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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

2 de jan. de 2011

Bertolucci e o Negócio da China (II)



O grilo preso no pote
seria  o  próprio  Pu Yi
.
Soltando-o no final
, ele está afinal pondo  a  si
mesmo em liberdade



 


O Passado, o Presente e as Luzes Freudianas

A estrutura narrativa é similar a que fora utilizada em dois filmes anteriores de Bertolucci, A Estratégia da Aranha (Strategia del Ragno, 1970) e O Conformista (Il Conformista, 1970). Uma serie de 12 flashbacks começam pela prisão de Pu Yi e voltam ao passado até chegar à sua libertação em 1959, as manifestações da Revolução Cultural, a humilhação pública de seu antigo interrogador em 1967 (uma das acusações era de que o diretor havia sido conivente com o imperador), e na seqüência final sua visita como turista à Cidade Proibida. O papel de Jin Yuan, o diretor da prisão, foi desempenhado por Ying Ruocheng (1929-2003), ator e então vice-Ministro da Cultura chinês (1986-1989). Além da estrutura narrativa de O Último Imperador, Bondanella chama também atenção para os elementos psicanalíticos sempre presentes em Bertolucci (1). (imagens acima e abaixo, à direita, durante a coroação do pequeno Pu Yi)



Na época em que sua vida

era  miserável,  Pu Yi  vivia
num palácio multicolorido.
Na época em que começa a viver no mundo dos  vivos,
tudo é cinza e azul escuro





De fato, Bertolucci estaria tentando trazer Freud para o interior de sua própria busca utópica por um Marxismo humanista. Um dos colaboradores da equipe de Bertolucci era o diretor de fotografia Vittorio Storaro que explicou que a existência protegida de Pu Yi dentro da Cidade Proibida foi filmada quase sempre com cores “proibidas”, as cores mais quentes. Isto porque, disse Storaro, aquele lugar era ao mesmo tempo um útero protetor e uma prisão. De acordo com Bondanella, a colaboração entre Bertolucci e Storaro é um dos aspectos mais originais de O Último Imperador. A dupla já havia feito isso, utilizar a luz do filme para favorecer seu conteúdo narrativo, em filmes como A Estratégia da Aranha, O Conformista e O Último Tango em Paris (L’ultimo Tango a Parigi, 1972). Luz e sombra são justapostos para sugerir uma luta psicológica entre o consciente e o inconsciente de Pu Yi. Para Bertolucci, o jovem imperador preso no interior da Cidade Proibida representa a fuga da dolorosa autoconsciência comum a todos os seres humanos. Por conseguinte, retrata o eventual exílio de Pu Yi em relação a sua casa-útero como a partida de um cego – quando os soldados chegam, ele está de branco jogando tênis, quando passa pelos portões está de preto e de óculos escuros. Os óculos testemunhariam na apenas a falta de autoconhecimento, mas também os efeitos de um complexo de Édipo que emana de sua incomum história familiar – particularmente a ausência de uma figura paterna forte. À medida que Pu Yi amadurece e alcança maior compreensão de sua vida, as luzes e sombras do filme avançam para um equilíbrio maior.

Luz, Mais Luz...




Durante sua prisão,
Pu Yi tinha mais liberdade
física  do  que em sua  vida
na Cidade Proibida


Claretta Tonetti (2)




Bertolucci sabia que a autobiografia de Pu Yi não era “grande literatura”, mas estava interessado na “apologia moral e política” do último imperador da China e por sua “viagem das trevas a luz”. O cineasta gostava muito de um documentário de Michelangelo Antonioni sobre a China, Chung Kuo Cina (1972). As autoridades chinesas não gostaram muito, mas depois de algumas explicações eles se desculparam. Bertolucci chegou a chamá-lo de “o mais maravilhoso” trabalho que ele assistiu sobre a China no cinema. Também não gostaram quando Bertolucci sugeriu que gostaria de fazer um filme sobre a China baseado em A Condição Humana, de André Malraux. Consideravam o material muito sensível, a disputa entre os líderes na greve era muito sensível e se tratava de uma história da derrota do comunismo. Bertolucci disse que tentou explicar que todos os trabalhadores no Ocidente se apaixonaram pelo comunismo chinês por causa deste livro, porque é uma história romântica de revolução. Os chineses sorriram, contou o cineasta, e disseram para ele que achavam que realmente deveria fazer O Último Imperador (3). (imagem acima, Pu Yi em sua primeira tentativa frustrada de sair da Cidade Proibida - as portas do mundo real sempre se fecham para ele; abaixo, à direita, recém chegado ao palácio, o pequeno Pu Yi está no centro das atenções e a rainha morta atrás dele já o havia escolhido para o trono)




Bertolucci só poderia

filmar dentro da Cidade
 Proibida com autorização
 expressa  do  Partido
Comunista chinês




Bertolucci consegue a permissão para filmar, a partir daí procura compreender o lugar do “amarelo imperial” naquele sistema estético – tonalidade que o cineasta disse ser muito próxima do amarelo de Parma, sua cidade natal na Itália. Ele chegou a fazer um documentário de dez minutos sobre sua longa pesquisa, Cartolina dalla Cina, mostrado na televisão italiana em 1985. Claretta Tonetti fala de uma “sinfonia de cores” ao se referir a O Último Imperador. Como Peter Bondanella, Tonetti também enfatiza a importância do sentido da visão neste filme. Talvez não seja por acaso que Pu Yi tinha um problema de visão e teve de passar a usar óculos, caso contrário ficaria cego. Mas isso aparentemente não abriu suficientemente seus olhos! Primeiro vemos o mundo a partir dos olhos da criança imperador, que diante de todos aqueles que lá estavam prostrados em sua coroação, preocupava-se em descobrir onde estava o grilo que ele podia apenas ouvir. Depois passamos a ver o mundo a partir dos olhos do diretor da prisão comunista, quando descobre que Pu Yi continua sendo servido por um ex-criado. Na Cidade Proibida, Pu Yi era seguido por centenas de olhos e tinha uma ilusão de poder, na verdade ele era totalmente impotente.

No Reino da Fofoca Todos São Atores


Pu Yi sempre foi um personagem, inclusive
 para ele mesmo. Só não
sabia que o roteiro era
criado  apenas  por
outras  pessoas




Pu Yi sempre foi dirigido por pessoas que atuavam como subalternos. Na opinião de Tonetti, o Pu Yi da vida real foi um personagem que não chegou a constituir uma persona. Entretanto, Tonetti deixa claro que o Pu Yi de Bertolucci era outra “pessoa”. O cineasta deixa de fora uma série de dados da autobiografia, como por exemplo, o comportamento sádico do imperador (ainda menino) com os eunucos seus servos – no filme vemos apenas a cena onde ele, pretendendo provar para o irmão que ainda é o imperador da China, ordena que um servo beba tinta. Mas não era apenas o comportamento de uma criança. Já adulto, quando ele servia aos interesses japoneses em Manchukuo, seus hábitos cruéis era cotidianos. Bertolucci preferia mostrar Pu Yi como uma vítima ingênua e superficial de suas contingências existências. Os atos de rebeldia do Pu Yi de Bertolucci são a expressão de sua adolescência frustrada – quando já adolescente ele sobe no telhado ao saber da morte da mãe ou quando, já casado, desafia a tradição ao cortar o rabo de cavalo. O imperador perdeu duas mães, a real e a ama de leite – a primeira morreu sem nunca mais tê-lo visto, a segunda foi expulsa pelas viúvas do antigo imperador. (imagem acima, à esquerda, quando Pu Yi finalmente consegue sair da Cidade Proibida é porque foi expulso por um novo senhor)




O filho assassinado
de Pu Yi 
(natimorto que
seria ele mesmo
), era filho
do motorista dele com
a  rainha  adúltera





Talvez não seja por acaso, sugere Tonetti, que Pu Yi tenha tido duas esposas. Na cena de sexo entre os três, o que se vê é como um casulo de seda (o lençol que os cobria) (imagem acima), que se move em ondas como uma água materna. Pu Yi se esconde dos olhos dos eunucos e das esposas de seu predecessor. Sempre a idéia de se recolher na serenidade de um útero. Alguém está sempre olhando, mas a platéia só percebe isso de vez em quando. Como na seqüência da noite de núpcias, primeiro que Pu Yi leva um bom tempo até retirar o véu que cobre o rosto dela – somente depois que ela explica que é ele quem deve fazer isso. Sentados na cama, começam a se beijar até que os dois rostos estejam manchados com o batom dela. Percebemos que as roupas deles estão sendo retiradas por mãos de pessoas que não podemos ver. Apenas depois que a jovem imperatriz ordena, “deixem-nos”, percebemos que não somos a única platéia. Pu Yi só parece lembrar que está sendo observado quando uma de suas botas é retirada. Acostumado a ser constantemente observado, ele não parece vê-los mais. Talvez a partir deste ponto de vista se possa compreender melhor por que Pu Yi abandona o quarto de núpcias antes de uma conjunção carnal. Logo a seguir, vemos o bando de viúvas do antigo imperador voando para cima da noiva em busca de fofocas (4).


Leia também:

Bertolucci e o Negócio da China (I), (III)
Kieślowski e o Outro Mundo
Bertolucci e a Psicanálise: O Conformista (I), (final)
As Crianças de Angelopoulos
Antonioni na Babilônia (I), (II), (final)

Notas:

1. BONDANELLA, Peter. Italian Cinema. From Neorealism to the Present. New York/London: Continuum, 3ª Ed, 2008. Pp. 403-4.
2. TONETTI, Claretta Micheletti. Bernardo Bertolucci. The Cinema of Ambiguity. New York: Twayne Publishers, 1995. P. 224.
3. Idem p. 202.
4. Ibidem, p. 206.


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