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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

8 de set. de 2009

Uma Judia Sem Estrela Amarela



“Você  tem  de  viver
e não pensar em mais nada
. Deve viver e basta.
(...) Você  não  é  mais uma 
judia. Entendeu?  Agora
é a  sua  vez.   Procure
viver. Boa sorte. Vá!”




A Narrativa

Kapo, Uma História do Holocausto (Kapò, direção Gilo Pontecorvo, 1960) acompanha Edith, desde sua destruição até sua redenção. Vivendo em Paris durante a ocupação nazista, a menina de quatorze anos está voltando da aula de piano quando assiste seus pais sendo levados para deportação pelos alemães. Ela corre ao encontro deles, se junta ao grupo e todos terminam no campo de extermínio de Auschwitz, na Polônia. Lá chegando, Edith é salva do extermínio por Sofia, uma prisioneira que deseja receber algo em troca. A menina é levada a um médico que protege os judeus. Ela acaba sendo mandada para um campo de trabalho.


Ele transfere para Edith a identidade de outra prisioneira, uma francesa de nome Nicole Niepas que acaba de morrer. A mulher não era judia, havia sido levada para lá porque era ladra. Essa categoria de pessoas usava um triângulo preto costurado na roupa. É entre os criminosos que os alemães escolhem os guardas do campo – os Kapo. Como Edith é judia, sua roupa ostenta uma estrela amarela. O médico pede que ela troque de roupa com a morta e sugere que Edith esqueça que é judia, que tente apenas ficar viva. É neste momento que Edith assiste seus pais sendo levados nus para a morte na câmara de gás.



“Seu número é 10,099”, o médico instrui Edith, que de agora em diante se chamará Nicole. Seguindo as instruções do médico e de seu próprio instinto de sobrevivência, ela chega a ponto de se prostituir para os soldados alemães. Apenas isso já seria uma demonstração de quanto de sua origem a menina seria capaz de negar para sobreviver, mas ela vai além. Edith/Nicole acaba sendo promovida ao posto de kapo – um elemento muito temido pelos judeus. Ela se apaixona por um prisioneiro russo e será justamente por amor a ele que Edith/Nicole tomará uma atitude que a levará a morte. Em seus momentos finais, em seu idioma de origem, ela pede perdão aos céus e morre.

Queda e Ressurreição 

Kapo foi uma espécie de capataz nos campos de concentração nazistas com direito de vida e de morte sobre os prisioneiros. Agindo também no controle através da intimidação, ela vigiava os movimentos das prisioneiras e não deveria hesitar em puni-las com chicote ou entregá-las aos nazistas se isso fosse necessário. O kapo, enfim, era um nazista. Edith nega suas origens e não só se entrega ao sexo com seus algozes, como se torna uma espécie de torturadora de mulheres judias. Em função disso, gozando até de camaradagem por parte dos alemães, ela está sempre bem alimentada e com saúde.




“Pontecorvo vai mapear meticulosamente a queda de Edith/Nicole em sua determinação para ‘viver e basta’. Isso significa roubar a preciosa batata que a benevolente Teresa guardou; isso significa escapar da seleção [de pessoas machucadas que serão mortas] mostrando os seios para distrair o oficial nazista e ele não ver suas mãos machucadas; isso significa exibir de forma insensível suas táticas de sobrevivência diante daqueles que não são tão afortunados; isso significa se prostituir para o comandante alemão por comida extra; e finalmente, isso significa ascender ao posto de kapò” (1)



Mas o diretor Gilo Pontecorvo apresenta alternativas às opções de Nicole. Existe a prisioneira 8711, enforcada na frente de todos por suas atividades para sabotar o funcionamento do campo de concentração. Existe Teresa, foi da Resistência e se recusou a traduzir o comandante do campo quando este mandou dizer às mulheres que é justo que uma sabotadora do campo morra. Teresa é a mulher que sustenta a dignidade humana a virtude moral em face do insuportável. Mesmo Georgette, uma criminosa comum que mata o gato de Nicole por vingança, se redime por sua conexão com os outros prisioneiros.



A deterioração moral de Nicole dá uma parada quando ela conhece Sasha, um prisioneiro russo. Apaixonada ela se dispõe a ajudar quando ele e seus companheiros planejam uma fuga. Os alemães estão perdendo a guerra e as tropas soviéticas estão próximas do campo de prisioneiros. Sasha é convencido a fazer um pedido a Nicole que significará a morte dela. Fazendo uso de suas facilidades, Nicole deverá entrar na casa de força e desligar a eletricidade da cerca que envolve o campo. Quando Sasha revela que ela não sairá viva dali, desiludida e desmoralizada Nicole segue em frente e completa sua missão.



Antes de morrer, ela recita Shema Yisrael, a reza determinante do judaísmo, num retorno a seu eu antes da queda. Com esse ato de martírio, Nicole se torna Edith novamente e Sasha é deixado para viver com a culpa de sua opção pelo sacrifício de sua amada em função do bem comum.


Na verdade, o romance entre Edith/Nicole e Sasha foi introduzido posteriormente no roteiro do filme. Pontecorvo se rendeu aos apelos de seu co-roteirista para tornar o enredo menos severo, mixando o realismo histórico a um romance sentimental. Depois do filme pronto, Pontecorvo voltou a considerar o romance indigesto, mas então já era tarde. O filme foi um grande sucesso, e a brutalidade do conteúdo do filme pode ser percebida no tratamento que Pontecorvo deu a fotografia em preto e branco (procurando reproduzir a granulação que se encontra normalmente nas imagens de cinejornais da época da guerra) (2).



O Holocausto e o Cinema Italiano

Para Millicent Marcus, a relação da Itália com o Holocausto é problemática. Pontecorvo é exceção, embora Kapo não se passe na Itália, pois Edith mora em Paris. Os protagonistas também são importados, Susan Strasberg (Edith) é norte-americana e (Sasha) Laurent Terzieff e Emmanuelle Riva (Teresa) franceses. Entretanto, essa coincidência teria apenas relação com um movimento de internacionalização do cinema italiano na época. Marcus fala em dois grupos de filmes nesse contexto. O grupo ao qual Kapo não pertence só fala da Itália, são filmados pelo menos parcialmente lá e com atores italianos.



Como afirmou o crítico de cinema Paolo Finn, “em cinqüenta anos de cinema italiano, encontramos uma produção limitada de trabalhos a respeito desse tópico” (3). Entretanto, Marcus lembra que filmes existem, mas vivem numa obscuridade que sugerie desinteresse pelo Holocausto. Alguns títulos sobressaem: O Jardim dos Finzi-Contini (Il Giardino dei Finzi Contini, direção Vittorio De Sica, 1970), O Porteiro da Noite (Il Portiere di Notte, direção Liliana Cavani, 1974), Pasqualino Sete Belezas (Pasqualino Settebellezze, direção Lina Wertmüller 1976), além do filme de Pontecorvo.




Mas o restante dessa filmografia não teria encontrado o caminho para a história do cinema italiano, em conseqüência não se criou uma tradição em relação ao tema. Como sugere Marcus, na falta dessa tradição, os filmes não se comunicam entre si. É como se o trabalho de cada cineasta começasse do zero. Essa situação seria responsável pela falta de visibilidade de obras menores sobre o assunto.


Assim, filmes bastante secundários ou fracos tornam-se visíveis e fonte de interesse e pesquisa somente porque conseguem estabelecer uma ligação com outros de mesmo tema. Curiosamente, continua Marcus, o Fascismo (força por trás do Holocausto dos judeus italianos) é um tema muito presente na cinematografia italiana – pensemos em Amarcord (1973), de Fellini ou, Roma, Cidade Aberta (Roma, Città Aperta, 1945), de Rossellini. Os filmes sobre esse tema se comunicam entre si, como também aconteceu com aqueles do chamado cinema político ou ainda da comédia italiana.




Kapo. Uma História do Holocausto foi capaz de colocar em questão os limites da crença humana na própria herança cultural a que pertence. Nos filmes sobre o Holocausto, em geral o que se vê são judeus que preferem morrer a negar sua origem. Com a possível exceção de O Porteiro da Noite, o filme de Gilo Pontecorvo talvez tenha sido aquele que foi capaz de esticar ao limite essa frágil corda que liga os judeus a si mesmos. Mostrar uma judia que prefere negar o que é para continuar viva é uma estória (ou história?) que vai muito além dos filmes cheios de clichês sobre o Holocausto.


Leia também:

Mussolini e a Sombra de Auschwitz
Duas Mulheres Italianas e o Mundo dos Homens
O Holocausto de Pasqualino

Notas:

1. MARCUS, Millicent. Italian Film in the Shadow of Auschwitz. Toronto: University of Toronto Press, 2007. P. 38.
2. Idem, p. 39.
3. Ibidem, p. 28. 


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