Um mergulho
no cinema italiano
e na Itália com todos
os seus tropeços do
pós-guerra
O Problema de Ser Você Mesmo
Gianni, Nicola, Antonio e Luciana eram amigos. Os três homens eram apaixonados por ela. Lutaram juntos na Resistência durante a Segunda Guerra Mundial. Depois da guerra, Gianni se tornou um advogado, Nicola um professor e intelectual, Antonio um operário. Nicola chegou a ser demitido do emprego em função de sua defesa de Ladrões de Bicicleta (Ladri di Biciclette, direção Vittorio De Sica, 1948) – alguns intolerantes consideravam que o filme “fomentava a luta de classes”. Posteriormente, Nicola também vai perder o prêmio num concurso de televisão onde respondia perguntas sobre este filme. Anos depois, verifica-se que ele estava certo. Gianni, que manteve um relacionamento com Luciana, acaba optando por casar-se com a filha de um gangster poderoso e rico. Esta mulher, que o ama muito, mas é muito desvalorizada por Gianni (pelo que ela significava e por sua aparência), acaba morrendo num acidente automobilístico – mas vem assombrá-lo nos próprios delírios dele, que não consegue convencer a si mesmo que controla a própria vida.
Luciana quer ser atriz e até se apresenta a Fellini durante as filmagens da famosa cena de A Doce Vida na Fontana di Trevi, em Roma. Ela acaba não conseguindo realizar sua aspiração e no fim se casa com Antonio, o operário honesto. Depois de muito tempo, Gianni encontra o casal pernoitando numa fila para garantir a matrícula de seu filho na escola. De fato, o filme começa com a tentativa dos amigos reencontrarem Gianni, aquele que, aparentemente, poderia se considerar realizado – já que conseguido uma posição de dinheiro e sucesso profissional. O filme havia começado pelo fim, com os três chegando à casa de Gianni para devolver um documento. Olham de longe sobre o muro enquanto ele atravessa o jardim de sua mansão e se prepara para saltar do trampolim em sua piscina – durante todo o tempo, Gianni escondeu o fato de ter ficado rico. Durante o salto a imagem se congela e toda a história do filme é contada. No final, retornamos à mesma cena, Gianni está parado no ar, no meio do mergulho. Então a imagem volta ao movimento, o mergulho acontece e os três voltam para o carro e vão embora sem falar com Gianni.
Ettore Scola faz
uma homenagem ao
cinema europeu
Ettore Scola dedicou Nós Que Nos Amávamos Tanto (C’eravamo Tanto Amati, 1974) a Vittorio De Sica – o próprio cineasta neo-realista aparece no filme em imagens de arquivo. O filme combina considerações a respeito das muitas mudanças políticas e sociais que ocorreram na Itália durante o pós-guerra com uma pesquisa sobre o cinema italiano do mesmo período. Peter Bondanella ressalta que o filme oscila entre vários estilos e períodos. Por exemplo, o primeiro flashback dos dias de guerrilheiro antinazista foi feito em preto e branco, num estilo de documentário típico das obras neo-realistas. A seguir, a tensa atmosfera do imediato pós-guerra é recriada quando Nicola defende Ladrões de Bicicleta contra os senhores retrógrados de sua cidade – que acusavam o filme de fomentar a luta de classes. Aldo Fabrizi, o ator que imortalizou o padre antinazista em Roma, Cidade Aberta (Roma Città Aperta, direção Roberto Rossellini, 1945), agora atua como o gangster obeso e repugnante, cuja filha se casa com Gianni – levando-o a se tornar o primeiro dos três velhos amigos a negociar suas esperanças de uma nova Itália em troca de riqueza e posição. Em relação à Fabrizi, Bondanella chega a sugerir que talvez não haja imagem mais devastadora do fim das aspirações italianas do pós-guerra do que a degradação física do ator, cujo corpo gigantesco testemunha os excessos e auto-indulgência da Itália no pós-guerra (1).
As referências diretas ao cinema são várias, a começar pela recriação por Nicola da inesquecível seqüência das escadarias de Odessa em O Encouraçado Potemkin (Bronenosets Potyomkin, direção Serguei Einsenstein, 1925), dessa vez nas escadarias da Piazza di Spagna, em Roma – outro cineasta italiano, Bernardo Bertolucci, homenageou a mesma seqüência do filme de Eisenstein em Partner (1968), que alias também homenageou outro filme do cinema mudo, Nosferatu (Nosferatu, eine Symphonie des Grauens, F.W. Murnau, 1922). Nas cenas da década de 50 do século passado, Nós que nos Amávamos Tanto remete de certa forma aos primeiros filmes de Federico Fellini. Já para os anos 60, mudando para o colorido, Scola filma a prosperidade do Milagre Econômico italiano em A Doce Vida (La Dolce Vita, 1960). Scola recria a gravação da famosa cena da Fontana di Trevi, inclusive com a participação de Marcello Mastroianni e do próprio Fellini – numa cena hilária, ele é confundido com Roberto Rossellini. Então Scola parafraseia o estilo de Michelangelo Antonioni em O Eclipse (L’eclisse, 1962), empregando-o para dramatizar a falha de comunicação entre Gianni e sua esposa.
Luciana se
apresenta a Fellini
durante as filmagens na Fontana di Trevi, mas ainda não foi desta vez que ela conseguiu um papel
no cinema
apresenta a Fellini
durante as filmagens na Fontana di Trevi, mas ainda não foi desta vez que ela conseguiu um papel
no cinema
De acordo com Bondanella, a mais complexa inter-relação entre cinema e sociedade (ficção e fato) no filme de Ettore Scola envolve a figura de Vittorio De Sica. Nos anos 60, Nicola aparece no show de perguntas de Mike Bongiorno, Lascia o Radoppia. Responde a todas as perguntas corretamente, mas o prêmio depende da resposta certa para o motivo pelo qual o menino chora no final de Ladrões de Bicicleta. Detalhista a ponto de desviar do assunto, Nicola disse que, na verdade, a criança chorou porque De Sica havia colocado pontas de cigarro no bolso dela e depois a acusado de roubá-las. Ele perde o concurso por que confundiu a resposta “factual” com a “ficcional”, a resposta “correta” seria: porque o garoto viu seu pai sendo preso pela polícia por roubar uma bicicleta. Anos depois, Nicola está presente quando o próprio Vittorio De Sica conta a mesma história dele sobre como forçou o menino a chorar! (imagem acima, à esquerda, um padre católico se empanturrando durante o aniversário do gansgter; à direita, Luciana ensina técncas de atuação)
Cinema e Sociedade
Na opinião de Bondanella, apesar da mistura intrigante de estilos e locações, que aponta para a profunda inter-relação entre cinema e sociedade na Itália, a mensagem política de Nós que Nos Amávamos Tanto poderia ser capturada até pelo espectador italiano mais ignorante. Os três homens representariam grupos sociais: a classe média, a elite intelectual (intelligentsia) e o proletariado. A mulher simbolizaria a própria Itália, seus relacionamentos refletiriam em microcosmo o intercâmbio social e político entre as classes sociais na Itália (2). Bondanella ressalta ainda que, Nós que Nos Amávamos Tanto, juntamente com Feios, Sujos e Malvados (Brutti, Sporchi e Cattivi, 1976) e O Terraço (La Terrrazza, 1980), estão entre os filmes de Ettore Scola que empregam um discurso meta-cinemático para mergulhar na própria história da Itália, e do cinema italiano em particular - examinando não apenas a herança do neo-realismo (especialmente De Sica), mas todo o curso do cinema italiano no pós-guerra (3). (imagem acima, à esquerda, o gangster, bem sucedido empresário da construção civil, durante a festa de seu aniversário num canteiro de obras; abaixo, à direita, o gangster consola Gianni, "o homem rico é solitário"; na última imagem, Gianni assiste ao programa de televisão em que Nicola responde sobre Ladrões de Bicicleta)
No roteiro original,
De Sica e Nicola eram
o centro da ação. Tudo
por causa de Ladrões
de Bicicleta
Millicent Marcus sugeriu que a importância de Ladrões de Bicicleta criou no cinema italiano uma espécie de psique coletiva. Originalmente, o roteiro de Nós que Nos Amávamos Tanto girava em torno de Nicola, o professor do interior que participou na Resistência durante a guerra e simplesmente ama Ladrões de Bicicleta. No final, o roteiro evoluiu para além do foco em Nicola. Mas o filme seria completamente outro se, como Scola pretendia inicialmente, Nicola abandonasse o trabalho e a família e viajasse para Roma ao encontro de Vittorio De Sica. O filme era para ser exclusivamente a historia de uma longa trilha atrás de De Sica que duraria trinta anos. Nicola seguiria De Sica e se tornaria para ele uma verdadeira obsessão. De Sica constantemente o encontraria e o homem o confrontaria com problemas morais e de consciência. Nicola seria como a mosca na sopa de De Sica, que o repreenderia em relação a parte de sua obra que não é tão boa. O filme terminaria com a mesma frase que se manteve na versão final, na boca da Nicola (na cena em que De Sica revela como fez o garoto chorar):
“Achávamos que
mudaríamos o mundo,
mas foi ele que nos
fez mudar!” (4)
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Notas:
1. BONDANELLA, Peter. Italian Cinema. From Neorealism to the Present. New York/London: Continuum, 3ª ed, 2008 [1983]. P. 371.
2. Idem, pp. 372-3.
3. Ibidem, p. 367.
4. MARCUS, Millicent. After Fellini. National Cinema in the Postmodern Age. Baltimore (USA): The Johns Hopkins University Press, 2002. P. 214.