“Um ano depois de Teorema, Pasolini oferece outro exemplo da família burguesa disfuncional e do vazio espiritual na Itália. Pocilga retrata o relacionamento limitado e conformista entre as gerações novas e velhas e a natureza deprimida das relações entre dos sexos dentro delas e entre elas”. (1)
Teorema era ambientado em Milão, na Itália. Pocilga se passa na Alemanha. Julian não consegue decidir sua posição política, enquanto Ida decide sem pensar. Ela é otimista, ele é deprimido e cínico. Segundo Colleen Ryan-Scheutz, a seu modo, a relação de Julian com os porcos é mais autêntica do que a de Ida com seus colegas ativistas políticos. O único traço autêntico de Ida parece ser seu espírito rebelde. Julian representaria o grande perigo da indecisão política, enquanto Ida representaria o destino negativo de uma geração jovem capturada.
Em Busca da Autenticidade
Aos dezessete anos, completamente capturada pela agenda estudantil, é difícil para Ida perceber o ponto de vista de Julian. Ele até deixa temporariamente seu refúgio na indiferença para tentar fazer Ida refletir sobre o individualismo dele. Julian pergunta para Ida: “Você pensa que o conformismo possa lançar uma sombra sobre minha eternidade? Você não percebe que minha principal qualidade é continuar imutável?” (2)
Através das afirmações de Julian, Pasolini ressalta a hipocrisia de Ida, apontando para a apatia dele como uma solução verdadeiramente revolucionária.
Seja como for, Pasolini coloca Julian e Ida em campos opostos, apontando a perversão sexual dele como exemplo de vida livre. Julian preserva uma aura de mistério ao viver sua vida longe do sistema familiar e até mesmo de Ida. É como se o segredo de Julian fosse uma metáfora para a nova vida – uma essência que não pode ser influenciada por outras. (imagens ao lado e abaixo, Ida e a mãe de Julian disputam quem consegue enxergar melhor o rapaz)
Tornando a verdade inacessível e, quando conhecida, simplesmente impenetrável para os outros, Pasolini denuncia a renúncia do mundo em relação à diversidade, honestidade e alteridade.
A mãe de Julian é desprovida de qualidades vitais. Enquanto esposa burguesa, é isso que ela deseja que Ida seja para seu filho. Papel que Ida gostaria de assumir, não fosse pela relutância de Julian. A mãe de Julian discorda de Ida quanto às qualidades, talentos, interesses e traços de caráter dele. Entretanto, elas não são muito diferentes uma da outra. No final, Ida reconhece isso. (ao lado, Julian em estado catatônico como Odetta em Teorema)
Ela não é capaz de perceber Julian como seu outro modelo possível de individuação, enxergando apenas semelhanças entre a criança rebelde que ela é e a mãe burguesa e conservadora de Julian (4).
Rebeldes Sem Causa
Portanto, uma identidade autônoma é tudo que o futuro não reserva para Ida, a filha da burguesia que será engolida pelo sistema cultural tão silenciosa e completamente que ela não perceberá nem mesmo o quanto seus desejos e ações são perfurados com monotonia e falta de sinceridade. Ida poderia ser uma integrante da geração de 68, para quem Pasolini endereçou O PCI aos Jovens!, poema escrito um ano antes do lançamento de Pocilga. PCI é a abreviação de Partido Comunista Italiano, e o poema é a resposta de Pasolini às manifestações que tiveram lugar na Escola de Arquitetura de Roma. Pretendia-se criticar um sistema educacional velho e ineficiente. Pasolini acusava aqueles jovens comunistas e reformistas de, no fundo, serem tão burgueses e tão conservadores quanto o sistema contra o qual imaginavam estar lutando.
com os policias, eu simpatizava com os policiais!
Porque os policiais são filhos de gente pobre (...)”
“(...)Vocês ocupam as universidades,
mas suponham que a mesma idéia ocorra a jovens
operários. Nesse caso, o Corriere della Sera e
Popolo, Newsweek e [Le] Monde procurariam com
a mesma solicitude compreender os
problemas deles?(...)”
o PCI aos jovens! (...)”
Além disso, as manifestações confirmavam para Pasolini que, tanto as gerações jovens quanto as velhas, haviam sido capturadas pela mentalidade consumista e que nenhuma das duas tinha noção do que seria uma vida autêntica. Pior ainda, no final dos anos 60 do século 20, Pasolini quase não conseguia distinguir entre a Esquerda e a Direita.
“Aqui [no poema O PCI aos Jovens!], Pasolini abertamente explode a geração mais jovem por sua hipocrisia. Ele os vê como um grupo de adolescentes conformistas mimados, que se orgulham com uma vitória improdutiva. Uma vez que a polícia – quem em teoria denota a autoridade e o Estado que os estudantes veementemente ofendem – era [composta], na prática, [pelos] despossuídos das regiões do sul [do país, que não tiveram acesso ao sistema educacional], os estudantes estavam, na verdade, batendo e brigando com os ‘sem nada’ ou ‘outros’ a quem o PCI supunha apoiar e defender”. (8)
Julian será comido pelos porcos, mas isso será mantido em segredo pela família, pois sua morte é muito extrema para ser reconhecida como uma mensagem profundamente humana e significativa. Além disso, como na catatonia de Odetta em Teorema, a sociedade burguesa rejeita categoricamente qualquer movimento em direção à autenticidade. “Então Julian é esquecido, Ida desaparece no vazio, e toda esperança por um futuro brilhante e construtivo é perdida ou consumida” (9).
Notas:
Leia Também:
Ettore Scola e o Milagre em Roma
Ettore Scola e o Filme Dentro do Filme
Mussolini e a Sombra de Auschwitz
2. Collen Ryan-Scheutz retira estas frases do roteiro original. Entretanto, não esclareceu aos leitores de seu livro que estas frases que ela utilizou só podem ser encontradas aí, e não no filme. No roteiro, publicado pela editora Mondatori (2001), o trecho pode ser encontrado no primeiro volume, página 1126.
3. RYAN-SCHEUTZ, Colleen. Op. Cit., p. 118. Mesmo caso anterior, a segunda frase só pode ser encontrada no roteiro - este trecho se encontra também na página 1126 da edição citada na nota anterior.
4. Idem, p. 121.
5. O PCI aos Jovens! In AMOROSO, Maria Betânia. Pier Paolo Pasolini. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. Pp. 88, 89-90, 91 e 95.
6. Os dois primeiros são jornais italianos, o quarto é francês e o terceiro é uma revista norte-americana.
7. Modo de afirmação por meio da negação do contrário. Ex.: Não é nada tolo (substituindo ‘é muito esperto’). Fonte: Novo Dicionário Aurélio.
8. RYAN-SCHEUTZ, Colleen. Op. Cit., p. 123.
9. Idem, p. 124.