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Roberto Acioli de Oliveira

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24 de ago. de 2011

Profissão: Michelangelo Antonioni



“O  duplo  suicídio
de Locke projeta uma
luz  reveladora 
sobre o
mundo ocidental ao qual
ele  pertence,   tornando
-se  exemplo  de  uma
condição universal”

Alberto Moravia (1)


A Identidade de Um Personagem

David Locke é um telejornalista londrino que viaja para a África no intuito de fazer uma reportagem a respeito de um movimento guerrilheiro – ele será abandonado por seu guia no meio do deserto do Saara. Quando seu jipe atola na areia, ele se enfurece, para, a seguir, cair ao chão chorando como uma criança. Lá no meio do nada ele conhece David Robertson, um traficante de armas com problema de coração que negocia com os rebeldes. Quando este morre, ao invés de chamar o funcionário do hotel Locke falsifica seu passaporte e assume a identidade de Robertson – quem nunca pensou em ser outra pessoa? Locke encontra aí a oportunidade para eliminar uma parte de si mesmo e se tornar outra pessoa. Então Locke arrasta o corpo de Robertson até seu quarto, e, aproveitando-se de certa semelhança física com, simula sua própria morte. A esposa de Locke e seu produtor acreditam que ele está morto, chegando a produzir um programa para a televisão em sua homenagem utilizando sobras de imagens feitas pelo telejornalista na África – involuntariamente, ela acabará levando até Locke os agentes do governo que pretendem matar Robertson. Enquanto isso, Locke passa a seguir os compromissos de Robertson marcados na caderneta do morto. (imagem acima, Locke, pouco antes de morrer pela segunda e última vez)

(...) As pessoas olham
para as crianç
as e todas
imaginam um mundo novo.
 Mas   eu
,   quando   as    vejo, 
só  vejo  a  mesma velha
tragédia  se  repetir”


Comentário de um velho para

Locke num parque de Barcelona


Só então, aos poucos Locke descobre qual era a mercadoria que Robertson negociava – na Alemanha, Locke-Robertson será abordado por emissários dos rebeldes, que trazem parte do pagamento pelas armas e agradecem seu interesse diferenciado pela causa. Locke encontra uma mulher estudante de arquitetura num edifício construído por Gaudí na Espanha e ficam juntos (imagem acima, Palácio Güell, local do encontro). Seduzida pelo mistério que envolve aquele homem, ela propõe ser seu guarda-costas. Ele se valerá dela para se esquivar das investigações de sua esposa e do produtor enquanto segue as indicações das anotações de Robertson. Quando ele percebe que está sendo seguido enquanto segue o itinerário de Robertson, já é tarde demais. São agentes secretos do governo mandados para assassinar o traficante de armas e assim estancar o fluxo de armamentos para as mãos dos rebeldes. Locke não acreditava ser mesmo capaz de viver a vida de outra pessoa. Ele não sabe o que quer, mas apenas o que não quer. Não possuindo o fôlego necessário para assegurar seus dois destinos, Locke fica à deriva – afinal, é possível sair de si mesmo e abandonar suas próprias contradições? Apenas para satisfazer sua jovem companheira de viagem, mais do que por convicção profunda, ele comparece a mais um encontro – o último anotado na agenda de Robertson. Encontrado pelos agentes, Locke morre como Robertson.

Personagem de Si Mesmo?


Locke parecia mais
interessado em fugir de sua

vida do que em transformá-la. 
Por  este  motivo,  mesmo  em
sua   nova  vida  ele   acabou
ficando   à   deriva



Juntamente com Depois Daquele Beijo (Blow-up, 1966) e Zabriskie Point (1970), Profissão: Repórter (Professione: Reporter, 1975) faz parte de um nicho da obra de Michelangelo Antonioni realizado fora da Itália, tendo o idioma inglês e atores não italianos como fator de destaque. Do ponto de vista de Peter Bondanella, o filme combina um thriller de suspense com uma investigação sobre a natureza do documentário. A confusão de Locke em relação à identidade caminha em paralelo às confusas tentativas do jornalista para alcançar a “verdade objetiva” em seu trabalho sobre o movimento de guerrilha africano. Em certo momento, três tipos distintos de documentário são examinados pela esposa de Locke e seu produtor: o primeiro é a entrevista com um presidente africano, cheio de propaganda governamental e mentiras; o segundo e mais perturbador é o que mostra uma execução (mostrado para nós primeiramente como realmente aconteceu e a seguir através do monitor do estúdio, justapondo aquilo que inicialmente percebíamos como “real” em relação àquilo que se tornou reportagem “objetiva”); o terceiro documentário mostra um curandeiro que vira a câmera na direção de Locke durante uma entrevista – Locke perguntava se tendo passado um tempo na Europa o curandeiro não teria passado a considerar falsos os costumes tribais. “Suas perguntas”, diz o homem, “revelam mais sobre você do que minhas respostas revelariam sobre mim” – o curandeiro retruca que eles não deveriam falar apenas sobre o que Locke acha sincero, mas também sobre o que o entrevistado considera honesto. Em O Cinemaníaco (Amator, 1979), o cineasta polonês Krzysztof Kieślowski faria o protagonista repetir o gesto com as próprias mãos. (imagem acima, à esquerda, Locke ainda como Locke, entra no deserto)


O Ser, afirmou Martin Heidegger, é ser-no-mundo. 
Mas  Locke  não   está  mais  “no  mundo”O mundo
agora   está   lá   fora,  do  outro   lado   da   janela (2)

Claretta Tonetti traça algumas conexões entre o filme de Antonioni e a realização um pouco anterior de Bernardo Bertolucci, O Último Tango em Paris (Ultimo Tango a Parigi, 1972). O filme de Bertolucci está cronologicamente situado entre Zabriskie Point e Profissão: Repórter, com o qual compartilha o sentimento de fuga e rompimento do protagonista em relação a sua cultura e seu passado. Zabriskie Point lida com o desinteresse de uma geração mais jovem em relação à cultura materialista. A fuga foi o que levou ao encontro do casal “no deserto dos Estados Unidos” – sem trocadilho! Desenraizados em seu próprio país, enquanto Paul, o protagonista do Último Tango, é um norte-americano desenraizado em Paris. Profissão: Repórter, Locke deixa sua identidade para trás ao trocar seus documentos com um homem morto. O desejo de Paul de escapar (insiste com Jeanne, a mulher com quem faz sexo casual, que devem esquecer-se de tudo e todos) encontra seu eco quando a mulher que acompanha Locke (curiosamente a mesma atriz do Último Tango, Maria Schneider) lhe pergunta sobre as razões de seu radical rompimento com o passado (“Do que você está fugindo?”). É a cena onde eles estão de carro seguindo por uma longa estrada reta ladeada por árvores e ele pede que ela se vire para trás, criando o efeito de um túnel de onde eles estariam saindo... (imagem acima) A realidade do corpo e seu prazer também evocam a Paul um momento de liberdade, mas em ambos os casos o sentimento é breve. A seguir, num bar de beira de estrada (os carros seguem velozmente em direções opostas), ele explica: “Fugi de tudo. Da minha mulher. Da casa. De um filho adotivo. De um emprego de sucesso. De tudo, exceto alguns maus hábitos dos quais não consigo me livrar” – o que talvez explique sua tendência a desistir das coisas, que fica evidente quando eles são descobertos pela polícia. No final do Último Tango, Jeanne mata Paul e começa a elaborar sua fala para a polícia dizendo que nunca viu aquele homem. No final de Profissão: Repórter, a esposa de Locke chega logo depois que o corpo morto dele é encontrado, ela também vai alegar que nunca viu aquele homem (3).

Desconstruíndo Locke

Quem você  é  e  quem
seria  se  pudesse   deixar

de  ser  quem  acha  que  é?
 Supondo,  é claro,  que  saiba 
quem  é   aquele/a  que  você
acha  que  queria ser...  Para 
quê  tanto esforço apenas 
para  trocar de  ficção?


David Locke encarna o típico personagem que deseja escapar da história para o vazio, onde uma nova identidade poderá ser construída. Um personagem que deseja libertar-se de si mesmo, Locke está tão fora de lugar naquele deserto que se torna um espécime perfeito para uma exploração do eu interior. Tal exploração era o objetivo declarado de Antonioni nesse filme, que pela primeira vez em sua carreira se utiliza de um roteiro que não foi escrito por ele mesmo. Mark Peploe e Peter Wollen, admiradores do cineasta italiano, foram os autores e estavam conscientes de que estavam escrevendo ao “estilo Antonioni” – segundo uma entrevista de Antonioni em 1975, Peploe tinha a história e desenvolveu o roteiro junto com ele (4). Os roteiristas também mencionaram como influências sobre o roteiro, O Garoto Selvagem (L’enfant Sauvage, direção François Truffaut, 1970), O Enigma de Kaspar Hauser (Jeder für sich und Gott gegen alle, direção Werner Herzog, 1974) e Sem Destino (Easy Ryder, direção Dennis Hopper, 1969). Eles pegaram um carro e foram escrevendo de acordo com os lugares que escolhiam. Algumas locações foram mudadas por Antonioni, que também foi responsável pela escolha dos ângulos de câmera (não havia indicações no roteiro), especialmente a longa e famosa tomada próximo ao final do filme (5). (imagem acima, à esquerda, as marcas de pneu na areia do deserto são praticamente uma metáfora da confusa trilha da vida de Locke; pelo menos em aparência, a trilha da imagem abaixo, à direita, parece levar a algum lugar)


“Pessoalmente, eu quero ficar longe de meu
eu histórico e achar outro. Eu preciso me renovar
 desta    forma.   Talvez   ilusão,    mas   penso   que 
seja  uma  forma  de   alcançar   algo  novo”

Antonioni, entrevista em 1975 (6)

Talvez seja natural, sugeriu Peter Brunette, que Profissão: Repórter inicie o processo de troca de identidade pela troca de passaportes – a maioria das pessoas compreenderá a troca num sentido apenas burocrático, que afinal é a forma pela qual governos procuram fixar as identidades das pessoas. O título italiano do filme (Professione: Reporter) remete ao espaço do passaporte onde se deve indicar quem você é – supondo que sua identidade esteja ligada a sua profissão... Quando Locke se apresentou a Robertson ele diz, “eu sou um repórter”. Essa nuance se perde no título em inglês The Passenger (O Passageiro), embora Brunette admita que outras ressonâncias se produzam aqui. De fato, a cópia norte-americana original, que pertence a Jack Nicholson, tem o mesmo título da italiana - além de contar com as partes cortadas da versão final para o mercado norte-americano. Questionado por Brunette a respeito do título norte-americano, Peter Wollen disse que originalmente o personagem feminino é que guiava o carro, enfatizando a idéia de uma passividade de Locke. Contudo, quando as filmagens começaram se descobriu que Maria Schneider não sabia dirigir.

Eu Me Lembro...




Locke é mais um sósia de Mathias Pascal. Dado como morto,  esse   personagem  de  Pirandello   aproveitaria
para  então  se  livrar  de  sua  patética  vida   anterior

Uma série de flashbacks confunde a percepção do espectador (que normalmente procura se refugiar na lógica e na objetividade para compreender um roteiro) recolocam a questão da memória. A memória é o foco do flashback, mas neste caso como uma função da subjetividade e da identidade. Brunette chama atenção para o detalhe do sobrenome de David Locke. O filósofo inglês John Locke (19632-1704) foi um empirista e defendia a hipótese de que os seres humanos não possuem idéias inatas, a mente seria basicamente um quadro em branco no qual a experiência escreve suas linhas. De acordo com John, a identidade pessoal é a consciência de ser o mesmo eu pensante em diferentes tempos e lugares. Portanto, concluiu, a memória é o único e suficiente critério de identidade pessoal. Segundo John, uma pessoa que faz X é a mesma que se lembra de ter feito X. Mas seus críticos ressaltaram a dificuldade de se distinguir entre uma memória genuína e uma aparente. Afirmarão também que a memória não pode ser suficiente para constituir a identidade pessoal, uma vez ela que a pressupõe (você tem que ter uma identidade para ter uma memória dela...) (7). Não deixa de ser interessante confrontar isso com o comentário de Antonioni em 1975 a respeito da profissão de David Locke, um jornalista de televisão. Uma carreira muito cínica, disse o cineasta! Mas o detalhe crucial, disse ele, é que Locke sendo jornalista não pode se envolver com aquilo que noticia porque sua função é ser um filtro. Sua tarefa é falar sobre um assunto ou sobre alguém sem se envolver. O problema, concluiu Antonioni, é que enquanto jornalista Locke é uma testemunha e não um protagonista (8) – nota-se que o cineasta não conhecia o telejornalismo no Brasil. (imagens acima e abaixo, na Casa Milà, projetada por Gaudí e construída entre 1906 e 1910, Locke-Robertson se encontra novamente com a mulher sem nome)


Enquanto jornalista investigativo, a função de Locke
 é     testemunhar.     Talvez     por    esta   razão   a   vida 
 de  Robertson  o  fez  sentir-se   vivo.    Por   outro  lado, 
a  vida   dele   era   tão   ativa   que   virou   um   fardo

Quando Locke encontra a mulher sem nome no Palácio Güell, construído por Antoni Gaudí (1852-1926) em Barcelona, suas primeiras palavras para ela são, “com licença, estava tentando me lembrar de algo” – talvez porque ele já a havia visto em Londres. “Bem, eu não reconheço você. Quem é você?”, ela responde. Ele retruca, “eu costumava ser outra pessoa, mas fiz uma troca”. “Espero que você consiga”, responde a mulher, “pessoas desaparecem todos os dias”. “Todas as vezes que saem do recinto”, completa Locke – sua resposta vem no mesmo instante que ela sai do enquadramento da câmera. Brunette ressaltou que a edição de Profissão: Repórter é pouco convencional, e descontinuidades temporais ocorrem sem que sejam marcadas por flashbacks. Angelo Restivo ressaltou que rupturas temporais são centrais na obra de Antonioni, como na cena que mostra Locke conversando com Robertson depois que este havia morrido. Então a seguir a câmera revela que Locke está ouvindo uma gravação de sua conversa com o morto (9). Ou ainda, como na cena em que Locke descobre o corpo de Robertson. A câmera está em Locke, que veste uma camisa com listras vermelhas; a câmera vai para o teto, quando volta ele está com a camisa de Robertson - mas não houve tempo para ele trocar. Momentos depois, ele sai do quarto e podemos ver a camisa vermelha em sua mão. Quando Locke descobre o corpo de Robertson, primeiro o vemos olhar para alguma coisa. Ao invés de a câmera nos dar o corpo logo a seguir, o que vemos é o rosto de Locke mudando de expressão – e só então o corpo aparece. De fato, parece apenas uma questão de escolha da edição. Tudo isso, Brunette observa, mostra como Antonioni continua problematizando a natureza da visão, de uma forma similar ao que havia feito em Depois Daquele Beijo. As formas bizarras das obras de Gaudí também poderiam fazer parte disso, problematizando a própria arquitetura; como o cineasta já havia feito em A Noite (La Notte, 1961) e O Eclipse (l’eclisse, 1962).

Tudo é Construção, a Vida é Tijolo



Poderia ser
classificad
o  como  um
filme de suspense
, mas isso
seria muito banal para
Antonioni



Na edição de Antonioni para Profissão: Repórter Brunette acredita que podemos distinguir entre o olhar dos personagens e desse “outro” que é o do cineasta. Ao criar dificuldades de compreensão para o público, esse filme reapresenta a questão teórica de Antonioni: a sensação de impossibilidade de um conhecimento certo e fixo sobre seja o que for. A isto, o filme adiciona a construtibilidade da subjetividade. Antonioni chega a fazer uma piada com sua tendência de negar informação narrativa, como na cena da Plaza de la Iglesia (quando Locke e a mulher sem nome chegam na Plaza onde Robertson supostamente iria encontrar alguém, Antonioni dá um close na placa que indica Plaza de la Iglesia; então Locke exclama, “aqui estamos nós, a Plaza de la Iglesia”). Na opinião de Brunette, com a possível exceção de A Aventura (L’Avventura, 1960), Profissão: Repórter é o menos claro de todos os filmes de Antonioni. Mas a incerteza que o filme pode gerar no espectador não tem relação com um roteiro de filme de suspensa. Antonioni foi bem claro em relação a esse ponto, ele procurou reduzir o suspense ao mínimo - teria sido muito fácil fazer um thriller, mas isso não me interessou, disse ele. Profissão: Repórter apresenta a subjetividade e a identidade como algo fluido e contraditório. Nesse filme tudo, mesmo certa objetividade de ponto de vista, aponta para um sentido negativo, evidenciando falta de ponto de vista subjetivo e individual por parte dos personagens. Antonioni chegou a declarar que não usaria mais a câmera subjetiva, por ela representar o ponto de vista do personagem (10).




Na conclusão,
percebemos que realidade

pode ser tão  escorregadia
quanto ficção




Nunca fica claro o motivo porque Locke resolveu assumir a identidade de Robertson, não ficamos sabendo o que há de errado com sua vida. Embora isso possa não chegar a irritar os amantes do estilo de Antonioni, o cineasta reclamou que algumas informações foram omitidas por causa de cortes feitos pelos produtores – foi cortada uma cena que mostrava os problemas no casamento de Locke que sugeriam até que ponto isso pesou em sua decisão de “virar Robertson”. Por conta disso, a versão européia, disse Antonioni, muito menos do que a norte-americana, não conta a história muito bem. O cineasta disse que sentiu como se tivessem retirado sua assinatura. Além disso, Antonioni foi forçado a apressar as filmagens (e usar muito mais filme do que normalmente o faria) porque Jack Nicholson tinha pressa. Como Antonioni não pode mexer no roteiro, a primeira versão filmada ficou com quatro horas, a segunda com duas horas e vinte minutos e a terceira com duas horas. Na verdade, contou Antonioni em 1975, ele havia chegado a uma versão de duas horas e vinte minutos. Mas parece que nos Estados Unidos eles são muito rígidos em relação a esse ponto, contou o cineasta. O curioso é que Antonioni admitiu que a versão que ele foi obrigado a cortar ficou melhor do que a anterior (11).

A Realidade de Antonioni





(...) Não tenho nada
para dizer
, mas talvez algo
para  mostrar 
(...)

Antonioni



Os sete minutos sem cortes da famosa penúltima tomada de Profissão: Repórter levariam onze dias para serem filmados, mas Antonioni pôs a culpa no vento que balançava a câmera. A idéia para esta tomada já estava na cabeça de Antonioni desde o começo das filmagens. Ele sabia que Locke deveria morrer, mas a idéia de vê-lo morrer o entediava. Foi então que ele pensou nula janela e no que estaria lá fora, o sol da tarde. Por uma fração de segundo, disse o cineasta, Ernst Hemingway passou por sua cabeça: Morte à Tarde (Death in the Afternoon, 1932) – entre outras coisas, como um tiro, ouvimos algumas notas de uma música de tourada. Esse livro fala de touradas em arenas e Antonioni encontrou uma arena. Mas ele ainda não sabia como iria filmar quando ouviu falar nova câmera canadense. Decidiu utiliza-la, embora houvesse muitos problemas – para começar, ela era de 16 mm e Antonioni precisava de uma com 35 mm. No final, o cineasta resolveu o problema, mas teve de modificar muita coisa porque essa mudança modificava todo o equilíbrio do equipamento, que era montado numa série de giroscópios – cuja função era neutralizar a vibração durante a transição do trilho no interior do quarto para o guindaste no exterior (12). Uma lente zoom foi montada na câmera, mas só foi utilizada quando ela estivesse para passa pela janela. Quando a câmera sai pela janela não faz nenhum close-up, vê-se um homem e a mulher sem nome, mas numa panorâmica. Antonioni disse que utilizou um plano geral (long shot) como close-up. Quando lhe perguntaram numa entrevista em 1975 sobre seu trabalho com o diretor de fotografia nessa tomada ele disse que não existe esse personagem na Itália (13).


A famosa seqüência de sete minutos quase no final do filme evoca uma misteriosa relação que brota entre nossa
realidade  humana  e  outra  realidade  talvez  ainda  mais
problemática: aquela que a câmera é capaz de capturar (14)

Ao contrário do que fez em O Deserto Vermelho (Il Deserto Rosso, 1964), em Profissão: Repórter Antonioni não adulterou a realidade. O cineasta disse que olhou para a realidade com os olhos do jornalista... Locke. Objetividade é um dos temas do filme. Se você assistir com atenção, explicou Antonioni, existem dois documentários no filme, um de Locke sobre a África e outro do cineasta sobre Locke (15). A distância entre a realidade e sua representação torna-se evidente na imagem de documentário onde assistimos ao fuzilamento de um africano – Antonioni sempre se recusou a indicar a fonte dessa imagem. Brunette argumenta que ao utilizar esse tipo de material Antonioni problematiza as fronteiras internas, a questão do enquandramento, do dentro e do fora. Onde exatamente, pergunta Brunette, começa o filme “de” Antonioni começa e termina (16). Na entrevista de 1975, pediram a ele para relacionar Profissão: Repórter com a questão daqueles que vêem no cinema a menos ilusória das artes e aqueles que pensam exatamente o oposto: “Eu não sei se posso falar sobre isso – se eu pudesse fazer a mesma coisa com palavras eu seria um escritor e não um cineasta. Não tenho nada para dizer, mas talvez algo para mostrar. Existe uma diferença. Eis porque é muito difícil para mim falar sobre meus filmes. O que eu quero é fazer filmes. Eu sei o que devo fazer. Não o que eu quero dizer. Eu nunca penso no significado porque não consigo” (17)


Aproximar a “realidade” da política durante um período
conturbado  da história  com  suas próprias investigações
a respeito da  “realidade”  do  cinema,  foi o que procurou fazer  Michelangelo Antonioni em  Profissão: Repórter (18)

Antonioni na Babilônia (I), (II), (final)
 As Deusas de François Truffaut
Antonioni e o Grito Primal
A Grécia de Pasolini

1. TASSONE, Aldo. Antonioni. Paris: Flammarion, 2007. P. 309.
2. ANTONIONI, Michelangelo. Architecture of Vision. Writings and Interviews on Cinema. USA: University of Chicago Press, 1996. P. 183.
3. TONETTI, Claretta Micheletti. Bernardo Bertolucci. The Cinema of Ambiguity. New York: Twayne Publishers, 1995. Pp. 137-8.
4. ANTONIONI, Michelangelo. Op. Cit., p. 176.
5. BRUNETTE, Peter. The Films of Antonioni. New York: Cambridge University Press, 1998. Pp. 128, 175n3 e 4.
6. ANTONIONI, M. Op. Cit, p. 341.
7. BRUNETTE, P. Op. Cit., pp. 132, 176n6.
8. ANTONIONI, M. Op. Cit., p. 342.
9. RESTIVO, Angelo. The Cinema of Economic Miracles. Visuality and Modernization in the Italian Art Film. Durham & London: Duke University Press, 2002. Pp. 124-5.
10. BRUNETTE, P. Op. Cit., pp. 132-5, 176n8.
11. ANTONIONI, M. Op. Cit., p. 177.
12. BONDANELLA, Peter. Italian Cinema. From Neorealism to the Present. New York/London: Continuum, 3ª ed, 2008. P. 324.
13. ANTONIONI, M. Op. Cit., pp. 338-9.
14. BONDANELLA, P. Op. Cit.
15. ANTONIONI, M. Op. Cit., 335.
16. BRUNETTE, P. Op. Cit., pp. 140-1.
17. ANTONIONI, M. Op. Cit., p. 342.
18. BONDANELLA, P. Op. Cit., p. 324.


2 de jan. de 2011

Bertolucci e o Negócio da China (II)



O grilo preso no pote
seria  o  próprio  Pu Yi
.
Soltando-o no final
, ele está afinal pondo  a  si
mesmo em liberdade



 


O Passado, o Presente e as Luzes Freudianas

A estrutura narrativa é similar a que fora utilizada em dois filmes anteriores de Bertolucci, A Estratégia da Aranha (Strategia del Ragno, 1970) e O Conformista (Il Conformista, 1970). Uma serie de 12 flashbacks começam pela prisão de Pu Yi e voltam ao passado até chegar à sua libertação em 1959, as manifestações da Revolução Cultural, a humilhação pública de seu antigo interrogador em 1967 (uma das acusações era de que o diretor havia sido conivente com o imperador), e na seqüência final sua visita como turista à Cidade Proibida. O papel de Jin Yuan, o diretor da prisão, foi desempenhado por Ying Ruocheng (1929-2003), ator e então vice-Ministro da Cultura chinês (1986-1989). Além da estrutura narrativa de O Último Imperador, Bondanella chama também atenção para os elementos psicanalíticos sempre presentes em Bertolucci (1). (imagens acima e abaixo, à direita, durante a coroação do pequeno Pu Yi)



Na época em que sua vida

era  miserável,  Pu Yi  vivia
num palácio multicolorido.
Na época em que começa a viver no mundo dos  vivos,
tudo é cinza e azul escuro





De fato, Bertolucci estaria tentando trazer Freud para o interior de sua própria busca utópica por um Marxismo humanista. Um dos colaboradores da equipe de Bertolucci era o diretor de fotografia Vittorio Storaro que explicou que a existência protegida de Pu Yi dentro da Cidade Proibida foi filmada quase sempre com cores “proibidas”, as cores mais quentes. Isto porque, disse Storaro, aquele lugar era ao mesmo tempo um útero protetor e uma prisão. De acordo com Bondanella, a colaboração entre Bertolucci e Storaro é um dos aspectos mais originais de O Último Imperador. A dupla já havia feito isso, utilizar a luz do filme para favorecer seu conteúdo narrativo, em filmes como A Estratégia da Aranha, O Conformista e O Último Tango em Paris (L’ultimo Tango a Parigi, 1972). Luz e sombra são justapostos para sugerir uma luta psicológica entre o consciente e o inconsciente de Pu Yi. Para Bertolucci, o jovem imperador preso no interior da Cidade Proibida representa a fuga da dolorosa autoconsciência comum a todos os seres humanos. Por conseguinte, retrata o eventual exílio de Pu Yi em relação a sua casa-útero como a partida de um cego – quando os soldados chegam, ele está de branco jogando tênis, quando passa pelos portões está de preto e de óculos escuros. Os óculos testemunhariam na apenas a falta de autoconhecimento, mas também os efeitos de um complexo de Édipo que emana de sua incomum história familiar – particularmente a ausência de uma figura paterna forte. À medida que Pu Yi amadurece e alcança maior compreensão de sua vida, as luzes e sombras do filme avançam para um equilíbrio maior.

Luz, Mais Luz...




Durante sua prisão,
Pu Yi tinha mais liberdade
física  do  que em sua  vida
na Cidade Proibida


Claretta Tonetti (2)




Bertolucci sabia que a autobiografia de Pu Yi não era “grande literatura”, mas estava interessado na “apologia moral e política” do último imperador da China e por sua “viagem das trevas a luz”. O cineasta gostava muito de um documentário de Michelangelo Antonioni sobre a China, Chung Kuo Cina (1972). As autoridades chinesas não gostaram muito, mas depois de algumas explicações eles se desculparam. Bertolucci chegou a chamá-lo de “o mais maravilhoso” trabalho que ele assistiu sobre a China no cinema. Também não gostaram quando Bertolucci sugeriu que gostaria de fazer um filme sobre a China baseado em A Condição Humana, de André Malraux. Consideravam o material muito sensível, a disputa entre os líderes na greve era muito sensível e se tratava de uma história da derrota do comunismo. Bertolucci disse que tentou explicar que todos os trabalhadores no Ocidente se apaixonaram pelo comunismo chinês por causa deste livro, porque é uma história romântica de revolução. Os chineses sorriram, contou o cineasta, e disseram para ele que achavam que realmente deveria fazer O Último Imperador (3). (imagem acima, Pu Yi em sua primeira tentativa frustrada de sair da Cidade Proibida - as portas do mundo real sempre se fecham para ele; abaixo, à direita, recém chegado ao palácio, o pequeno Pu Yi está no centro das atenções e a rainha morta atrás dele já o havia escolhido para o trono)




Bertolucci só poderia

filmar dentro da Cidade
 Proibida com autorização
 expressa  do  Partido
Comunista chinês




Bertolucci consegue a permissão para filmar, a partir daí procura compreender o lugar do “amarelo imperial” naquele sistema estético – tonalidade que o cineasta disse ser muito próxima do amarelo de Parma, sua cidade natal na Itália. Ele chegou a fazer um documentário de dez minutos sobre sua longa pesquisa, Cartolina dalla Cina, mostrado na televisão italiana em 1985. Claretta Tonetti fala de uma “sinfonia de cores” ao se referir a O Último Imperador. Como Peter Bondanella, Tonetti também enfatiza a importância do sentido da visão neste filme. Talvez não seja por acaso que Pu Yi tinha um problema de visão e teve de passar a usar óculos, caso contrário ficaria cego. Mas isso aparentemente não abriu suficientemente seus olhos! Primeiro vemos o mundo a partir dos olhos da criança imperador, que diante de todos aqueles que lá estavam prostrados em sua coroação, preocupava-se em descobrir onde estava o grilo que ele podia apenas ouvir. Depois passamos a ver o mundo a partir dos olhos do diretor da prisão comunista, quando descobre que Pu Yi continua sendo servido por um ex-criado. Na Cidade Proibida, Pu Yi era seguido por centenas de olhos e tinha uma ilusão de poder, na verdade ele era totalmente impotente.

No Reino da Fofoca Todos São Atores


Pu Yi sempre foi um personagem, inclusive
 para ele mesmo. Só não
sabia que o roteiro era
criado  apenas  por
outras  pessoas




Pu Yi sempre foi dirigido por pessoas que atuavam como subalternos. Na opinião de Tonetti, o Pu Yi da vida real foi um personagem que não chegou a constituir uma persona. Entretanto, Tonetti deixa claro que o Pu Yi de Bertolucci era outra “pessoa”. O cineasta deixa de fora uma série de dados da autobiografia, como por exemplo, o comportamento sádico do imperador (ainda menino) com os eunucos seus servos – no filme vemos apenas a cena onde ele, pretendendo provar para o irmão que ainda é o imperador da China, ordena que um servo beba tinta. Mas não era apenas o comportamento de uma criança. Já adulto, quando ele servia aos interesses japoneses em Manchukuo, seus hábitos cruéis era cotidianos. Bertolucci preferia mostrar Pu Yi como uma vítima ingênua e superficial de suas contingências existências. Os atos de rebeldia do Pu Yi de Bertolucci são a expressão de sua adolescência frustrada – quando já adolescente ele sobe no telhado ao saber da morte da mãe ou quando, já casado, desafia a tradição ao cortar o rabo de cavalo. O imperador perdeu duas mães, a real e a ama de leite – a primeira morreu sem nunca mais tê-lo visto, a segunda foi expulsa pelas viúvas do antigo imperador. (imagem acima, à esquerda, quando Pu Yi finalmente consegue sair da Cidade Proibida é porque foi expulso por um novo senhor)




O filho assassinado
de Pu Yi 
(natimorto que
seria ele mesmo
), era filho
do motorista dele com
a  rainha  adúltera





Talvez não seja por acaso, sugere Tonetti, que Pu Yi tenha tido duas esposas. Na cena de sexo entre os três, o que se vê é como um casulo de seda (o lençol que os cobria) (imagem acima), que se move em ondas como uma água materna. Pu Yi se esconde dos olhos dos eunucos e das esposas de seu predecessor. Sempre a idéia de se recolher na serenidade de um útero. Alguém está sempre olhando, mas a platéia só percebe isso de vez em quando. Como na seqüência da noite de núpcias, primeiro que Pu Yi leva um bom tempo até retirar o véu que cobre o rosto dela – somente depois que ela explica que é ele quem deve fazer isso. Sentados na cama, começam a se beijar até que os dois rostos estejam manchados com o batom dela. Percebemos que as roupas deles estão sendo retiradas por mãos de pessoas que não podemos ver. Apenas depois que a jovem imperatriz ordena, “deixem-nos”, percebemos que não somos a única platéia. Pu Yi só parece lembrar que está sendo observado quando uma de suas botas é retirada. Acostumado a ser constantemente observado, ele não parece vê-los mais. Talvez a partir deste ponto de vista se possa compreender melhor por que Pu Yi abandona o quarto de núpcias antes de uma conjunção carnal. Logo a seguir, vemos o bando de viúvas do antigo imperador voando para cima da noiva em busca de fofocas (4).


Leia também:

Bertolucci e o Negócio da China (I), (III)
Kieślowski e o Outro Mundo
Bertolucci e a Psicanálise: O Conformista (I), (final)
As Crianças de Angelopoulos
Antonioni na Babilônia (I), (II), (final)

Notas:

1. BONDANELLA, Peter. Italian Cinema. From Neorealism to the Present. New York/London: Continuum, 3ª Ed, 2008. Pp. 403-4.
2. TONETTI, Claretta Micheletti. Bernardo Bertolucci. The Cinema of Ambiguity. New York: Twayne Publishers, 1995. P. 224.
3. Idem p. 202.
4. Ibidem, p. 206.


29 de jan. de 2008

O Porteiro da Noite


Viena, Áustria, 1957. Um ex-ofical das SS trabalha disfarçado como porteiro noturno de um hotel. Ele faz parte de uma organização secreta de ex-nazistas que eliminam todos aqueles que podem identificá-los e denunciá-los para os exércitos que ocuparam o país após a derrota de Hitler. Certo dia surge no hotel uma mulher. O porteiro e ela se reconhecem imediatamente. Eles tinham uma relação sadomasoquista quando ela era prisioneiro no campo de concentração onde ele servia. Ela não só não o denuncia como acaba voltando para ele, que tenta desesperadamente protegê-la da organização secreta – passam a viver confinados em um dos quartos do hotel. O filme mostra a lenta degradação física e mental a que ambos se submetem para manter viva sua relação.


Lançado em 1974, entre outros méritos O Porteiro da Noite (Il Portiere di Notte), dirigido pela cineasta Liliana Cavani, tem a capacidade de nos fazer repensar e problematizar mais profundamente as relações entre as pessoas. No fundo, o filme trata da complexidade das relações humanas, exemplificada pela relação sadomasoquista entre os protagonistas. Podemos dizer que o filme também problematiza, ou permite uma problematização, da forma como o cinema e a televisão podem (ou desejam) distorcer a realidade que pretendem mostrar.

Ficamos tão perplexos com essa insólita relação entre uma prisioneira de campo de concentração e um nazista que tomamos a parte pelo todo. O escândalo talvez nem seja o sadomasoquismo posto a nu, mas a percepção de quão profundamente estamos ligados mais a clichês e estereótipos sobre o que é a vida do que a ela propriamente.

Acostumamo-nos a ver, transplantados (e é mesmo como se fosse uma operação cirúrgica em nossas mentes) para os filmes de guerra e sobre o Holocausto, um desfile de clichês que gira em torno da oposição Bem x Mal. Os soldados americanos estão sempre do lado do Bem, enquanto os nazistas representam o Mal – como se soldados americanos nunca tivessem cometido atrocidades no campo de batalha; às vezes eu acho que eles nem falavam palavrões. Quando um soldado americano ou inglês não larga sua arma até o último tiro, é porque são heróis. Quando um soldado nazista faz o mesmo é porque ele é um fanático. Esta maneira de recontar a história não se restringe aos filmes ficcionais, muitos documentários abordam a questão dessa maneira. Referem-se de forma diversa quando falam da resistência feroz no campo de batalha em relação aos americanos e ingleses ou aos soldados nazistas. Na verdade, este é o discurso daqueles que venceram a guerra. Se os nazistas tivessem vencido, fariam o mesmo. A verdade não interessa!

Quando o caso é com os judeus, invariavelmente eles são as vítimas. Sempre que um filme mostra alguém que discorda de um judeu, essa pessoa passa a ser taxada de anti-semita – e Liliana Cavani certamente sofreu tal acusação. É como se os judeus estivessem sempre certos. É como se ninguém pudesse discordar dos judeus a respeito de coisa alguma – brigar então nem se fala. Qualquer coisa é motivo para os judeus afirmarem que estão sendo perseguidos. E nem vou entrar no mérito da atitude que o exército israelense adota em relação aos palestinos. Toda essa cortina de fumaça em torno da realidade torna menos evidente a complexidade das relações humanas. A divisão entre Bem e Mal pode facilitar a compreensão da vida ao reduzir tudo ao preto e branco. Só que a vida é cheia de tons de cinza.

É isto que mostra O Porteiro da Noite: a identificação entre vítima e torturador. Prato cheio para análises psicanalíticas, psiquiátricas, antropológicas, sociológicas e filosóficas a respeito do sadomasoquismo, o filme foi muito combatido apenas porque rompia com o estereótipo do Bem contra o Mal, além de colocar uma vítima como agente de seu próprio sofrimento.

Claretta Tonetti traça um paralelo entre O Porteiro da Noite e O Último Tango em Paris, filme dirigido pelo cineasta Bernardo Bertolucci. No que diz respeito ao sadomasoquismo, o filme de Bertolucci seria como que um precursor do filme de Cavani. No Último Tango temos, embora com muito menos ênfase, referências à patente militar de coronel de Paul - personagem de Marlon Brando. Jeanne, a personagem de Maria Scheneider, também se veste com o uniforme dele. No Porteiro, a personagem de Charlotte Rampling vai um pouco mais longe. Além de vestir o uniforme da SS nazista, ela dança para vários oficiais com os seios desnudos. A diferença de idade entre homem e mulher é grande nos dois filmes, o que daria uma coloração incestuosa as relações. No Último Tango, Paul dá banho em Jeanne, enquanto no Porteiro, como um pai ou mãe fariam, o ex-oficial da SS alimenta a mulher com uma colher e depois a veste como se ela fosse uma criança inexperiente. Todos esses elementos como botas longas, armas, quepes e uniformes militares, carregam uma mensagem clara de violência e poder (dominação). (1)

Ao contrário do que seria razoável, o escândalo não foi mostrar uma relação sadomasoquista na tela do cinema, mas mostrar uma vítima de campo de concentração que amava ser torturada por seu homem – o oficial nazista que administrava o campo de concentração onde se conheceram.

Naturalmente não estou sugerindo que todos os judeus e judias gostaram de ser torturados antes de morrer. Também não estou negando o holocausto. Absolutamente não! Entretanto, espremer todas as vítimas do lado do Bem e todos os nazistas do lado do Mal impede a constatação do óbvio: o universo das relações humanas ultrapassa qualquer redução a clichês e estereótipos. A polêmica na época do lançamento de O Porteiro da Noite ilustra muito bem o que acontece quando utilizamos aquilo que são apenas muletas para uma compreensão inicial e limitada do mundo (clichês e estereótipos) como se fossem nossas próprias pernas (nosso espírito crítico).


Leia também:

Ettore Scola e o Milagre em Roma
Ettore Scola e o Filme Dentro do Filme
Mussolini e a Sombra de Auschwitz


Notas:

1. TONETTI, Claretta Micheletti. Bernardo Bertolucci: the cinema of ambiguity. New York: Twayne Publishers, 1995. P. 136. 
 

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