P. 38.
7. FABRIS, Mariarosaria. O Neo-Realismo Cinematográfico Italiano. São Paulo: Edusp, 1996. P. 135.

Sugestão de Leitura

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