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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

29 de jan. de 2008

Pasolini, o Corvo Falante



“Vocês têm o mesmo olhar maligno. São medrosos, inseguros,  desesperados  (ótimo!),  mas  também  sabem como ser
prepotentes
, chantagistas, convencidos, descarados:
prerrogativas pequeno
-burguesas, meus amigos”

O PCI Aos Jovens! (notas em verso para um poema em prosa)
Pier Paolo Pasolini


Pier Paolo Pasolini, pensador italiano do pós Segunda Grande Guerra, detestava a cultura de massas, que considerava uma espécie de doença do consumismo agindo nas entranhas da sociedade italiana. Percebia seus tentáculos mesmo nos movimentos estudantis das décadas de 60 e 70 do século passado, desnudando um espírito burguês que se apossava das mentes (ou nunca havia saído delas) daqueles que supostamente haviam tomado consciência das manipulações à que o povo é submetido pelo sistema. Segundo Pasolini, burguesia não é uma classe social, mas uma doença contagiosa que infecta aqueles que a combatem. Nessa história, uma verdadeira crise moral sem precedentes, todos os operários querem ser burgueses! O pensador é explícito: “a burguesia está triunfando, está tornando burgueses os operários e os camponeses. Através do neocapitalismo, toda a história do mundo passa a coincidir com a burguesia [seus interesses e gostos]”. (1)

“O burguês – digamos espirituosamente – é um vampiro, que não fica em paz enquanto não morde sua vítima no pescoço. Pelo puro, simples e natural prazer de vê-la se tornar pálida, triste, feia, desvitalizada, disforme, corrompida, inquieta, cheia de sentimentos de culpa, calculista, agressiva, terrorista, tal como ele mesmo”. (2)

Pasolini lutava contra um pragmatismo burguês que procurava (ainda procura? Ou, ainda precisa procurar?) apagar as memórias, as lembranças e as contradições (esse motor) da vida, tornando-as inócuas, prontas para as massas (e seu consumismo bovino). Todos ficam calmos e entretidos enquanto estão consumindo; até ao minuto seguinte, quando o vazio de sentido pede mais uma dose, um comprimido, um cigarro, comida, etc. O importante é esquecer (e esquecer-se de si; e de preferência esquecer-se que esqueceu), procedimento chave do infantilismo contemporâneo. “O que, aliás, não é muito diferente do raciocínio de muitos – pós-modernos ou não – que recusam o passado, já que não tê-lo torna mais leve o presente – a síndrome da leveza -, uma dádiva reservada só às crianças”. (3)

Em Gaviões e Passarinhos (Uccellacci e Uccellini, 1965-66), que marca uma virada em sua cinematografia, temos três personagens: um pai, um filho e um corvo falante - que é uma projeção de Pasolini. Pai e filho têm uma mente inocente, mas o animal está sempre fazendo comentários marxistas. Enquanto as aventuras dos dois homens se desenrolam, o corvo não pára de falar, mais preocupado em conhecer e analisar o mundo do que em viver nele. Na cena final, pai e filho concordam em comer o pássaro, mas continuam pela estrada sem saber aonde ir ou o que fazer. Antes da morte do pássaro, Pasolini interpõe material documentário registrando os funerais de Togliatti, símbolo e líder do Partido Comunista Italiano (PCI) (4). E, prenunciando seu futuro, ele próprio, o corvo, é assassinado em 1975.




O corvo se apresenta: “Eu venho de longe. Meu país se chama ideologia, vivo na capital, na cidade do futuro”.(...)”Meus pais são o Sr. Dúvida e a Sra. Consciência”. O corvo resolve contar uma história, nela Pasolini coloca o pai no papel de don Ciccillo, um frei que recebeu de São Francisco de Assis a incumbência de apaziguar a eterna luta entre gaviões e pardais – fatal para os últimos. Don Ciccillo conclui ser impossível conciliar os animais – “porque gaviões são gaviões e pardais são pardais”. São Francisco discorda: “É preciso mudar este mundo, frei Ciccillo; é isso que vocês não entenderam! Andem e comecem tudo outra vez, em nome do Senhor”. Pasolini conta alegoricamente o problemático diálogo entre as classes sociais. Ele mostra que, nessa luta de classes, precisamos compreender que os tempos mudam.

Na opinião de Pasolini, a cultura de massa afasta as pessoas de si mesmas. Primeiro, tornando-as hipócritas e covardes, para então suborná-las com a síndrome da leveza. A espetacularização da política e da religião (mostrada em A Ricota) (5) são apenas mais dois nós dessa corda com a qual nos enforcaremos. Em 1966 declara:

“(…) nessa altura, conheceu-se na Itália o que seria depois denominado cultura de massa, e seus instrumentos, os mass media; foi nesse momento que fiquei assustado e incomodado e não quis mais continuar fazendo filmes simples, populares, porque, caso contrário, seriam de certo modo manipulados, mercantilizados e desfrutados pela civilização de massa. E então fiz filmes difíceis, começando com Gaviões e Passarinhos, Édipo Rei, Teorema, Pocilga, Medéia, filmes mais aristocráticos e difíceis, que seriam portanto dificilmente desfrutáveis”.(6)

Pasolini era muito crítico em relação à Italia. Sua vida na periferia dos grandes centros urbanos, seu discurso (auto-crítico) de esquerda (alertando para a necessidade de abandonar os esquemas tradicionais do marxismo) (7), sua capacidade fina de observação da realidade, são características que alimentaram uma horda de inimigos de todas as cores e rótulos. Ele denunciava uma “cultura do dinheiro” que estaria consumindo a consciência dos italianos, o que era antes um modo de ser, torna-se cada vez mais o único modo de ser – “era como se houvesse uma só maneira de viver, de desejar, de pensar” (8).

Em A Ricota (La Ricotta, 1962-3), o personagem de Orson Welles, um diretor de cinema, numa conversa com um jornalista: “(…) E tem orgulho de ser um homem comum! Um homem-massa. É o que quer seu patrão. Mas o senhor não sabe o que é um homem comum? É um monstro. Um delinqüente perigoso. Conformista! Colonialista! Racista! Escravista!”. (9)

“Em 1964, portanto, Pasolini já anunciava que uma mudança profunda na sociedade italiana estava em andamento. A Itália humanista, do Renascimento, tão amada pela sua cultura (diversificada, celebrada e admirada no mundo todo), achava-se em vias de desaparecer. O que ia se afirmando como a nova Itália (a da “Pós-história”) era uma cultura de homens que só pensavam em produzir e consumir, seguindo à risca os dogmas da nova sociedade”. (10)

Até que ponto estamos, enquanto pessoas ou enquanto brasileiros, realmente dispostos a mudar? Acomodados numa ética covarde que não deixa perceber a virulência com que atacamos todos os atos cotidianos que representam alguma mudança. A marca da mudança nos choca. Por fora, posamos com nossas máscaras de espíritos livres, que vivem e deixam viver. Por dentro, não passamos de burgueses conservadores, que só compreendem/aceitam a vida enquanto estiver amordaçada por clichês e estereótipos. Tudo isso perfeitamente sincronizado com a segmentação mercadológica baseada na lógica do consumo: consumidores e neuróticos, esse é o horizonte da felicidade?

Enquanto isso, duas frases da terra brasileira. Em Triste Fim de Policarpo Quaresma (livro de Lima Barreto, publicado em 1911; filme dirigido por Paulo Thiago, 1997) (11), o próprio afirma: “o Brasil não é para ser descoberto, é para ser inventado”. Terra em Transe (1967), filme do cineasta brasileiro Glauber Rocha, mostra Eldorado, república fictícia mergulhada em corrupção. De repente, uma pergunta direcionada ao ditador de plantão: “Um dia, quando for impossível impedir que os famintos nos devorem, então veremos que a falta de coragem, a falta de decisão... O que é que você é Vieira? Diga? Um líder?”

Quem somos nós, os brasileiros de hoje? Somos os Policarpos ou os Vieiras?


Leia também:

Ettore Scola e o Milagre em Roma
Ettore Scola e o Filme Dentro do Filme
Mussolini e a Sombra de Auschwitz

Notas:

1. AMOROSO, Maria Betânia. Pier Paolo Pasolini. São Paulo: Cosac & Naify. P. 78.
2. Pasolini. P. P. O Caos – crônicas políticas. São Paulo: Brasiliense, 1982. P. 26.
3. AMOROSO, Maria Betânia. Op.Cit. , p. 116. O grifo é meu.
4. Idem, p. 66.
5. Ibidem, p. 46.
6. Ibidem, p. 68.
7. Ibidem, pp. 44-5.
8. Ibidem, p. 45.
9. Ibidem, p. 27. A Ricota, episódio de Rogopag. Relações Humanas. Versátil Home Video.
10. Ibidem, p. 42.
11. Lançado com o título Policarpo Quaresma, Herói do Brasil


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